Seyyed

O Homem e a Natureza

(continuação e fim do Cap.II "As causa intelectuais e históricas.")

Esta nova concepção de um homem preso à terra, que está intimamente ligada ao humanismo e ao antropomorfismo deste período, coincidiu com a destruição e gradual desaparecimento do que restava das organizações iniciáticas e esotéricas da Idade Média. A Renascença foi testemunha da destruição de organizações como a Sociedade Rosacruz, enquanto ao mesmo tempo começou a aparecer toda sorte de escritos associados às organizações e sociedades secretas, tais como as obras herméticas e cabalísticas. O vasto número destas obras durante este período deve-se entretanto, antes e acima de tudo, à destruição dos depositários deste tipo de conhecimento, facilitando assim sua profanação e vulgarização. Em segundo lugar, deve-se a uma tentativa por parte de alguns pensadores para descobrir uma tradição religiosa primordial anterior ao Cristianismo, de modo que se voltaram para tudo que se falasse dos antigos mistérios. (109)

Além disso, quando passamos os olhos sobre as ciências da Renascença, vemos que apesar das novas descobertas em geografia e história natural e de certos avanços na matemática, o esquema é o mesmo que o da Idade Média. A ciência da Renascença é seguidora da do período medieval, a despeito de sua ênfase sobre o naturalismo. Isto porque o que se vê ganhar destaque desta vez são as ciências ocultas e cosmológicas do período medieval, que agora se tornam conhecidas e são elaboradas publicamente, embora algumas vezes de forma confusa e destorcida. Agrippa, Paracelso, Basil Valentine, Meier, Bodin e muitas outras figuras pertencem mais à tradição antiga e medieval da ciência que à moderna. Embora as escolas herméticas e mágicas da Renascença tivessem um papel tão significativo na criação da ciência moderna quanto a escola físico-matemática, mais freqüentemente estudada e associada ao nome de Galileu, prestou-se muito pouca atenção a este aspecto de capital importância por motivo de um julgamento a priori do que é ciência. (110)

No entanto, como era de se esperar em um período de eclipse do conhecimento metafísico e mesmo de dúvida filosófica, ciências como a alquimia tornaram-se ainda mais incompreensíveis, opacas e confusas, até que gradativa-mente deixaram de ser ciência como tal, passando a ser preocupação de ocultistas e curiosos. Paracelso ainda se achava no centro do palco científico de seus dias. Na época, Fludd e Kepler estavam trocando informações; a tradição hermético-alquímica que Fludd defendia perdeu a batalha, e o que era considerado ciência passou às mãos de Kepler e seus afins.

Esta perda de discernimento metafísico e de consciência em relação ao significado simbólico das ciências cosmológicas é também sentida na rápida transformação da cosmologia em cosmografia, um passar do conteúdo à forma. As numerosas cosmografias da Renascença não tratam mais do conteúdo e significado do cosmo, e sim de sua forma e descrição externa, apesar de ainda descreverem o mosmo medievel.(111) Tudo que restou foi o corpo sem seu espírito e significado interiores. Destas cosmografias à destruição do quadro cósmico a distância não é senão de um único passo, que é dado com a revolução copernicana.

A revolução copernicana gerou todas as convulsões espirituais e religiosas que seus oponentes previram que iriam ocorrer, exatamente porque esta chegou num tempo em que por toda a parte reinava a dúvida espiritual, sendo que um humanismo já com mais de um século de idade destituíra o homem de seu posto de "imagem divina" sobre a terra. A tese de que o Sol estava no centro do sistema solar não era nova em si mesma, dado que isto era sabido por certos filósofos e astrônomos gregos, islamitas e indianos. Mas a colocação desta tese durante a Renascença, sem uma nova visão espiritual das coisas que a acompanhasse, poderia somente significar um deslocamento do homem no cosmo.

