Seyyed

O Homem e a Natureza

CAPÍTULO III
Alguns Princípios Metafísicos Pertinentes à Natureza

Conferência/Livro por S.H. Nasr

Até aqui vimos com freqüência mencionando a metafísica. Agora é hora de definir o que pretendemos com esta forma tão importante de conhecimento, cujo desaparecimento é o responsável mais direto pelo nosso dilema atuai. Metafísica é a ciência do Real, da origem e do fim das coisas, do Absoluto e, à sua luz, do relativo. É uma ciência tão estrita e exata quanto a matemática e com a mesma clareza e certeza, mas só pode ser alcançada através da intuição intelectual e não simplesmente através do raciocínio. Difere assim da filosofia como esta é habitualmente entendida.(124) É antes uma theoria da realidade cuja realização significa santidade e perfeição espiritual, e portanto só pode ser alcançada no contexto de uma tradição revelada. A intuição metafísica pode ocorrer em qualquer parte — pois "o espírito desponta onde lhe apraz" — mas a realização efetiva da verdade metafísica e sua aplicação à vida humana só podem ser alcançadas dentro de uma tradição revelada que confere eficácia a certos símbolos e ritos, nos quais a metafísica tem de fiar-se para sua realização.
Esta ciência suprema do Real, que sob certa luz é o mesmo que gnose, é a única ciência que pode distinguir entre o Absoluto e o relativo, aparência e realidade. É so mente à sua luz que o homem pode distinguir entre níveis de realidade e condições de existência e ser capaz de ver cada coisa em seu lugar no esquema total das mesmas. Além disso, essa ciência, assim como a dimensão esotérica, existe dentro de toda tradição ortodoxa e integrai, estando unida a um método espiritual totalmente derivado das origens da tradição em questão.

Nas tradições do Oriente, a metafísica manteve-se viva até hoje, e a despeito da diferença de fundamentos há uma unidade doutrinai que justifica o uso do termo "Metafísica Oriental",125 embora a metafísica não conheça Oriente ou Ocidente. No Ocidente também teve lugar a autêntica metafísica da mais elevada ordem, entre os gregos, nos escritos pitagórico-platônicos e especialmente com Plotino. Em todos estes casos a metafísica é a exposição doutrinai que foi o fruto de uma via espiritual atuante.

No Cristianismo igualmente encontra-se a metafísica nos escritos de alguns dos primeiros fundadores da teologia cristã, como Clemente e Orígenes, Irineu, Gregório de Nicéia e Gregório Nazianzeno, com Erigena, Dante e Eckhart e novamente com Jacob Boehme. Entre os escritores ortodoxos há uma exposição metafísica ainda mais aberta e completa do que aquela que se encontra entre os autores latinos. Mas mesmo a teologia oficial da igreja latina, especialmente a escola augustiniana, contém metafísica, que no entanto é muito mais oculta e indireta.

Na filosofia ocidental, contudo, desde Aristóteles, a infeliz prática de considerar a metafísica como um ramo da filosofia veio a se estabelecer de forma que esta, com o aparecimento da dúvida filosófica, também ficou desacreditada. Neste domínio, o racionalismo da filosofia grega posterior fortificou a tendência, dentro da teologia crista oficial, a enfatizar antes a verdade e o amor que a inteligência e o conhecimento sapienciais. Estes dois fatores combinaram-se para fazer da metafísica e da gnose um aspecto periférico da vida intelectual do homem ocidental, especialmente a partir do fim da Idade Média e da Renascença. O que é comumente chamado metafísica na filosofia pós-medieval, em grande parte, nada é senão uma extensão da filosofia racionalista e, na melhor das hipóteses, um pálido reflexo da verdadeira metafísica. A então chamada metafísica, que filósofos como Heidegger criticaram e consideraram como falida, não é a doutrina metafísica que temos em mente. A metafísica, ligada a uma filosofia que é a um só tempo perene e universal, não conhece princípio nem fim. É o cerne da philosophia perennis a que Leibnitz se referiu.

Na medida em que a perda do conhecimento metafísico é responsável pela perda da harmonia entre homem e natureza e do papel das ciências da natureza no esquema total do conhecimento, e pelo fato de que este conhecimento foi quase esquecido no Ocidente enquanto continuou a sobreviver nas tradições do Oriente, é para estas tradições orientais que devemos nos voltar a fim de redescobrir a significação metafísica da natureza e reviver esta tradição metafísica no seio do Cristianismo. Se o Oriente está aprendendo por compulsão e necessidade as técnicas, ocidentais de dominação sobre a natureza, é com a metafísica oriental que se deve aprender como impedir esta dominação de tornar-se mero auto-aniquilamento.

Voltando-nos primeiramente para o Extremo Oriente, vemos na tradição chinesa, especialmente no Taoísmo e também no Neoconfucionismo, uma devoção à natureza e uma compreensão de sua significação metafísica, o que é da maior importância. Esta mesma atitude reverente face à natureza, junto a um forte sentido de simbolismo e uma consciência da lucidez do cosmo e de sua transparência ante as realidades metafísicas, é encontrada no Japão. O Xintoísmo fortificou enormemente esta atitude. É por isso que na arte do Extremo Oriente, especialmente nas tradições taoístas e zen, as pinturas de cenas da natureza são verdadeiros ícones. Não evocam simplesmente um prazer sentimental no observador, mas transmitem graça, e são veículos de comunhão com a realidade transcendental.

No Taoísmo há sempre a consciência da presença da dimensão transcendente simbolizada pelo vazio tão dominante nas pinturas de paisagens. Mas esse vazio não é o não-ser no sentido negativo, mas o Não-Ser que transcende mesmo o Ser e é escuro devido apenas a um excesso de luz. É como a divina escuridão a que se refere Dionísio Aeropagita, ou a vastidão da Divindade (dia wüsste Gottheit) de Mestre Eckhart. É por isso que o Não-Ser ou Vazio é também o princípio do Ser, e através do Ser o princípio de todas as coisas. Assim lemos no texto sagrado do Taoismo, o Tao Te-Ching:

"Todas as coisas sob o Céu são produtos do Ser, mas o próprio Ser é o produto do Não-Ser."(126) Nesta simples declaração está contido o princípio de toda metafísica, ao salientar a estrutura hierárquica da realidade e a dependência de tudo que é relativo ao Absoluto e ao Infinito, simbolizado pelo Vazio ou Não-Ser, que é livre e sem limites. Da rnesma forma, um tanto mais elaboradamente, Chuang-Tzu afirma o mesmo princípio, quando escreve:

"No Solene Começo (de todas as coisas) nada havia em toda vacuidade do espaço; nada havia que se pudesse idar nome. Foi então neste estado que brotou a primeira existência — a primeira existência, mas ainda sem forma corpórea. A partir destas coisas pôde então ser produzido (recebendo) o que chamamos sua característica própria. Aquilo que não tinha forma corpórea foi dividido, e então, sem intermissão, houve o que chamamos processo de conferição. (Os dois processos) continuando em operação produziram as coisas. Ao completarem-se as coisas, foram então produzidas as linhas delimitadoras de cada uma, o que chamamos forma corpórea. Essa forma era o corpo, preservando em si o espírito, e cada uma tinha suas manifestações peculiares, o que chamamos sua Natureza. Quando a Natureza for cultivada, a forma retornará a sua característica própria; e quando esta for atingida, encontrar-se-á a mesma condição que a do início".(127)
Na medida em que o Céu, no sentido metafísico e em seu emprego característico chinês, vem da Origem e da Terra, também em sua significação metafísica, a partir do Céu, o homem tem de viver neste mundo com uma total consciência da hierarquia. Pois como diz o Tao Te-Ching: "Os caminhos do homem são condicionados pelos caminhos da terra, os da terra pelos do céu, os do céu pelos do Tao, e o Tao veio a ser por si mesmo."(128) O céu é portanto um reflexo do Princípio Supremo, e a terra, o reflexo do céu. A Terra do Taoismo não é na natureza profana que se apresenta como gravidade oposta à graça, mas é uma imagem de um protótipo divino, cuja contemplação conduz ao alto, em direção àquela realidade para a qual "céu" é a expressão tradicional. Por esta razão também o mundo pode ser conhecido, num sentido metafísico e não empírico, através de sua Causa e Princípio.

