ALCEFIM1

People of the Deer

"Esta é a história empolgante e extraordinária de um jovem ex-combatente canadense que, desiludido com a interminável carnificina da guerra, encontrou refúgio amigo nas áridas terras do Ártico. Adotado por uma tribo perdida de esquimós, acompanhou as migrações das enormes manadas de caribus e chegou a conhecer o "Povo dos Alces" melhor do que qualquer outro homem branco. "

"People of the Deer", Farley Mowat, Editado por Little, Brown & Co., Boston 6, Mass. EUA 1952 . Condensado para Seleções do Reader's Digest, 1954

PARTE II

EM SETEMBRO DE 1947 despedi-me a contragosto dos Ihalmiut. Franz e o irmão mudaram-se para Churchill com as duas crianças esquimós. No começo do Ano-Novo não havia mais um só branco em toda a extensão das planícies geladas.
Mas em 1948 fretei um avião e voltei ao norte, à cabana escondida no manto de gelo. Ootek estava lá esperando. Ele veio correndo ao meu encontro, trazendo no rosto magro um sorriso que aumentou até transformar-se em riso incontrolado, que provinha da satisfação de sentir-se salvo.

Quando chegamos à cabana e nos arrastamos por dentro da neve para o seu precário abrigo, Ootek explicou, por meio de gestos, que tinha ido ali na vã esperança de que o homem branco tivesse voltado a Windy Bay. A fome o forçara a fazer a jornada, embora soubesse que não havia ninguém na cabana. Já estava ali havia dois dias sem comer, na obstinada esperança de que lhe chegasse do céu algum socorro. No terceiro dia, havia iniciado a sua triste viagem de volta para casa quando ouviu o ronco milagroso de Konetaiv—as asas do homem branco.

Ootek só ficou em minha companhia o tempo suficiente para comer alguma coisa e receber munição para a espingarda. Os caribus que precediam as manadas já andavam pelas planícies e, tendo cartuchos para espingarda, Ootek estava livre da fome na primavera. Se eu tivesse chegado um mês depois, reproduzir-se-ia aquela primavera sinistra na qual Kunee e Anoteelik ficaram órfãos. Quatro dias depois de partir, Ootek voltou em companhia de todos os homens do acampamento dos Ihalmiut, os quais não sabiam como manifestar a alegria que sentiam com a minha chegada. Sem Franz para servir-me de intérprete, a barreira da linguagem era invencível. Era evidente que, se eu não conseguisse aprender a língua dos Ihalmiut, deixaria aquela terra sem conhecer o seu povo. Fiz saber a Ootek que eu queria aprender a língua dele.

O simples fato de eu, um homem branco, pedir voluntariamente que me ensinassem a língua deles, em vez de esperar que aprendessem a minha, abriu-me o caminho daqueles corações. A reação foi imediata, entusiástica e quase esmagadora. Ootek e Ohoto, chamados para auxiliar, deixaram de repente de tratar-me com a cortesia habitual que estendiam aos brancos estranhos. Fizeram-me saber, por meio de gestos repassados de exaltação e nervosismo, que eu já não era estranho: passara a ser um Ihalmiut.

A iniciação foi tão simples que não percebi logo a sua profunda significação. Só depois é que eu soube que Ootek e Ohoto, além de me adotarem como filho da terra, atribuíram-me relações de parentesco com ambos. Fiquei sendo seu primo-canção. Era um parentesco difícil de definir, mas que só se estabelecia em base da mais completa e ampla amizade. Se eu quisesse, poderia fazer uso de tudo o que Ootek e Ohoto possuíam, inclusive as suas mulheres, embora essa honra não me fosse conferida.

Com o auxílio de ambos, perguntando o nome dos objetos que me rodeavam e empregando os verbos, depressa aprendi alguma coisa da língua dos Ihalmiut. Dentro de um mês, eu já podia entender quase tudo o que me diziam e fazer-me entender. Cheguei à conclusão de que tudo o que se contava a respeito da dificuldade daquela língua não passava de tolice, como muitas outras noções errôneas existentes a respeito dos esquimós. Só depois de quase um ano foi que descobri o verdadeiro motivo dos meus rápidos progressos.

O segredo, é claro, estava em Ootek e Ohoto. Com a cooperação do resto do povo, eles tinham elaborado um método especial de ensinar-me uma língua que é, de fato, extremamente difícil. Eles enfrentaram o problema com grande perspicácia, partindo do princípio de que o cérebro de um branco deve ser inferior ao deles, e não pode perceber as extremas complicações da sua língua.