A teologia e a formulação externa da religião começam com o homem e suas necessidades como ser imortal. A metafísica e o aspecto esotérico da tradição tratam da natureza das coisas como tais. A astronomia ptolomaico-aristotélica corresponde à estrutura de aparência mais imediata do cosmo e ao profundo simbolismo que as esferas concêntricas apresentam ao homem, como os aspectos visíveis dos múltiplos estados de existência. Neste esquema, o homem está sob um ponto de vista no centro do Universo, em virtude de sua natureza teomórfica, e está sob outro ponto de vista em seu nível mais baixo de existência, a partir do qual tem de ascender ao divino. A ascensão através do cosmo, como vemos de forma tão clara na Divina Comédia, também corresponde à ascensão da alma através das etapas de purificação e de conhecimento. Corresponde necessariamente à própria existência. A cosmologia medieval teve portanto a vantagem de apresentar ao homem o cosmo visível como um símbolo concreto de uma realidade metafísica que em qualquer hipótese se mantém verdadeira, independentemente dos símbolos utilizados para transmiti-la. Também em virtude de permanecer fiel à aparência imediata das coisas, assim como estas se apresentam ao homem, a astronomia ptolomaicoaristotélica correspondia mais a uma verdade teológica e exotérica, embora ao mesmo tempo permanecesse como um símbolo mais poderoso de uma realidade metafísica.

O sistema heliocêntrico também possui seu simbolismo espiritual. Ao colocar a origem da luz no centro, um argumento ao qual o próprio Copérnico se referiu na introdução de seu livro De revolutionibus orbium coelestium, esta astronomia simboliza claramente a centralidade do Intelecto Universal, para quem o Sol, o divino Apoio, é o símbolo mais direto. Além disso, ao remover as barreiras do cosmo e apresentar ao homem a vastidão do espaço cósmico, que simboliza a imensidade do Ser Divino e a insignificância do homem ante esta realidade, esta visão corresponde mais à perspectiva esotérica baseada na natureza total das coisas que na perspectiva exotérica e teológica, que se ocupa das necessidades do homem para que ele seja salvo. Mas a esta astronomia não se acompanhou uma nova visão espiritual, mesmo quando um homem como Nicolau de Cusa apontou a profunda significação do "universo infinito", "cujo centro está em toda parte e cuja circunferência, em parte alguma". (112) O efeito total da nova astronomia foi como a profanação de uma forma esotérica de conhecimento (113), um tanto semelhante a nossas observações no caso das ciências alquímicas e cabalísticas. Ela apresentou uma nova visão do Universo físico, também sem fornecer uma interpretação espiritual para o mesmo. A transformação do limitado em "universo infinito" também teve, por conseguinte, as mais profundas repercussões religiosas na alma dos homens, estando estreitamente entrelaçada a todo desenvolvimento religioso e filosófico da Renascença e do século dezessete. (114)

À primeira vista, pode parecer que ao remover o homem do centro do Universo a revolução copernicana se dirigira contra o humanismo predominante na época. Isto é apenas um feito aparente; seu efeito mais profundo foi auxiliar o espírito geral humanístico e prometéico da Renascença. Na cosmologia medieval, o homem fora colocado no centro do Universo, não como um homem puramente terrestre e preso a este planeta, mas como a "imagem de Deus". Sua centralidade devia-se não às qualidades antropomórficas, mas às teomórficas. Ao removê-lo do centro das coisas, a nova astronomia não conferiu ao homem a dimensão transcendente de sua natureza;ao contrário, afirmou a perda da natureza teomórfica, em virtude da qual fora colocado no centro. Logo, menosprezou a posição do homem no esquema das coisas, apenas na superfície, mas a um nível mais profundo auxiliou a tendência ao antropomorfismo e a revolta prometéica contra a voz do céu.