"O Mundo tem uma Causa Primeira que pode ser vista como a Mãe do Mundo. Quando se encontra a Mãe, pode-se conhecer o Filho. Conhecendo o Filho e sem perder de vista a Mãe, até o final de seus dias, ele não sofrerá dano algum."(129) Essa ciência é segura e sem perigo, a qual percebe a manifestação sem perder de vista o Princípio.
É de cardeal importância observar que o Tao é tanto o Princípio, o meio de atingi-lo, como ainda a ordem das coisas. É, na realidade, a ordem da natureza,(130) "se lembrarmo-nos de que tudo que o Taoismo infere por natureza. O Tao, o Princípio que é também a ordem e a harmonia de todas as coisas, está presente em toda parte, em tudo que seja grande ou pequeno. "O Tao não se esgota naquilo que é o mais grandioso, tampouco nunca está ausente do que é mais ínfimo; e, por conseguinte, pode ser encontrado completo e difuso em todas as coisas."(131) "Para se viver em paz e harmonia com a natureza ou com a Terra, tem-se de viver em harmonia com o Céu e, a fim de realizar esta meta, tem-se de viver de acordo com o Tao e em conformidade com o mesmo, o Tao que impregna toda as coisas e também transcende todas as coisas.(132)

A natureza, como resultado direto do Tao e de suas leis, apresenta-se em oposição às trivialidades dos artefatos humanos e à artificialidade da qual o homem se cerca. Pois como diz Chuang-Tzu ,"o que é da Natureza é interno. O que é do homem é externo. Que bois e cavalos tenham quatro patas é coisa da Natureza. Que se deva pôr um cabresto na cabeça do cavalo ou uma argola atravessando as narinas do boi é coisa do homem."(133) É por isso que o objetivo do homem espiritual é contemplar a natureza e com ela tornar-se uno, tornar-se "natural". Não se almeja isto num sentido panteísta ou naturalista, mas num sentido metafísico, de forma que tornar-se natural signifique submeter-se totalmente ao Tao que, a um só tempo, é transcendente e o princípio da natureza. O objetivo do sábio é estar em harmonia com a natureza, pois, através desta harmonia chega-se à harmonia com os homens, sendo esta mesma harmonia o reflexo da harmonia com o céu. Chuang-Tzu escreve: "Qualquer um que veja claramente a excelência de toda a natureza pode ser chamado Cepo de Deus ou Pilar de Deus, porque está em harmonia com a natureza. Qualquer um que esteja em paz com o mundo está em harmonia com seu próximo e contente com os homens. Aquele que está em harmonia com a natureza está contente com a natureza".(134)

Estar contente com a natureza, precisando bem, significa antes aceitar seus ritmos que procurar dominá-los e subjugá-los. A natureza não deve ser julgada de acordo com sua utilidade para o homem, tampouco o homem terreno deve tornar-se a medida de todas as coisas. Não há antropomorfismo associado à relação do homem com a natureza.(135) O homem deve aceitar e seguir a natureza das coisas e procurar não perturbar a Natureza por meios artificiais.(136) A ação perfeita é agir sem agir, sem interesse próprio e apego ou, em outras palavras, de acordo com a natureza que age li vremente e sem cobiça, avareza ou outros motivos inconfessados. Há, de fato, no Taoísmo uma oposição à aplicação das ciências da natureza para o bem-estar puramente material do homem, como se vê na famosa estória registrada nas palavras de Chuang-Tzu:

"Hwang-Ti estava no trono há dezenove anos, e seus ordenanças estavam em operação por todo reino, quando ouviu que Kwang Khang-tze (um sábio taoísta) estava vivendo no cume do Khung-Thung, e foi vê-lo. 'Eu ouvi', disse ele, 'que vós, senhor, adquiristeis profundo conhecimento do perfeito Tao. Ouso perguntar-vos o que nele é essencial. Desejo escolher as sutis influências do céu e da terra, e com elas auxiliar (o crescimento de) os cinco cereais para (melhor) alimentar o povo. Desejo também dirigir (a operação de) o Yin e o Yang, a fim de assegurar o conforto de todos os seres vivos. Como devo proceder para a consecução destes objetivos?' Kwang Khang-tze respondeu: 'O que desejas é saber a respeito da substância original de todas as coisas; aquilo cujo direção desejas ter é essa substância em sua forma fragmentada e dividida. Segundo o seu modo de governar o mundo, os vapores das nuvens, antes de se agregarem, desceriam em forma de chuva; as ervas e as árvores perderiam suas folhas antes delas amarelarem; e a luz do sol e da lua apressariam a extinção da vida. Sua mente é a de um adulador com palavras plausíveis —hão está apta a que eu possa falar-lhe do perfeito Tao."(137)

É preciso ser lembrado que esta mesma civilização chinesa, onde se cultivou essa visão contemplativa da natureza, e onde houve até mesmo oposição à aplicação das ciências da natureza, desenvolveu a física, a matemática, a astronomia e a história natural e, além disso, ficou conhecida através de toda sua história por seu gênio e proezas tecnológicos. É preciso, ainda, lembrar que a maioria dos primitivos alquimistas, geólogos e farmacologistas da China eram taoístas;(138) e que a polarização do Céu e da Terra e a significação religiosa da natureza persistiram até quando a tradição chinesa manteve-se forte. A significação metafísica da natureza como exposta no Taoísmo, e também no Budismo, mesmo contribuindo para o desenvolvimento de ciências da natureza, permaneceu como uma balança que preservara a hierarquia do conhecimento e impedia a natureza de tornar-se profana.

Os chineses até desenvolveram um sistema astronômico, o Hsuan yeh, que como a astronomia pós-copernicana baseava-se em uma concepção ilimitada de espaço e tempo, tendo sido mesmo utilizada pelos proponentes do sistema copernicano na Europa contra a astronomia ptolomaica. Mas na China este "cosmo aberto" foi mais uma vez associado a uma explicação metafísica, jamais sendo-lhe permitido destruir a harmonia entre homem e natureza, que é tão fundamental às tradições do Extremo Oriente.

No Japão, igualmente, encontramos as concepções taoísta e também budista da natureza, provenientes da China, integradas à religião xintoísta local e na qual mais uma vez, como em todos os ramos da tradição xamânica, há uma ênfase especial sobre a significação da natureza em sentido cultista.(139) No seio de um povo com uma notável sensibilidade artística desenvolveu-se o mais íntimo contato com a natureza; dos jardins de pedras e pinturas de paisagens aos arranjos de flores, tudo se baseia no conhecimento das correspondências cósmicas, geografia sagrada, no simbolismo das direções, formas e cores. Métodos espirituais tornaram-se fiéis aliados da contemplação introspectiva da natureza e da intimidade com seus ritmos e formas. A ávida procura de objetos japoneses no Ociden te, nos últimos anos, é em muitos casos o sinal de uma nostalgia oculta para novamente encontrar a paz com a natureza e escapar da feiúra do ambiente criado pela tecnologia moderna. Em sua especial devoção pela natureza como via de graça e sustentação espiritual, as tradições do Extremo Oriente em sua metafísica, ciência e arte têm uma mensagem da maior importância para o mundo moderno, onde o confronto homem e natureza quase sempre se baseia na guerra, raramente na paz, esta paz tão avidamente buscada e tão dificilmente encontrada.