Por isso, inventaram um processo mais expedito, destinado exclusivamente ao meu uso pessoal. Ensinaram-me os radicais das palavras, desbastados dos inúmeros prefixos e sufixos que dão à língua deles uma flexibilidade e uma delicada gradação de sentidos que, provavelmente, não são superadas por nenhuma das línguas faladas atualmente. Criaram uma espécie de "linguagem básica" e aprenderam também a falá-la, não só quando conversavam comigo, mas também quando falavam uns com os outros na minha presença.

Quanto mais conhecia aquela gente, mais aumentava o meu respeito pela sua inteligência e pelo seu gênio inventivo.

No princípio, não compreendi por que motivo as habitações que eles construíam eram tão ruins e mal-acabadas. Embora as suas tendas de peles ofereçam abrigo pouco melhor do que o de um arvoredo, eles só as trocam pelos iglus de neve quando a temperatura chega a 50 ou 60 graus abaixo de zero—e assim mesmo a contragosto. Mas acontece que a única lenha de que dispõem é o salgueiro, que queima bem numa tenda aberta mas faz muita fumaça num iglu. Na tenda, pode-se, ao menos, tomar sopa quente de vez em quando, o que não acontece no iglu, onde quase toda a comida tem de ser consumida gelada e dura como pedra.

Foi-me preciso quase um ano para perceber que os Ihalmiut não só têm boas casas mas até criaram a casa perfeita. A tenda, propriamente, não é mais do que um abrigo auxiliar. A casa verdadeira do Ihalmiut é carregada às costas: é a sua roupa. Esse é o único tipo de casa que permite ao homem sobreviver naquelas paragens cruéis. Não lhe falta aquecimento central, fornecido pela queima da gordura do corpo, e paredes perfeitamente isoladas. É uma casa completa, leve, fácil de fazer e de consertar.

A casa do Ihalmiut consta, principalmente, de duas roupas de couro de alce, usadas uma por cima da outra e cada qual feita de acordo com as medidas da pessoa. A roupa que fica em cima da pele é vestida com a parte dos pêlos para dentro, ao passo que a outra tem a parte peluda voltada para fora. Cada roupa consta de um casaco de enfiar pela cabeça, munido de capuz, calças, luvas e botas, tudo de pele, indo a roupagem dupla até à ponta dos dedos. Os dois casacos, tanto o de dentro como o de fora, descem, folgadamente, até aos joelhos e garantem ampla ventilação.

As peles de dentro são mantidas afastadas do corpo pela camada de pêlos. No espaço entre a pele e o corpo passa, constantemente, uma camada de ar quente, que absorve o I suor e o descarrega para fora. Assim, todas as partes do corpo do esquimó ficam protegidas. Até a abertura oval para o rosto é coberta por uma comprida franja sedosa de pele de lobo, a única pele a que a umidade do hálito não adere nem congela.

No verão, quando se tira a roupa externa, a que fica não só repele a água, mas também se conserva fresca, por ser suficientemente ventilada. Essa roupa é também quase perfeita em matéria de proteção contra moscas. Levantado o capuz, as orelhas e o pescoço ficam protegidos, não podendo as moscas penetrar até à pele do esquimó.

No que diz respeito à roupa das mulheres, a casa do Ihalmiut tem dois quartos. O casaco tem nas costas um bojo que parece feito para adaptar-se à giba de um corcunda. Nesse espaço, chamado amaut, vive a criança ainda não desmamada. A criança fica ali sentada, inteiramente nua e satisfeita da vida, de olhos abertos para o mundo, em cima de um monte de musgo de grandes propriedades absorventes e que pode ser substituído a qualquer instante naquela terra em que não falta musgo.

É essa, pois, a casa do Ihalmiut, presente da terra, e sobretudo presente de Tutyu, o alce.

A PRIMEIRA grande lei das planícies geladas é que os atos de um homem são sagrados e só a êle dizem respeito, não devendo os outros intervir, salvo em caso de perigo para a coletividade. A segunda é que, enquanto numa tenda houver comida ou qualquer espécie de apetrecho, noutra ninguém sofrerá privação dessas coisas. Expliquemos. Todos os apetrechos são propriedade de uma pessoa ou de uma família. Mas se aparecer um estranho precisando de uma lança, é só ir apanhando a que quiser. Ele poderá ou não devolver a lança depois de utilizá-la, porque a lança passa a ser propriedade sua e não um objeto tomado por empréstimo.