Com a destruição do conjunto imutável dos princípios, que são os juizes tanto do conhecimento como da virtude, e o aparecimento de um homem puramente terrestre, que se tornou a medida de todas as coisas, teve início na civilização ocidental uma tendência de caminhar do objetivismo ao subjetivismo, que prossegue até hoje. Já não estavam mais presentes uma metafísica e uma cosmologia para julgar a verdade ou falsidade do que os homens diziam, mas os próprios pensamentos dos homens, a cada época, tornavam-se os critérios de verdade ou falsidade. A Renascença, embora ainda seguindo as ciências formais da Idade Média, emitiu uma nova concepção do homem que daí em diante tornou antropomórfica, em um certo sentido, toda forma de conhecimento incluindo a ciência. Transformou na própria verdade a visão que o "homem caído", para utilizar a terminologia cristã, tinha das coisas e removeu o mais que pôde todo critério de conhecimento intelectual. Daí em diante, ciência foi apenas aquilo que o mental pudesse apreender e explicar. Não pôde prestar-se à função de transcender o próprio mental através do poder de simbolismo.

A própria revolução científica chegou, não na Renascença, mas durante o século XVII, quando o cosmo já se tornara secularizado, a religião enfraquecida por demorados conflitos internos, a metafísica e a gnose em seu verdadeiro sentido quase esquecidas, e o significado dos símbolos abandonado, o que se pode observar na arte deste período. Chegou também após mais de dois séculos de ceticismo filosófico, do qual os filósofos tentaram escapar e readquirir acesso à certeza. Descartes foi o herdeiro dos humanistas cristãos do final da Idade Média e Renascença, de homens como Petrarca, Gehrard Groot e Erasmo, e também de todo o grupo de filósofos da Renascença como Telésio, Campanella e Adriano de Cometo. Estes últimos duvidaram do poder da filosofia para alcançar certeza sobre os princípios derradeiros e, em contrapartida, se voltaram em geral para a ética e a moralidade. Descartes também foi acima de tudo o herdeiro do ceticismo expresso nos Ensaios de Montaigne, ao qual seu Discours sob mais de um aspecto é uma resposta.(115)

A fim de alcançar a certeza no conhecimento através de seu famoso método, Descartes teve de reduzir a rica diversidade da realidade externa à quantidade pura, e a filosofia à matemática. Sua abordagem era um matematicismo, para empregar um termo de Gilson, (116) e daí em diante o matematicismo cartesiano tornou-se um elemento permanente da visão científica do mundo. A física que Descartes construiu através de seu método foi rejeitada por Newton. Sua zoologia, onde buscou reduzir os animais a máquinas, foi violentamente atacada por Henry More e John Ray. Mas seu matematicismo, a tentativa de reduzir a realidade à pura quantidade com a qual se podia então lidar de forma puramente matemática, tornou-se o fundamento da física matemática e, inconscientemente, de muitas outras ciências que desesperadamente procuram encontrar relações quantitativas entre as coisas, ao desprezar o aspecto qualitativo destas. A distinção feita por Galíleu, no Discorsi, entre as qualidades primárias e secundárias é uma afirmação da redução cartesiana da realidade à quantidade, apesar de Galileu ter tido êxito em criar uma física onde Descartes falhou.

O gênio de Newton foi capaz de criar uma síntese a partir das obras de Descartes, Galileu e Kepler, e de apresentar um quadro do mundo que ele, um homem religioso, sentiu ser uma confirmação da ordem espiritual do Universo. Na realidade, os fundamentos do pensamento de Newton, ligados a figuras como Isaac Burrows e os platônicos de Cambridge, estavam longe de estar divorciados do interesse no significado metafísico do tempo, espaço e movimento. Não obstante, a visão newtoniana do mundo conduziu à tão conhecida concepção mecanicista do Universo, totalmente alheia à interpretação global e orgânica das coisas. O resultado foi que após o século XVII ciência e religião se divorciaram totalmente. Newton foi um dos primeiros a perceber os efeitos teológicos adversos de suas descobertas. Não podemos esquecer os esforços que ele despendeu e tantas páginas que escreveu sobre as ciências alquímicas e cabalísticas de seus dias. Talvez para ele a nova física, com "seu eminente sucesso ao nível matemático-físico, fosse apenas uma ciência das coisas materiais. Para aqueles que o seguiram esta tornou-se a ciência, o único conhecimento legítimo do mundo objetivo