Quando passamos à tradição hindu, também encontramos uma elaborada doutrina metafísica que diz respeito à natureza, paralelamente ao desenvolvimento de muitas ciências no seio do hinduísmo, algumas das quais influenciaram de fato a ciência ocidental através do Islam. Quando dirigimos nosso pensamento para a tradição hindu, nossa atenção volta-se geralmente para a doutrina vedantina de Atman e maya, o mundo sendo considerado não como realidade absoluta, mas como um véu que encobre o Eu Supremo. Uma interpretação simplista desta visão, especialmente a que prevalece entre os modernos pseudo-vedantinos, concluiria que o mundo sendo maya, geralmente traduzida como ilusão, pouco importa se a pessoa vive na natureza virgem ou no mais feio dos centros urbanos, se se encontra rodeada de arte sagrada ou cercada do pior dos lixos produzidos pela máquina.

Esta visão, porém, é o pior possível dos equívocos. É maya pura e simples. O que o Hinduísmo declara, como todas as outras doutrinas orientais, é a necessidade de se conseguir liberar-se do cosmo, que é maya. Entretanto maya não é apenas ilusão, que é seu aspecto negativo, mas também o jogo divino ou arte.140 Ela encobre o Eu Supremo, a Realidade Absoluta, mas também a revela e a exibe. Do ponto de vista de Atman ou Brahman, o Universo é irreal; somente o próprio Absoluto é real, no sentido absoluto. Para aquele que vive em maya a realidade relativa em que se encontra é, no mínimo, tão real quanto seu próprio eu empírico; e além disso pode ser de ajuda na obtenção da liberação. Embora para o sábio o cosmo seja uma prisão, tam bém é possível transcendê-la por meio do conhecimento de: sua estrutura e mesmo com seu auxílio. É por isso que o Hinduísmo, como uma tradição integral, desenvolveu elaboradas ciências cosmológicas e naturais, e mesmo técnicas espirituais intimamente ligadas ao uso da energia latente na. natureza. Não obstante, toda ciência, física, matemática e alquímica, como também as propriamente religiosas e espirituais, estão ligadas à matriz total do Hinduísmo e em certos casos do Budismo, e aos princípios metafísicos que dominam toda a tradição.(141)

Dentre as seis darshanas ou escolas intelectuais do Hinduísmo, nenhuma é tão analítica e presa ao mundo corpóreo quanto a Vaisesika. Esta escola ocupa-se do mundo físico e mantém uma visão inteiramente atomista, começando, com os cinco elementos ou bhutas a partir dos quais se formam os corpos. À primeira vista, mais parece um sistema afim da física atomista e mecanicista que se desenvolveu no Ocidente no fim da Antigüidade e novamente no século dezessete, e que era geralmente de sentimento anti-religioso.(142) Mas no Hinduísmo, como no Budismo, desenvolveu-se um atomismo combinado com uma visão espiritual do Universo. O sistema Vaisesika baseia-se no conhecimento das; seis categorias ou padarthas, que são: substância, atributo ou qualidade, ação, generalidade, individualidade e ineréncia. A substância em si é de nove espécies: terra, água, fogo, ar, éter, tempo, espaço, mente e espírito. O conhecimento do mundo físico, ou fundamentalmente destas seis categorias, é o correto conhecimento {ttattvajnàpna), um conhecimento que só pode ser obtido através da pureza interior e com a ajuda do dharma ou graça, pois é necessário lembrar que, no sistema Nyaya-Vaisesika, acima dos seis padarthas encontra-se Isvara, a Divindade Pessoal, que é a causa do mundo.

Um sistema assim tão analítico e tão atentamente ocupado com coisas naturais como o Vaisesika, tem como meta a liberação da alma do mundo atomístico, ao qual ela é atraída pelo falso conhecimento.(143) De fato, no começo de um dos principais tratados desta escola, o Padarthad-harmasangraha, diz: "Um tratado que se ocupa das propriedades das coisas jamais poderá conduzir à mais elevada bem-aventurança, assim como palavras nada fazem além de denotar os significados verbais". A tal objeção dá-se a resposta: "Um conhecimento da verdadeira natureza das seis categorias — substância, qualidade, ação, generalidade, individualidade e inerência — através de suas semelhanças — é o meio de realizar a mais elevada bem-aventurança".(144)

O conhecimento do mundo exterior é fundamentalmente o conhecimento do próprio indivíduo, e mesmo uma ciência cosmológico-analítica e natural não está divorciada da enteléquia humana no sentido mais elevado, a saber, a liberação de toda limitação. Isto não é absolutamente antropomorfismo. Pelo contrário, é a única forma de conhecimento através da qual o homem pode escapar às limitações de seu próprio ego. A respeito do fundador tradicional do sistema Vaisesika, Kanada, foi dito: "Ele (Kanada) realizou o conhecimento dos princípios {tattvas), da ausência de paixão e do domínio de si. Em seu íntimo refletiu e concluiu que o conhecimento dos princípios dos seis padarthas (atributos), por meio de suas semelhanças e diferenças, é a única via real para se alcan çar a auto-realização; e que esta via poderia ser facilmente atingida pelos discípulos através do dharma (mérito ou valor) da renúncia."(145) Assim, o conhecimento da natureza está inextricavelmente sujeito às leis espirituais e morais e à pureza daquele que busca alcançar este conhecimento. É como se o Hinduísmo, como tantas outras tradições, intuitivamente sentisse que o único meio seguro de penetrar nos mistérios da natureza e desenvolver a física, no sentido universal deste termo, é tornar-se santo e buscar uma vida santificada.

Outro dos darshanas, o Samkhya, que contém uma das mais elaboradas cosmologias e filosofias naturais dentre todas as tradições, começa igualmente com o problema do triplo sofrimento presente na alma e os meios de remover este sofrimento, como está claramente asseverado no início do Samkhya Karika.(146) Os três tipos de sofrimento, que são o natural e intrínseco como as doenças, o natural e extrínseco como qualquer sofrimento causado por uma origem externa e, por fim, o sofrimento divino ou sobrenatural causado por fatores espirituais, só podem ser superados por um conhecimento analítico dos três princípios desta escola, a saber, a substância ou natureza primeira (prakriti), a matéria manifestada que está em estado de fluxo (vyaktt) e, finalmente, o Espírito que não gera nem é gerado (Purusa).

O método Samkhya busca remover da alma o sofrimento e a aflição através do conhecimento discriminativo, etimologicamente Samkhya significando discriminação.(147) Este sistema começa com Prakriti, a substância ma terna principal do Universo ou natureza em seu sentido mais vasto, de onde, através da ação das três tendências cósmicas ou gunas, a saber, satwa, rajas e tamas, ou bondade, paixão e obscuridade, ou as tendências ascendente, expansiva e descendente, todo o domínio cósmico é trazido à existência. Há vinte e cinco tattvas ou princípios cujo conhecimento forma a base do sistema Samkhya. Antes de tudo há a quádrupla divisão das coisas em: produtora, que é Prakriti; aquilo que produz e é produzido, como o intelecto ou Buddhi; aquilo que é apenas produzido, como os sentidos e os elementos; e, finalmente, aquilo que não produz nem é produzido, isto é, Purusa, o Espírito Universal, que se coloca acima e é distinto de Prakriti e todos os seus produtos.(148)

Além disso, existe a divisão mais detalhada em tattvas. Através da ação dos gunas, que estão presentes em todos os níveis da realidade cósmica, gera-se primeiro o Buddhi ou intelecto, e deste o princípio do Egoísmo, ou Ahankara. Deste último, por sua vez, procedem os cinco elementos sutis (tanmatra), que são os princípios dos elementos grosseiros, corpóreos. A partir também de Ahankara emergem os onze sentidos que consistem de: os cinco órgãos dos sentidos, os cinco órgãos da ação e a faculdade receptiva e discriminativa (manas). Dos elementos sutis são produzidos os elementos grosseiros (mahabuta). Acima do todo este domínio acha-se o Purusa e o objetivo de todas as ciências da natureza é precisamente que a alma se desvencilhe dos sentidos da percepção, com os quais, por engano, se identifica através da ação de manas e ahankara.