As leis não escritas formam um código de conduta—chamado a Lei da Vida —que, embora flexível, estabelece barreiras que um esquimó nem sonha transpor. A ausência de criminalidade nos acampamentos dos Ihalmiut é surpreendente. A promiscuidade sexual não é tão comum entre eles como se costuma dizer. A sua única manifestação é o condomínio sobre as esposas. O aluguel de mulheres, as relações sexuais clandestinas, as mal disfarçadas relações extra-conjugais dos que se uniram pelos laços do matrimônio—tudo isso pertence aos costumes da nossa raça e não aos dos Ihalmiut.

A cessão das esposas só é exercida entre primos-canção ou outros amigos íntimos, e é um expediente voluntário, destinado a atenuar as asperezas da vida naquelas terras. Quando um homem vai fazer uma demorada excursão de caça, ou visitar um parente que vive longe, quase sempre deixa a mulher em casa para não sujeitá-la aos perigos da viagem. E quando êle chega ao seu destino, o parente pode oferecer-lhe a esposa durante todo o tempo que durar a visita—mas somente com o pleno consentimento da mulher. Isso é contrário aos nossos costumes, mas para os Ihalmiut é um arranjo perfeitamente lógico.

O infanticídio é outro assunto predileto dos escritores sensacionalistas. O mais trágico é que isso acontece, e continuará a acontecer enquanto fôr necessário. Esta é que é a verdade— às vezes o infanticídio é uma necessidade inexorável e nada do que dissermos poderá alterá-la. A lei da sobrevivência coloca o homem, o caçador, no primeiro lugar da lista como o membro mais importante da família. Em seguida, vem a mulher e as crianças indefesas.

Poderá a mulher alimentar a família se não houver homem para levar a carne ? Quem poderá cuidar de crianças de peito se a mãe desaparecer? Daí o infanticídio. Entretanto, pude observar a extraordinária dedicação de Ootek a seu filho Inoti e ver o desespero que o assalta quando algum perigo ameaça o menino. Eu não gostaria de passar pelo que Ootek passou quando viu os seus primeiros filhos morrerem, sem nada poder fazer para salvá-los da morte. Convém que os moralistas não profiram as suas palavras hipócritas perto de Ootek e dos homens de sua raça que sabem o que é ajudar a mão da morte.

Lembro-me de ter, uma vez, manifestado a Ootek a minha surpresa pelo fato de nenhuma criança Ihalmiut ser castigada, ainda que houvesse motivo de sobra. Falei casualmente, mas Ootek me respondeu com veemência.

—Quem, se não um louco, levantaria a mão contra o sangue do seu sangue ? —perguntou-me ele.—Quem, se não um louco, usaria a sua força de homem contra a fraqueza de uma criança ?

Por isso, as crianças vivem sem restrições de espécie alguma e são pelo menos tão comportadas como as de qualquer outra terra. Nem entre os adultos existe qualquer espécie de organização para exercer autoridade sobre os Ihalmiut, nem conselho de anciãos nem polícia. Não obstante, eles vivem unidos pela amizade. O segredo disso está na cooperação.
Há certas coisas que não podem coexistir com os homens, segundo os Ihalmiut. Dessas, a primeira é a cólera. A cólera no coração de um Ihalmiut pode vir a ser tão perigosa quanto a loucura homicida, porque pode fazê-lo esquecer os perigos que o rodeiam, arrastando-o—e também os seus companheiros—à destruição.

Eles sempre consideraram a cólera uma demonstração de selvajaria e de imaturidade. No que diz respeito ao homicídio, basta examinar os arquivos da Real Polícia Montada Canadense relativos aos últimos 20 anos para se ver que tal prática é uma raridade nos acampamentos esquimós. Além disso, muitos casos considerados como "homicídio" entre os esquimós não foram homicídios, mas aplicação da eutaná-sia, a única solução para uma circunstância em que as outras vidas estavam em perigo.