Também no seculo XVII, O ultimo passo na secularização do cosmo ficou por conta dos filósofos e cientistas. Na Renascença, os elementos da filosofia tradicional ainda sobreviveram. A anatomia da existência consistia não somente dos mundos físicos e puramente inteligíveis, mas também do mundo intermediário entre matéria e espírito puro, o "mundo imaginai" (mundus imaginalis). Entretanto, isto não precisa ser considerado de maneira alguma irreal ou destinado a corresponder ao significado moderno de "imaginário". Um tal mundo intermediário era o princípio imediato da natureza, e através do mesmo se tornou possível a ciência simbólica da natureza. Entre os pensadores cristãos (contudo distantes do centro da ortodoxia teológica), mesmo após a Renascença um homem como Swedenborg pôde escrever um comentário hermenêutico sobre a Bíblia, que foi também a exposição de uma ciência simbólica da natureza, e pôde fiar-se neste mundo intermediário como o ponto de encontro das formas espirituais e materiais.(117) Os platônicos de Cambridge, especialmente Henry More, foram no entanto os últimos filósofos europeus a falar deste domínio da realidade, da mesma forma que Leibnitz foi o último grande filósofo ocidental a falar dos anjos.

A partir de então a operação cirúrgica cartesiana, na qual espírito e matéria ficaram totalmente separados, dominou o pensamento científico e filosófico. O domínio da ciência foi a matéria que era uma simples "coisa" completamente divorciada de qualquer aspecto ontológico que não fosse a pura quantidade. Embora houvesse protestos aqui e ali, especialmente entre os pensadores ingleses e germânicos, esta visão tornou-se o mesmo fator que determinou a relação entre homem e natureza, científica e filosoficamente. Assim, o racionalismo do século XVII é a base inconsciente de todos os pensamentos científicos posteriores até os dias atuais. Quaisquer que sejam as descobertas que se fazem nas ciências e quaisquer que sejam as modificações que se criam nas concepções de tempo, espaço, matéria e movimento, a base do racionalismo do século XVII persiste. Por esta mesma razão, outras interpretações da natureza, especialmente a simbólica, jamais foram seriamente consideradas e aceitas.

No século XVII, o hermetismo ainda continuou de forma acentuada, especialmente na Inglaterra. Houve também Jacob Boehme, o notável mestre sapateiro e teósofo, na Alemanha, cujo próprio aparecimento nesta época é muito significativo, e que influenciou profundamente a escola da Naturphilosophie, que reagiu tão severamente contra a filosofia mecanicista predominante. Estes desenvolvimentos são importantes para mostrar a continuidade em certos círculos, especialmente da Europa do norte, de uma concepção espiritual da natureza. Estas escolas ainda permaneceram periféricas na medida em que se considera sua influência sobre a ciência moderna, ü centro do palco continua a ser ocupado pela ciência e filosofia mecanicistas.

Durante o século XVIII, embora teoricamente a ciência prosseguisse por linhas estabelecidas no século dezessete, seu efeito filosófico era mais pronunciado. A filosofia de Descartes foi levada a sua conclusão lógica pelos; empiristas, por Hume e por Kant, que demonstraram a incapacidade de a razão puramente humana alcançar o conhecimento da essência das coisas, abrindo assim as portas para as filosofias irracionais que se seguiram a partir de seu advento. Através dos "enciclopedistas", Rousseau e Voltaire, tornou-se popular uma filosofia sem uma dimensão transcendente, e a verdade foi reduzida à utilidade.(118)

Se o século XVII ainda considerou os problemas ao nível de sua veracidade ou falsidade teóricas, a questão agora passou a ser a utilidade do conhecimento para o homem, que agora se tornara um nada, apenas uma criatura da terra, sem outro fim senão o de explorar e dominar as riquezas deste planeta. Esta inclinação prática e utilitária, cristalizada pela Revolução Francesa, acentuou o efeito da nova ciência mecanicista, ao dirigir mais atenção às ciências empíricas e buscando destruir qualquer vestígio de uma visão contemplativa em relação à natureza que ainda restasse.(119) Com a ajuda da nova ciência, a única incumbência deixada ao homem foi conquistar e dominar a natureza e satisfazer suas necessidades como um animal relativamente dotado de razão e pensamento analíticos.