O próprio Universo, que emerge do seio da Prakriti ou Natureza, é formado de tal modo que permite ao homem contemplá-lo no sentido metafísico e também por conseqüência obter do mesmo sua separação ou catarse.(149) Além disso, uma vez que o espírito obtenha conhecimento da natureza, ela mesma o auxilia nesta separação e retira-se de cena. Como lemos no Samkhya-Karika: "Como uma dançarina que tendo-se exibido no palco pára de dan çar, assim a natureza (Prakriti) cessa (de produzir) quando se torna evidente à alma."(150) Portanto, no sistema Samkhya como no Vaisesika, o conhecimento da natureza conduz à catarse da alma e a sua liberação. Além disso, a própria Natureza é de ajuda neste processo de realização, auxiliando o espírito que se arma do conhecimento discriminativo.

Este tema da confiança na natureza para a tarefa da realização espiritual é levado a sua plena conclusão nas práticas atribuídas ao Tantra Yoga. No tantrismo, a Sakti ou princípio feminino torna-se a encarnação de toda força e poder existentes no Universo, e através da utilização deste mesmo poder o iogue, como que cavalgando as ondas do mar, procura ultrapassar a natureza e o oceano da manifestação cósmica. No tantrismo há uma elaborada correspondência entre o homem e o cosmo, a própria coluna vertebral é chamada o Meru do corpo humano.(151) De fato, na via tântrica ou sadhana, o corpo ou a carne do homem e o cosmo vivente são os elementos fundamentais.(152) O Universo é o "corpo do Senhor",(153) e ao morrer e enterrar-se em seu seio, nos braços da natureza no papel da Divina Mãe, o iogue encontra sua liberação. A morte e a ressurreição do iogue é muito semelhante ao salve et coagula dos alquimistas cristãos medievais e, de fato, o tantrismo tornou-se associado à alquimia na índia, apresentando doutrinas extremamente parecidas com as dos herméticos ocidentais, que também morreram no princípio maternal a fim de serem ressuscitados no espírito e que buscavam o "corpo glorioso" assim como os iogues buscavam o "corpo diamantino" (vajrayana). O tantrismo em sua conexão com a alquimia apresenta uma interpretação simbólica bastante profunda da natureza, estreitamente ligada a uma via espiritual. Devido a seu estreito paralelismo com a tradição alquímica cristã, o tantrismo é um meio bastante efetivo de relembrar idéias e doutrinas há muito esquecidas e perdidas no Ocidente.

A civilização indiana também desenvolveu um grande número de ciências que foram completamente integradas à estrutura da tradição. Os Vedangas, consistindo das seis ciências da fonética (siksa); do ritual (kalpa); da gramática (vyakarana); da etimologia {nirukta); da métrica (chandas) e da astronomia (jyotisa), surgiram ao final do período bramanico como ciências inspiradas (smrti), como comentários e complementos dos Vedas divinamente revelados (sruti).(154) O próprio Vedanga significa literalmente "membro do Veda" e subentende que estas ciências sejam uma extensão do corpo principal da tradição contida nos Vedas. Abaixo destas ciências encontram-se o Upaveda (Veda secundário), consistindo de medicina (Ayur-veda); ciência militar (Dhanur-veda); música (Gandharvaveda) e física e mecânica (Sthapatya-veda). Estas ciências são consideradas como uma aplicação dos princípios contidos nos Vedas em domínios específicos.(155) Mesmo os elementos tomados de fontes babilônicas, gregas e iranianas foram integrados a esta estrutura tradicional.

Além do mais, as ciências da aritmética (vyaka-ganita), álgebra Çbijaganita) e geometria (rekha-ganita), que influenciaram tão consideravelmente as ciências muçulmana e ocidental, estavam estreitamente ligadas aos princípios do Hinduísmo e também do Budismo, como vemos na relação entre o indefinido da álgebra e o Infinito metafísico, ou entre o número zero, utilizado pela primeira vez na aritmética indiana, e a doutrina metafísica do vazio (shunya).(156) Assim, em todos os níveis, havia um vínculo intricado e inextrincável entre as ciências e os princípios metafísicos da tradição.

Nenhuma ciência jamais foi cultivada fora do mundo intelectual da tradição, e a natureza tampouco jamais foi profanada e transformada em assunto de estudo puramente secular. Ao voltarmo-nos para o Islam, encontramos uma tradição religiosa mais afim do Cristianismo em suas formulações teológicas, embora possuindo em seu âmago uma gnose ou sapientia semelhante às doutrinas metafísicas de outras tradições orientais. Neste domínio, como em tantos outros, o Islam é o "povo do meio", o ummah wasatah a que o Alcorão se refere, em sentido tanto geográfico quanto metafísico. Por esta razão, a estrutura intelectual do Islam e suas doutrinas e ciências cosmológicas da natureza podem ser da maior ajuda no despertar de certas possiblidades dormentes no seio do Cristianismo.(157)

Encontra-se no Islam uma elaborada hierarquia do conhecimento integrada pelo princípio de unidade (al-taw-hid) que atravessa como um eixo todas as modalidades de conhecimento e também de existência. Há ciências jurídicas, sociais e teológicas; e há as gnósticas e metafísicas, todas derivadas em seus princípios da origem da revelação, que é o Alcorão. Desenvolveram-se então, na civilização islamita, elaboradas ciências filosóficas, naturais e matemáticas que passaram a integrar a visão islamita e que foram totalmente muçulmanizadas. A cada nível de conhecimento a natureza é vista sob uma luz específica. Para os juristas e teólogos (mutakallimun) ela é a base para a ação humana. Para o filósofo e cientistas é um domínio para ser analisado e compreendido. Ao nível metafísico e gnóstico é o objeto da contemplação e o espelho que reflete as realidades supra-sensíveis.(158)

Além disso, durante toda história islamita houve uma íntima conexão entre gnose, ou a dimensão metafísica da tradição, e o estudo da natureza, como também a encontramos no Taoísmo chinês. A grande maioria dos ci entistas muçulmanos como Avicena, Qutb al-Din Shirazi e Baha' al-Din 'Amili eram ou sufis praticantes ou estavam intelectualmente ligados às escolas gnósticas iluministas. No Islam como na China, a observação da natureza e mesmo a experimentação mantiveram-se em grande parte ao lado do elemento gnóstico e místico da tradição, enquanto o pensamento lógico e racionalista geralmente permaneceu alheio à verdadeira observação da natureza. Nunca ocorreu o alinhamento encontrado na ciência do século dezessete, a saber, um casamento entre racionalismo e ernpirismo, que no entanto estavam agora totalmente divorciados daquela experimentação que foi central para o homem do passado, a saber, a experimentação consigo mesmo através de uma disciplina espiritual.(159)