Quando um homem enlouquece e ameaça a vida dos que o cercam, aplica-se a pena de morte. Não há julgamento, nem prolação oficial de sentença. Uns três ou quatro homens, em geral os parentes mais próximos do louco, reúnem-se e discutem indiretamente o problema que interessa a toda a comunidade. Um deles é escolhido para executar a sentença. O carrasco cumpre o seu dever de maneira rápida e humana. Se ele tiver sorte e os brancos não tiverem notícia do caso, tudo termina aí. Mas em muitas instâncias, esquimós que tiveram o terrível encargo de sacrificar irmãos, pais ou filhos, para que outros pudessem sobreviver, além das torturas mentais que sofreram ainda foram recompensados com a forca pela justiça dos brancos.

Quando adquiri maior conhecimento da língua, percebi que as conversas dos Ihalmiut se referiam mais ao passado. Até parecia que eles estavam sempre procurando viver de novo aqueles dias mais felizes. Não tardou muito que eu pudesse imaginar os tempos idos, quando um homem podia subir ao alto de um monte e, para todos os lados que olhasse, para leste, oeste, sul ou norte, não via outra coisa senão alces.

Na primavera havia grande avidez de carne fresca, mas os Ihalmiut só matavam os alces que bastavam para sustentá-los até ao outono, isso porque o couro dos alces da primavera não servia para roupas e a carne era magra.

Era no outono, quando as manadas voltavam do norte, que a agitação crescia e chegava ao auge na semana em que a migração continuava. Enormes fogueiras ardiam dia e noite nos acampamentos, enquanto nas tendas cresciam os blocos brancos de gordura de alce. Por toda a extensão das planícies, pequenos montes de pedras cobriam os corpos esquartejados dos alces. Ao lado das tendas, mulheres e crianças preparavam grande quantidade de ótimas peles, limpando-as e raspando-as para adelgaçá-las.

Foram tempos de riqueza e vigor para os Ihalmiut, cujo número ascendia a milhares. Mas um dia, um Ihalmiut foi ao posto de comércio de um branco no sul. De volta, levou ao seu povo um presente nosso.

Uma doença estranha irrompeu no acampamento do viajante que regressara. Uma Grande Dor—o nome que os Ihalmiut dão à tuberculose— instalou-se no peito dos esquimós e negou-lhes ar aos pulmões. A Grande Dor atacou pelo Rio dos Homens acima, chegou aos acampamentos ocultos nos lagos, cobriu toda a região. Antes de terminada a primavera, mais de um terço dos Ihalmiut tinha morrido.

No fim do verão, o Rio dos Homens estava deserto. Apenas algumas sepulturas, feitas às pressas em suas margens, ficaram para assinalar as habitações dos homens. Nos anos seguintes, nunca mais o rio viu os grandes acampamentos Ihalmiut, pois era então um rio de fantasmas.

A peste desvitalizara o povo. Nunca mais os Ihalmiut recuperaram o vigor antigo. Em 1947, dos milhares que outrora povoavam as planícies centrais, restavam apenas 40 sobreviventes. No inverno em que os pais de Kunee e Anoteelik morreram e a avó deles mergulhou despida na noite de inverno, mais doze vidas se perderam.

E a tragédia ainda não havia terminado. Em 1950 a fome voltou com a mesma ferocidade, fazendo dos Ihalmiut uma raça morta, pois levou duas das quatro mulheres capazes de procriação que ainda lhes restavam. O desfecho da nossa negligência foi perderem os Ihalmiut a sua última esperança de salvação.

EM MEADOS de setembro de 1948, quando deixei as planícies geladas para voltar ao meu mundo, despedi-me de Ohoto e Ootek à maneira do homem branco. Depois de apertarmos as mãos, Ohoto tirou da boca o cachimbo que estava fumando, um objeto de pedra semitranslúcida pequeno e bem trabalhado, artisticamente envolto no metal de um velho cartucho. Sem dizer palavra, êle me entregou o cachimbo, modesto presente de despedida.
Seria, porém, realmente modesto? Eu sabia que aquele cachimbo vinha de um século extinto, pois pertencera ao pai de Ohoto e tinha testemunhado muito mais coisas naquela terra do que qualquer homem vivo; por conseguinte, deveria baixar com Ohoto à sepultura, a fim de acompanhá-lo pela eternidade que êle esperava encontrar ao fim de seus dias.

Agora, entretanto, êle iria comigo para fora daquela terra e aqueceria a palma da minha mão, enquanto eu pensasse nas coisas que teria de dizer para que a voz dos Ihalmiut pudesse ser ouvida no mundo do homem branco.