A concepção materialista da natureza não passou sem ser desafiada no transcorrer do século XIX, especialmente na arte e literatura, onde o movimento romântico procurou restabelecer um vínculo mais íntimo com a natureza e com o espírito que a habitava. Os poetas filosóficos românticos, como Novalis, dedicaram-se acima de tudo ao tema da natureza e sua significação para o homem. Um dos mais destacados dentre estes, Wordsworth, escreveu na Excursão (Livro IX) :

"A cada Forma de existência é atribuído"
Assim pausadamente falava o venerável Sábio
"Um princípio ativo: embora fora do alcance
Dos sentidos e da observação, ele subsiste
Em todas as coisas, em todas as naturezas: nas
estrelas
Do céu de pleno azul, as nuvens que se
dissipam;
Na flor e na árvore, em cada um dos seixos
Que cobrem o leito dos riachos, as rochas
sólidas,
O orvalho, o ar invisível.
Tudo que existe tem propriedades que se estendem
Para além de si, propagando o bem, Uma simples bênção, ou mesclada de mal; Espírito que desconhece recanto isolado, Abismo, ou solidão; de elo a elo Circula, a alma de todos os mundos. Esta é a liberdade do universo."

Da mesma forma, um homem como John Ruskin viu a natureza como algo divino12° e falou do "poder espiritual do ar, das rochas e das águas".(121)

A atitude romântica face à natureza foi no entanto mais sentimental que intelectual. Wordsworth fala da "passividade sábia" e Keats da "capacidade negativa". Esta atitude passiva não podia fabricar e moldar conhecimento. Qualquer que tenha sido o serviço prestado pelo movimento romântico ao redescobrir a arte medieval ou a beleza da natureza virgem não conseguiu afetar o curso da ciência, nem acrescentar uma nova dimensão ao conteúdo da mesma, uma dimensão por meio da qual o homem fosse capaz de compreender aqueles aspectos da natureza que a ciência do século XVII e sua sucessora deixaram de considerar.

Quanto à filosofia do século XIX, a ciência rendeu-se à possibilidade de conhecer as coisas sob seu aspecto imutável e, com Hegel, ficou presa ao processo e à modificação. Fizeram com que o próprio Absoluto entrasse na corrente do processo dialético que foi equiparado p, uma nova lógica do processo e do vir-a-ser. A visão de uma realidade estática e imutável foi completamente esquecida em um universo onde, já há algum tempo, a realidade supra-sensível perdera sua condição objetiva e ontológica. As intuições de homens como Schelling ou Franz von Baader pouco puderam fazer para desviar o curso dos acontecimentos de um posterior mergulho no mundo do mero vir-a-ser e da modificação.

Quanto à ciência, o maior acontecimento ocorreu no campo da biologia, onde a teoria da evolução reflete mais o Zeitgeist do que uma teoria científica. Em um mundo onde os "múltiplos estados de existência" perderam seu sentido, onde não há base metafísica e filosófica para permitir ao homem interpretar o surgimento de diferentes espécies sobre a terra como muitos e sucessivos "sonhos cia Alma do Mundo", onde se retirou da criação as mãos do Criador através da propagação do deísmo, neste lugar não poderia mesmo haver outra explicação para a multiplicidade das espécies que não fosse a evolução temporal. A "corrente da existência" vertical tornara-se temporal e horizontal,(122) quaisquer que fossem os absurdos que esta visão pudesse implicar, metafísica e teologicamente. O resultado desta teoria, além de causar intermináveis disputas entre os popularizadores da evolução e os teólogos, gerou uma posterior alienação do homem em relação à natureza, ao remover do mundo vital a forma ou essência imutáveis das coisas, que por si só pode ser contemplada intelectualmente e pode tornar-se o objeto do conhecimento e da visão metafísicos. Ela também perdoou toda sorte de excessos na usurpação do direito de outras formas de vida, em nome da "sobrevivência do mais apto".