No Islame o elo inseparável entre homem e natureza, e também entre as ciências da natureza e a religião, pode ser encontrado no próprio Alcorão, o Livro Divino que é o Logos ou Verbo de Deus. Como tal, é também a origem da revelação que é a base da religião e dessa revelação macrocósmica que é o Universo. É tanto o Alcorão registrado (ai Qur'an al-taãwini) quanto o "Alcorão da criação" (al-Qur'an al-takwini) que contêm as idéias ou arquétipos de todas as coisas. É por isso que o termo utilizado para significar os versos do Alcorão ou ayah também significa os eventos que têm lugar na alma dos homens e nos fenômenos da natureza.(160)

Para o homem, a Revelação é inseparável da revelação cósmica que também é um livro de Deus, apesar de o íntimo conhecimento da natureza depender do conhecimento do significado secreto do texto sagrado, ou interpre tação hermenêutica, (ta'wil) .(161) A chave para o significado secreto das coisas reside em ta'wil, em penetrar, partindo do significado exterior (zahir), no significado interior (batin) do Alcorão, um processo que é exatamente o contrário do criticismo mais elevado de hoje. A busca às raízes do conhecimento do significado esotérico de um texto sagrado é também encontrada em Filo e em certos autores medievais cristãos, como Hugo de São Vítor e Joaquim de Flora. Fora da corrente principal da ortodoxia é encontrada, após a Renascença, em escritores como Swedenborg. É precisamente esta tradição, no entanto, que se extingue no Ocidente, com a obliteração das doutrinas metafísicas, deixando o texto sagrado opaco e impossibilitado de responder às questões impostas pelas ciências naturais. Deixados unicamente com o significado externo da Sagrada Escritura, os últimos teólogos cristãos não puderam encontrar outro refúgio, a não ser um fundamentalismo cuja patética fuga ante a ciência do século XIX ainda está fresca na memória.

Ao se recusar e separar completamente o homem da natureza, o Islame preservou uma visão integral do Universo e vê nas artérias das ordens cósmica e natural o fluxo da graça divina ou barakah. O homem busca o transcendente e o sobrenatural, mas não contra o pano de fundo de uma natureza profana que se opõe à graça e ao sobrenatural. Do íntimo da natureza o homem busca transcendê-la, e ela própria pode ser um auxílio neste processo, desde que este possa aprender a contemplá-la, não como um domínio independente da realidade, mas como um espelho que reflete uma realidade mais elevada, um vasto panorama de símbolos que falam ao homem e têm significado para o mesmo.(162 )

O propósito do aparecimento do homem neste mundo é, segundo o Islam, de ganhar total conhecimento das coisas, tornar-se o Homem Universal (al-insan al-kamil), o espelho que reflete todos os Nomes e Qualidades Divinos.(163) Antes de sua queda o homem estava no estado edênico, o Homem Primordial (al-insan al-qaãim); após sua queda perdeu este estado, mas pela virtude de encontrar-se como o ser central em um Universo que pode conhecer completamente, ele pode ir além do estado em que se encontrava antes da queda para se tornar o Homem Universal. Portanto, se tirar vantagem da oportunidade que a vida lhe concedeu, com a ajuda do cosmo ele pode deixá-la com mais do que tinha antes da queda.

O propósito e objetivo da criação é, na realidade, que Deus venha a Se "conhecer" através de Seu perfeito instrumento de conhecimento que é o Homem Universal. O homem portanto ocupa uma posição específica neste mundo. Está no eixo e centro do milieu cósmico, a um só tempo mestre e zelador da natureza. Ao lhe ser ensinado os nomes de todas as coisas, obtém domínio sobre elas, mas este poder só lhe é dado porque ele é o representante (khalifah) de Deus na terra e o instrumento de Sua Vontade. Ao homem é dado o direito de dominar a natureza apenas em virtude de sua aparência teomórfica, não como um rebelde contra o céu.

O homem é de fato o veículo da graça para a natureza; através de sua ativa participação no mundo espiritual ele lança luz no mundo da natureza. Ele é a boca através da qual a natureza respira e vive. Devido à íntima ligação entre o homem e a natureza, o estado interior deste se reflete na ordem externa.(164) Se não houver mais con templativos e santos, a natureza tornar-se-á desprovida da luz que a ilumina e do ar que a mantém viva. Isto explica porque, quando o ser interno do homem torna-se escuridão e caos, a natureza também, da harmonia e da beleza, passa ao desequilíbrio e à desordem.(165) O homem: vê na natureza aquilo que ele próprio é, e só penetra no significado secreto da mesma com a condição de ser capaz de penetrar nos mais profundos recônditos de seu próprio ser e de deixar de residir meramente na periferia deste. Os homens que vivem apenas na superfície do ser podem estudar a natureza como algo a ser manipulado e dominado. Mas somente aquele que se voltou para a dimensão interna de seu ser pode ver á natureza como um símbolo, como uma realidade transparente, podendo chegar a conhecê-la e compreendê-la no verdadeiro sentido.

No Islam, devido a esta mesma concepção do homem e da natureza, esta jamais foi considerada como profana, e tampouco as ciências da natureza, consideradas como natura naturata, jamais foram estudadas sem a lembrança da natura naturans. A presença da doutrina metafísica e da hierarquia do conhecimento permitiram ao Islame desenvolver muitas ciências que exerceram enorme influência sobre a ciência ocidental sem que estas destruíssem o edifício intelectual do Islam. Um homem como Avicena pode ser físico e filósofo peripatético, e ainda expor sua "Filosofia Oriental", que buscava o conhecimento através da iluminação.(166) Um Nasir al-Din Tusi pôde ser o mais destacado matemático e astrônomo de seus dias, o ressuscitador da filosofia peripatética, o autor da mais conhecida obra sobre teologia Sh'ite e de um tratado inigualável sobre sufismo. Seu discípulo Qutb al-Din Shirazi pôde ser a primeira pessoa a explicar corretamente a causa do arco-íris e a escrever o mais célebre comentário sobre a Teosofia da Luz do Oriente {Hikmat al-ishraq), de Suhrawardi. Os exemplos podem se multiplicar, mas estes são suficientes para demonstrar o princípio da hierarquia do conhecimento e a presença de uma dimensão metafísica dentro do Islame que satisfez as necessidades intelectuais dos homens, de forma que jamais buscaram satisfazer sua sede de causalidade fora da religião, como acinteceria no Ocidente durante a Renascença.

Na verdade, poder-se-ia dizer que principal razão de a ciência nunca ter florescido na China ou no Islam é precisamente devido à presença da doutrina metafísica e a uma estrutura religiosa tradicional que se recusou a fazer da natureza uma coisa profana. Tampouco o "burocracismo oriental' de Needham167 nem qualquer outra explicação social e econômica são suficientes para explicar por que a revolução científica, como se vê no Ocidente, não se desenvolveu em nenhuma outra parte. A razão mais fundamental é que nem no Islam, nem na Índia, nem no Extremo Oriente, a substância e o conteúdo da natureza foram tão esvaziados de um caráter sacramentai e espiritual, nem a dimensão intelectual destas tradições foi tão enfraquecida a ponto de permitir que uma ciência da natureza puramente secular e uma filosofia secular se desenvolvessem fora da matriz da ortodoxia intelectual tradicional.168 O Islam, que se assemelha ao Cristianismo sob tantos aspectos, é um exemplo perfeito desta verdade, e o fato de a ciência moderna não ter se desenvolvido em seu meio não é sinal de decadência, como alguns alegaram, mas da recusa por parte do Islam de considerar qualquer forma de conhecimento como uma forma puramente secular e divorciada daquilo que ele considera como a meta final da existência humana.