Minha consciência não descansará. Não me basta ter contado a tragédia de certos homens, pois a história dos Ihalmiut não é deles só. Grande parte do que escrevi aplica-se a muitos milhares de índios espalhados de uma ponta a outra do continente.

Para que a tragédia das grandes planícies não fique como a história final de todos os que vivem no âmbito frio do Ártico, é preciso livrá-los do seu longo regime de fome. A caridade é, quase sempre, fatal para um povo primitivo, como é freqüentemente fatal aos civilizados. A simples dádiva de víveres aos nativos gera uma dependência que pode ser fatal porque eles não compreendem os nossos motivos e acreditam—não sem alguma razão—que somos ricos e podemos abastecê-los indefinidamente e que nunca mais precisarão de usar as mãos em seu próprio benefício. Não, não devemos dar-lhes comida. Devemos é proporcionar-lhes os meios de obterem da terra que lhes pertence a gordura e a carne de que precisam.

O que aconteceu ao alce tem acontecido a todos os animais de corte do Ártico. O boi almiscarado é uma espécie quase extinta. Os pescadores de baleias há muito tempo dizimaram os grandes mamíferos que outrora chegavam até à Baía de Hudson e a todos os estreitos do norte do conti nente. Com o desaparecimento das baleias, tribos inteiras de esquimós desapareceram também. Os caçadores de focas fizeram um serviço completo. E os leões-marinhos, que já foram os mais importantes dos animais do mar para os esquimós da costa, diminuíram em proporção alarmante. Que devemos fazer para restituir o alimento que tiramos da boca dos povos do norte? O caribu constitui um claro exemplo do que se pode fazer. Atualmente, a espécie está à beira da margem fatal além da qual novas reduções a condenarão ao desaparecimento. Mas o ponto crítico ainda não foi atingido. Ainda há caribus suficientes para que a espécie se possa recompor rapidamente.

Para isso, há necessidade apenas de proteção, não contra os lobos ou contra o apetite legítimo dos nativos, mas contra nós. Diretamente, é preciso protegê-los contra os caçadores brancos; indiretamente, é preciso protegê-los contra as companhias de comércio que lucram com a venda irrestrita de armas de fogo e de quantidades astronômicas de munição. Se houvesse absoluta proibição da matança de caribus pelos brancos, e se restringíssemos a venda dá munição e dos tipos de armas vendidas aos nativos, o resto seria feito pelos próprios caribus.
Os esquimós têm poucas possibilidades de se integrarem em nossa civilização, enquanto não lhes estendermos as facilidades materiais necessárias ao período de transição—escolas e cuidados médicos convenien tes e um honesto tratamento econômico. Assim, eles poderiam transpor o vale que atualmente separa o seu mundo do nosso.

Felizmente, tenho a prova de que essas idéias não são utópicas. Há um lugar onde tudo o que pleiteio para os nativos já foi dado a um povo esquimó. Falo da Groenlândia, posto avançado dos esquimós no extremo leste, onde o governo dinamarquês de há muito adotou uma esclarecida política de proteção aos nativos.

Na Groenlândia, não há, atualmente, quem seja chamado de esquimó; há apenas groenlandeses. Alguns têm nas veias puro sangue esquimó, outros são mestiços, e outros ainda são de puro sangue dinamarquês—mas todos são um só povo. Rapazes de raça esquimó freqüentam as universidades dinamarquesas, e voltam para a Groenlândia a fim de ensinarem em escolas freqüentadas por meninos de todos os sangues. Grande número deles trabalham também na indústria, não como trabalhadores braçais, mas em pé de igualdade com todos os outros homens.

Eles administram uma grande, eficiente e rendosa indústria de pesca; ajudam a manter os postos de comércio e manobram os complicados aparelhos científicos das estações meteorológicas. Com efeito, os groenlandeses dirigem, agora, a sua própria economia, são rigorosamente protegidos contra a exploração comercial que tem estrangulado outras regiões árticas. Porque uma raça branca olhou o futuro com olhos humanos, os esquimós da Groenlândia pertencem, agora, a esse futuro—e o futuro lhes pertence.

Portanto, isso pode ser feito. E pode muito bem ser que, nos invernos que ainda estão por vir, Inoti, filho de Ootek, não tenha necessidade de colocar os seus filhos debaixo da neve por não ter comida para dar-lhes. E pode muito bem ser que a mãe de Inoti viva tranqüila, com a certeza de que não terá de sair despida numa noite de inverno para nunca mais voltar.

FIM