A teoria da evolução não fornece uma visão orgânica para as ciências, mas fornece ao homem um meio de reduzir o mais elevado ao mais baixo, uma fórmula mágica para se aplicar a tudo, a fim de explicar as coisas sem a necessidade de ter acesso a quaisquer princípios ou causas mais elevadas. Esta teoria também caminhou de mãos dadas com um historicismo predominante que é uma paródia da filosofia cristã da história mas que, não obstante, poderia suceder apenas no mundo cristão onde a própria verdade tornara-se encarnada no tempo e na história. A reação sempre ocorre contra uma afirmação e uma ação existentes.

Com o colapso da física clássica, no final do século XVIII, não houve uma força espiritual pronta a reinterpretar a nova ciência e integrá-la a uma nova perspectiva mais universal. Alguns viram neste colapso uma possibilidade de reafirmar outros pontos de vista que a concepção mecanicista monolítica do Universo previamente obstara. De um lado, o colapso significou a reinterpretaçáo da ciência, que destruiu até mesmo a possibilidade de um futuro contato com o mundo macrocósmico e com o simbolismo imediato das coisas. (Isto pode ser observado no caso da mudança da geometria euclidiana para as de Riemann e Lobachevski.) Por outro lado, significou a abertura de uma passagem a toda sorte de movimentos pseudo-espiritualistas e de ciências ocultas, que se enxertaram nas mais novas teorias da física, mas que em geral são ou resíduos degenerados de ciências cosmológicas mais antigas, não mais compreensíveis ou invenções s:'mplesm:nte perigosas e perniciosas. Dos setores genuinamente religiosos o colapso da física clássica não provocou uma resposta vigorosa que pudesse conduzir a uma síntese significativa. A resposta teológica foi em grande parte um fraco eco que freqüentemente adotou idéias abandonadas da própria ciência e algumas vezes, como no caso de Theilhard de Chardin, buscou uma síntese que, metafisi-camente, é um absurdo e, teologicamente, uma heresia.(123)

Foi esta longa história, da qual alguns destaques foram aqui assinalados, que finalmente conduziu à presente crise no encontro entre homem e natureza. Como assinalado no Capítulo I, somente através de uma redescoberta da verdadeira metafísica, especialmente das doutrinas sapienciais do Cristianismo e do renascimento dessa tradição no seio da Cristandade, a qual fez justiça à relação entre homem e natureza, é que se pode novamente assegurar uma hierarquia do conhecimento e restabelecer uma ciência simbólica da natureza que efetivamente complementará as ciências quantitativas de hoje. Somente desta forma pode ser criado um equilíbrio, um equilíbrio do qual o desenvolvimento destes últimos séculos foi-se descar tando, com velocidade sempre crescente, até chegar hoje ao desequilíbrio e falta de harmonia entre homem e natureza e que ameaça destruir a ambos de uma só vez. Assim, temos de nos voltar para a discussão da metafísica e para a tradição do estudo espiritual da natureza no seio do Cristianismo.

Notas:

109. Para a análise deste aspecto da questão no que diz respeito ao hermetismo, ver M. Eliade, "The quest for the 'Origin' of Religion", History of Religions, vol. IV, n.° 1, verão de 1964, pp. 156 e ss.

110. Apenas um pequeno número de eruditos como W. Pagel e recentemente A. Debus e F. Yates estudaram e tornaram conhecida a imensa influência da tradição paracelsiana e alquímica da Renascença sobre as ciências do século XVII. in Ver T. Burckhardt, "Cosmology and Modern Science", pp. 183-4.

111. Burckhardt, "Cosmology and Modem Science", pp. 184-5.

112. Já um século antes de Copérnico, Nicolau de Cusa em sua obra De docta ignorantia referiu-se à terra como uma estrela e acreditava em um universo ilimitado, cuja significação metafísica e esotérica ele apontou mais de uma vez. Ver R. Klibansky, "Copernic et Nicolas de Cuse", em Léonard da Vinci et l'experience scientifique du XVIe siècle: Paris, 1953.