Antes de passarmos à tradição cristã é impossível deixar de mencionar brevemente o caso dos índios americanos, cuja visão em relação à natureza é uma mensagem preciosa para o mundo moderno. Os índios, especialmente os das planícies, não desenvolveram uma metafísica articulada, mas não obstante possuem as mais profundas doutrinas metafísicas expressas nos símbolos mais concretos e primordiais.(169) O índio, que é até certo ponto um monoteísta primordial, via na natureza virgem, nas florestas, árvores, rios e no céu, nos pássaros e búfalos símbolos diretos do mundo espiritual. Com o forte espírito simbolista do qual foi dotado, via em toda parte imagens de realidades celestiais. Para ele, como para outros nômades, a natureza era sagrada e havia um absoluto desprezo pelas artificialidades da vida sedentária.

A natureza virgem foi para o índio a catedral onde viveu e prestou culto. Sua luta desesperada contra o homem branco não era apenas por espaço vital, mas também por um santuário. Sua civilização era tão diferente da do mundo moderno, e também tão diametralmente oposta a esta que após viver por milhares de anos na natureza ele a deixou em condições tão perfeitas que hoje essa área em que ele viveu mereceu ser transformada num parque nacional a fim de impedir que fosse saqueada. Quando se observam as trilhas do índio no alto das Montanhas Rochosas, trilhas que ele cruzou durante milênios sem perturbar o meio ambiente a sua volta, se sente quão intensamente foi o índio quem realmente se deslocava com suavidade sobre a terra. Por isso, se não houver outras raaões, a herança do índio americano contém uma mensagem muito preciosa para o mundo moderno.

Se chegasse o dia em que o Cristianismo, em lugar de tentar converter os seguidores das religiões orientais, tentasse também compreendê-los e iniciasse com eles um diálogo intelectual,170 então a metafísica oriental, que é também em essência a philosophia perennis, assim como as doutrinas cosmológicas das tradições orientais (às quais se poderia também referir como cosmologia perennis),(171) poderia agir como motivo e ocasião para a recuperação dos elementos esquecidos da tradição cristã. Estes poderiam ajudar na restauração de uma visão espiritual da natureza que seria capaz de fornecer o fundamento para as ciências. Igualmente se revíssemos a história do Cristianismo sob a luz da metafísica oriental e dos princípios cosmológicos, alguns dos quais foram acima mencionados, descobriríamos uma tradição do estudo da natureza que poderia atuar como base para uma nova apreciação teológica da visão cristã da natureza. É à luz destas doutrinas que nos voltamos para alguns representantes desta tradição na história do Cristianismo.

No Velho Testamento há certas referências à participação da natureza na visão religiosa da vida, como na visão de Oséias em que Deus fez um pacto com os animais selvagens e com as plantas a fim de garantir a paz, ou quando Noé foi ordenado a preservar todos os animais, quer fossem limpos, quer sujos, isto é, sem levar em conta sua utilidade em relação ao homem.(172) Igualmente, a natureza virgem ou mundo selvagem é concebida como lugar de julgamento e punição, assim como de refúgio e contemplação, ou como o reflexo do paraíso. Este enfoque e esta tradição da visão contemplativa da natureza iria sobreviver mais tarde no Judaísmo, tanto na escola cabalística quanto na Hassidim. Quanto ao Novo Testamento, a morte e ressurreição de Cristo é acompanhada de um declínio e rejuvenescimento da natureza, salientando o caráter cósmico do Cristo. São Paulo também acreditava que toda a criação toma parte da redenção.

No Ocidente, entretanto, como uma reação ao paganismo, a Igreja primitiva tornou-se totalmente isolada e distinta do mundo a sua volta. Mesmo os termos paraíso e vastidão, no sentido positivo, tornaram-se ligados unicamente à Igreja e, posteriormente, ao mosteiro e à universidade como instituições distintas.(173) Gradualmente, na Igreja ocidental, o caráter seletivo da salvação passou a ser mais salientado, e a natureza virgem e a vastidão passaram a ser interpretadas antes como um domínio de operações bélicas e combate que como um domínio de paz e contemplação. Mesmo a expansão geográfica da Renascença e a conquista do Novo Mundo foram levadas a cabo com este motivo em mente.(174)

Na Igreja Oriental, entretanto, a visão contemplativa da natureza foi enfatizada e tornada muito mais central. A natureza foi considerada como o suporte para a vida espiritual e manteve-se a crença de que toda a natureza toma parte na salvação (apokatastasis panton)e de que o Universo é renovado e reconstruído pelo Cristo em sua segunda vinda.
Dentre os padres antigos também os gregos como Orígenes, Irineu, Máximo, o Confessor, e Gregório de Nicéia, que foram tão influentes na formação da teologia ortodoxa, desenvolveram uma teologia da natureza. Orígenes e Irineu são particularmente importantes, dado que aplicaram a doutrina do Logos não apenas ao homem e sua religião, mas também à íntegra da natureza e a todas as criaturas. Seus seguidores, de forma semelhante, mostraram mais simpatia por uma visão espiritual da natureza.(175) No entanto, os padres latinos, na maioria das vezes, não mostraram grande interesse pela natureza, ao ponto de o mais famoso dentre estes, Santo Agostinho, na Cidade de Deus, considerar a natureza como caída, ainda não redimida.(176)

Com a expansão do Cristianismo no norte da Europa, novos grupos étnicos entraram para a comunidade cristã que, longe de ser conspurcada pelo paganismo do mundo mediterrâneo, possuía um aguçado discernimento em relação ao valor espiritual da natureza. Entre os anglo-saxões e os celtas houve uma forte conscientização da harmonia entre homem e natureza.(177) Os monges celtas perseguiam a theoria ou visão do cosmo como uma teofania divina e puseram-se em peregrinações na esperança de descobrir a harmonia com a criação de Deus. Parte da melhor poesia da natureza no Ocidente é fruto da busca espiritual destes monges.(178 )

Coube a um homem do norte, Johannes Scotus Erigena, a tarefa de fornecer a primeira formulação metafísica completa da natureza na Idade Média latina. O erudito irlandês do século nove, que escreveu comentários sobre a Bíblia onde procurou revelar seu significado secreto, como também sobre Dionísio Aeropagita, é mais conhecido por sua obra De Divisione naturae, que se ocupa de Deus, da criação e do retorno à criação de Deus. Alguns teólogos e filósofos, que não compreendem uma doutrina metafísica e cosmológica da natureza, estão prontos a acusar qualquer doutrina desta espécie de ser panteísta, mas EÍígena estava plenamente consciente da Origem Transcendente do Universo. Contudo, para ele todas as coisas do Universo provêm de Deus e são criadas através de Cristo.179 A primeira frase de abertura das Escrituras, "No começo Deus fez o céu e a terra", de fato significa para Erigena a criação de todas as causas primordiais em Cristo,(180 )
Erigena, seguindo Gregório de Nicéia, defendeu uma concepção da natureza segundo a qual a matéria antes de ser uma quantidade opaca é uma combinação de quali dades incorpóreas,181 enquanto a forma é tudo que dá existência a corpos materiais e relaciona este domínio aos planos mais elevados de existência. No mundo material, como também através de todos os domínios da criação, a Trindade está presente; a essentia do Pai como fonte da existência, a sapientia do Filho como fonte de sabedoria e a vita do Espírito como a vida de todas as coisas do Universo. E assim o homem também tem uma natureza trina compreendendo o intelecto (nous), a razão {logos) e o sentido (dianoia).

Notas:

124 "Uma doutrina metafísica é a corporificação na mente de uma verdade universal. Um sistema filosófico é uma tentativa racional de resolver certas questões que formulamos a nós mesmos." Ver F. Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p. IL

125 Sobre metafísica oriental, ver R. Guénon, La Métaphysique Orientale: Paris, 1951.

126 L. Giles, The Sayings of Lao Tzu: Londres, 1950, p. 22. A respeito das doutrinas metafísicas chinesas em geral, ver Matgioi, La Voie métaphysique: Paris, 1959; e M. Granet, La Pensée chinoise: Paris, 1934.

127 The Sacred Books of China, The Texts of Taoism (trad. de J. Legge), vol. I: Nova York, 1962, pp. 315-16.

128 J. Needham, Science and Civilization in China, vol. II: Cambridge, 1956, p. 50. Needham interpreta este provérbio como uma prova da crença no naturalismo científico e faz até uma comparação com Lucrécio. Mas há um mundo de diferença entre o "naturalismo" helenístico-romano e o "naturalismo" de outras tradições, em que a substância da natureza não se tornou profana, mas age como um meio. de transmitir graça.

129 The Sayings of Lao Tzu, p. 23.

130 Needham, op. cit., pp. 36 e ss.

131 The Sacred Books of China, The Texts of Taoism, Parte I, p. 342.

132 Chuang-Tzu referindo-se aos sábios escreve: "(tais homens) por sua quietude tornam-se sábios; e por seus movimentos, reis. Nada fazendo, são eles honrados; em sua límpida simplicidade, ninguém neste mundo pode com eles disputar (a glória da) excelência. A clara compreensão da virtude do Céu e da Terra é o que se chama 'A Grande Raiz' e 'A Grande Origem' — aqueles que a têm estão em harmonia com o Céu, assim produzindo todas as medidas equânimes no mundo —, eles são aqueles que estão em harmonia com os homens." Ibid., p. 332.

133 Citado em A History of Chinese Philosophy, de Fung Yu-Lan (trad. de D. Bodde), vol. I: Princeton, 1952, p. 224.

134 The Sayings of Chuang Chou (trad. de J. Ware) : Nova York, 1963, p. 88.

135 Ver Needham, op. cit., pp. 49 e ss.

136 Ibid., p. 51.

137 The Sacred Books of China; The Texts of Taoism, Parte I. pp. 297-8.

138 Este ponto foi enfatizado em muitas obras de Needham: "Está portanto corporificado no nome comum hoje empregado para um templo taoísta [kuan] a significação primitiva da observação da Natureza, e desde que em seus primórdios mágica, adivinhação e ciência estavam inseparáveis, não podemos estar surpresos pelo fato de que seja entre os taoístas que temos de procurar as raízes do pensamento científico chinês." "The Pattern of Nature-Mysticism and Empiricism in the Philosophy of Science, Third Century B.C. China, Tenth Century A.D. Arábia, and Seventeenth Century A.D. Europe", in Science, Medicine and History, Essays in Honor of Charles Singer (ed. E. Ashworth Underwood) : Londres, 1953, p. 361. 139 "Na Ásia, o que é propriamente chamado xamanismo é encontrado não apenas na Sibéria, mas também no Tibete (sob a forma do Bün-po) e na Mongólia, Manchúria e Coréia. A tradição pré-budista chinesa, com seus ramos confucionista e taoísta, está ligada à mesma família tradicional, e o mesmo se aplica ao Japão, onde o xamanismo deu surgimento à tradição especificamente japonesa do Shinto. É característica de todas estas doutrinas uma oposição complementar entre Céu e Terra e um culto da Natureza..." Schuon, Light on the Ancient Worlds, p. 72.

140 Esta é de fato a forma pela qual o incomparável erudito do Hinduísmo, da metafísica oriental e da arte em geral, A. K. Coomaraswamy, traduziu a palavra maya.

141 Do imenso número de obras sobre o Hinduísmo nas línguas européias, bem poucas compreenderam o ponto de vista característico hindu ou expressaram a visão da própria tradição. Quanto às doutrinas metafísicas do Hinduísmo e a estrutura desta tradição, ver R. Guénon, Introduction to the Study of the Hindu Doctrines (trad. de M. Pallis) : Londres, 1945; R. Guénon, Man and His Becoming, according to the Vedanta (trad. de R. Nicholson) : Londres, 1945; F. Schuon, The Language of the Self; e as muitas obras de A. K. Cooamaraswamy, especialmente Hinduism and Buddhism: Nova York
(s.d.). Ver também as exposições lúcidas de M.Eliade e H. Zimmer.

142 Há evidentemente exceções como aquelas do século XVII que falavam do atomismo de Moisés e relacionadas à visão atomista do próprio profeta hebreu.

143 "A sujeição ao mundo se deve ao falso conhecimento que consiste em pensar que meu próprio eu é aquilo que não é eu-mesmo, a saber, os sentidos do corpo, manas, sentimento e conhecimento; uma vez que se obtenha o conhecimento dos seis padarthas, e como diz o Nyaya, das provas dos obietos do conhecimento e das outras categorias lógicas da inferência, o falso conhecimento é destruído." S. Dasgupta, A History of Indian Philosophy, vol. I: Cambridge, 1922, p. 365.

144 Padarthadharmasangraha de Praçastapada (trad. de M. G. Jha), Allahabad, 1916, p.13. Este mesmo texto diz: "Também aqui a declaração de que o conhecimento da semelhança etc. é o recurso da mais elevada beatitude implica que tal beatitude é gerada por um verdadeiro conhecimento das próprias categorias; como se não pudesse haver conhecimento da dita semelhança etc. independente das categorias." p.15.

145 The Sacred Books of the Hindus (org. por B. D. Basu), vol. VI, The Vaisesika Sutras of Kanada (trad. de Nandalal Sinha) : Allahabad, 1923, p. 2.

146 "Do efeito danoso da tripla espécie de dor (surge) um desejo de conhecer a forma de removê-la (a dor). Se das visíveis (formas de removê-la), este (desejo) parecesse supérfluo, não o seria, pois estas formas não são nem absolutamente completas, nem duradouras." The Samkhya Karika of Iswar Krishna (trad. de J. Davies) : Calcutá, 1957, p. 6.
Fizemos algum uso para esta análise do Samkhya da obra persa de D. Shayegan, que se encontra no prelo (Tehran Univ. Press). A respeito do sistema SamJchya, ver A. B. Kheit, Samkhya System: Calcutá, 1949, e B. N. Seal (Vrajendranatha-Sila), Positive Sciences of the Ancient Hindus: Londres, 1915.

147 "A forma de erradicar a raiz da aflição é portanto o questionamento prático da filosofia Samkhya." Dasgrupta, op. cit., p. 265.

148 Esta quádrupla divisão tem uma surpreendente semelhança com a De divisione naturae, de Erigena.

149 "É para que a alma seja capaz de contemplar a Natureza e tornar-se totalmente separada da mesma que a união de ambas é feita, como a do coxo e o cego, e através dessa (união) o universo é formado." The Samkhya Karika, p. 34.

150 Ibid., p. 67. O comentário Tattva-Kaumudi além disso acrescenta: "Como um servo competente que assegura o bem-estar de seu senhor incompetente, por motivos puramente não egoístas, sem qualquer benefício para si mesmo; assim também a Natureza, dotada dos três Atributos, beneficia o Espírito sem receber em troca nenhum bem para si mesma. Assim os motivos puros e não egoístas da Natureza são estabelecidos." Tattva-Kaumudi de Vachaspati Misra (trad. de G. Jha) : Bombaim, 1896, p. 104.