113. "O próprio sistema heliocêntrico admite um simbolismo óbvio, dado que o mesmo identifica a origem da luz com o centro do mundo. Sua redescoberta por Copérnico são produziu, entretanto, uma nova visão espiritual do mundo; pelo contrário, foi comparável à perigosa popularização de uma verdade esotérica. O sistema heliocêntrico não encontra paralelo na experiência subjetiva das pessoas, nele o homem não tinha um lugar físico; em vez de ajudar a mente humana a ir além de si mesma e a considerar as coisas em termos da imensidade do cosmo, este sistema apenas encoraja um prometeanismo materialístico que, longe de ser super humano, acaba por ser subumano."

114. Ver A. Koyré, From the Closed World to the Infinite Universe: Nova York, 1958.

115. Ver E. Gilson, The Unity of Philosophical Experience, p. 127.

116. Gilson, ibid., Capítulo V.

117. Ver H. Corbin, Herméneutique spirituelle comparée (I. Sweden-borg-11. Gnose ismaélienne), Eranos Jahrbuch, Zurique, 1965.

118 "Com Voltaire, Rousseau e Kant, a não-inteligência burguesa se auto-eleva ao nível de "doutrina" e passa a ficar entrincheirada no "pensamento" europeu, dando surgimento, através da Revolução Francesa, à ciência positivista, à indústria e à "cultura" quantitativa. Daí em diante, a hipertrofia mental do homem "aculturado" prolonga a ausência de penetração intelectual; todo sentimento pelo absoluto e pelos princípios é sufocado em um empirismo vulgar, ao qual é enxertado um pseudomisticismo com tendências "positivistas" ou "humanistas". É provável que algumas pessoas venham a nos reprovar pela falta de reverência, mas gostaríamos de saber onde está a reverência dos filósofos que vergonhosamente retalham a filosofia de séculos e séculos." P. Schuon, Language of the Self (trad. de M. Pallis e D. M-. Matheson): Madrasta, 1959, p. 8, nota I.

119. "À época da Revolução do fim do século dezoito, a terra tornou-se definitiva e exclusivamente a meta do homem; o "Ser Supremo" era meramente um "consolo" e, como tal, alvo do ridículo; a multiplicidade aparentemente infinita das coisas sobre a terra exigiu uma infinidade de atividades, que forjaram um pretexto para rejeitar a contemplação ..., o homem estava finalmente livre para ocupar-se, do lado de cá da transcendência, com a descoberta do mundo terrestre e com a exploração de suas riquezas; por fim, estava livre de símbolos, livro da transparência metafísica; nada mais havia senão o agradável e o desagradável, o útil e o inútil, daí o desenvolvimento anárquico e irresponsável das ciências experimentais." Schuon, Light on the Ancient Worlds, p. 30.

120. "Ruskin via o universo material com vivacidade e clareza sobrenaturais, acreditando que o que via era divino." J. Rosenberg, The Darkening Glass, a Portrait of Ruskirís Genius: Nova York, 1961, pp. 4-5.

121. Ibid., p. 7.

122. Sobre a cadeia da existência e sua relação com a teoria da evolução, ver O. Lovejoy, The Great Chain of Being: Cambridge (E.U.A.), 1933.

123. "O teilhardismo, como sintoma de nosso tempo, é comparável a uma daquelas fissuras que se devem à própria solidificação da caixa craniana, que não se abrem em direção ao alto, em direção ao céu da unidade verdadeira e transcendente, mas para baixo, em direção ao domínio do psiquismo inferior: enfadada de sua própria visão incoerente do mundo, a mente materialista se deixa levar a uma embriaguez pseudo-espiritual, da qual esta fé — ou este materiaiismo sublimado — que acabamos de descrever marca uma fase de especial significação." Burckhardt, "Cosmology and Modern Science", Tomorrow, outono de 1964, p. 315.