151 Ver Sir J. Woodruffe, Introtuction to Tantra Sastra: Madrasta, 1956, pp. 34-5.

152 Ver M. Eliade, Yoga, Immortality and Freedom: Nova York, 1958, p. 204.

153 Ver Sir J. Woodruffe, The World as Power: Madrasta, 1957, p. 3.

154 Ver Cultural Heritage of índia, vol. I: Calcutá, 1958, pp. 264-2 capítulo sobre os Vedangas por V. M. Apte).

155 A respeito dos Upavedas, ver R. Guénon, Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, Capítulo VIII.

156 Sobre a relação entre o zero e o centro da roda cósmica, e também quanto ao vazio, ver A. K. Coomaraswamy, "Kha and Other Words Denoting 'Zero', in Connection with the Metaphysics of Space" Bull. School of Oriental Studies, vol. VII, 1934, pp. 487-97.

157 A respeito das doutrinas cosmológicas do Islame, ver S. H. Nasr, An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines. Enquanto que para as próprias ciências islamitas, ver S. H. Nasr, Science and Civilization in Islam.

158 Ver S. H. Nasr, Islamic Studies: Beirute, 1966, Capitulo V, "The Meaning of Nature in Various Intellectual Perspectives in Islam" e Capítulo XIII, "Contemplation and Nature in the Perspective of Sufism".

159 Mesmo na Renascença, muitos dos observadores e experimentadores, longe de serem racionalistas, 'estavam tomados pela Cabala, Rosacruz, ou outras escolas místicas desse período, como foi de monstrado por W. Pagel em seu "Religious Motives in the Medical Biology of the Seventeenth Century", Buli. History of Medicina, 1935, vol. II, n.° 2, pp. 97-128; n.° 3, pp. 213-31; n.° 4, pp. 265-312. Enquanto que para o caso do Taoísmo, ver Needham, Science and Civilization in China, vol. II, pp. 91 e ss., em acréscimo ao seu artigo já citado.

160 O Alcorão de fato diz: "Iremos mostrar-lhes nossos prodígios além dos horizontes e dentro deles mesmos, até que lhes sejam manifestados que essa é a grande Verdade". (XLI; 53) (tradução de Pickthall); ver Nasr, An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines, p. 6.

l61 Ver H. Corbin (com a colaboração de S. H. Nasr e O. Yahya), Histoire de Ia philosophie islamique: Paris, 1964, pp. 13-30; e H. Corbin, "L'intériorisation du sens en herméneutique soufie iranienne", Eranos Jabrhuch, XXVI: Zurique, 1958. Ver também S. H. Nasr, Ideais and Realities of Islam: Londres, 1966, Capítulo II.

162 "Tampouco há qualquer coisa que seja mais do que uma sombra. Na verdade, se um mundo superior não lançasse sombras, os mundos inferiores desapareceriam de uma só vez, posto que cada mundo em criação não é mais que uma trama de sombras inteiramente dependente dos arquétipos do mundo que se encontra acima. Assim, o fato mais destacado e mais verdadeiro sobre qualquer forma é que esta «é um símbolo, de forma que ao contemplar algo a fim de que se recorde suas realidades mais elevadas, o viajante está considerando esta coisa em seu aspecto universal, que por si só explica sua existência." Abu Bákr Siraj Ed-Din, The Book of Certainty: Londres, 1952, p. 50.

163 Sobre esta doutrina capital, ver al-Jili, De Fhomme universel (trad. de T. Burkhardt) : Lyon, 1953; e T. Burckhardt, An Introduction to Sufi Doctrine (trad. de D. M. Matheson): Lahore, 1959.

164 "Ao se considerar aquilo que a religião ensina, é essencial lembrar que o mundo externo é um reflexo da alma do homem..." The Book of Certainty, p. 32. "O estado do mundo exterior não corresponde meramente ao estado geral da alma dos homens; num certo sentido também depende desse estado, posto que o próprio homem é o pontífice do mundo exterior. Assim, a corrupção do homem necessa riamente afeta o todo..." Ibid., p. 33.

165 Um mulçumano tradicionalista veria na desolação e na feiúra da sociedade industrial moderna e no ambiente que esta criou um reflexo externo das trevas na alma dos homens que criaram esta ordem e que vivem segundo a mesma.

166 Ver H. Corbin, Avicenna and the Visionary Recital (trad. de W. Trask), Nova York, 1961; e S. H. Nasr, Three Muslim Sages, Capítulo I; An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines. pp. 177 e ss.

167 Ver J. Needham, "Science and Society in East and West", Centaurus; vol. 10, n.° 3, 1964, pp. 174-97.

168 Por ortodoxia não queremos dizer simplesmente seguir a interpretação exotérica e literal de uma religião, mas possuir a doutrina correta (orthos-doxia) aos níveis tanto exotérico quanto esotérico. Ver F. Schuon, "Orthodoxy and Intellectuality", em Language of the Self: Madrasta, 1959, pp. 1-14

169 A respeito dos ensinamentos metafísicos dos índios, ver J. Brown, The Sacred Pipe: Norman, 1953; também P. Schuon, "The Shamanism of North American Indians", em Light on the Ancient World, pp. 72-8.

170 Quanto ao mundo islamita, com poucas exceções, não houve contato intelectual com o Cristianismo desde a Idade Média.

171 A respeito desta cosmologia perene, ver. T. Burckhardt, Cosmologie Perennis, Kairos, vol. VI, n.° 2, 1964, pp. 18-32.
Isto não quer dizer, evidentemente, que não haja diferenças no papel e significado da natureza nas várias tradições citadas. Mas há suficiente concordância sobre os princípios e sobre a significação metafísica da natureza para assegurar o emprego do termo "cosmologia perennis".

172 Williams, Wilderness and Paradise in Christian Thought, introdução, p. x.

173 "O termo correspondente a paraíso, no sentido do Jardim do Grande Rei do Universo, aplicar-se-á provisoriamente, no devido tempo, à Igreja, a seguir mais exclusivamente somente ao mosteiro disciplinado, depois à escola que crescia fora da Igreja e do mosteiro, a saber, a universidade medieval, e por fim, no Novo Mundo, ao seminário teológico como berço de missionários e ministros." Ibid., p. 6.

174 Este desenvolvimento foi integralmente traçado em Wilderness and Paradise, de Williams.

175 Basílio de Neo-Cesaréia, um origenista, escreve em seu Hexaemeron: "Uma simples folha de relva é suficiente para ocupar toda a vossa mente ao contemplares o talento que o produziu", e faz preleçõcs sobre a natureza como o produto da mão de Deus. Ver Raven, Natural Religion and Christian Theology I, Science and Religion, p, 47, onde é citado este dito.

176 Quanto à atitude de Santo Agostinho e da Igreja primitiva, como também do Cristianismo posterior face à natureza, ver Raven, op. cit.

177 Williams, Paradise and Wilderness, pp. 46 e ss.

178 «A peregrinação do monge irlandês, portanto, não foi meramente a busca incansável de um coração romântico insatisfeito, foi sim um tributo profundo e existencial às realidades percebidas na própria estrutura do mundo, do homem e de seu ser: uma compreensão do diálogo ontológico e espiritual entre o homem e a criação, onde as realidades espirituais e corpóreas se unem e se entrelaçam como as iluminuras manuscritas do Livro de Kells... Melhor talvez que os gregos, alguns monges celtas alcançaram a pureza dessa theoria physike que vê Deus não nas essências ou logoi das coisas, mas em um cosmo hierofante: daí então a maravilhosa poesia vernacular da natureza dos eremitas célticos dos séculos VI e VIL" T. Merton, "From Pilgrimage to Crusade", Tomorrow, primavera de 1965, p. 94.

179 Erigena seguiu a visão de Clemente de Alexandria, que declarou: "0 Filho não é certamente um, como um; tampouco muitos, como partes; mas um, como todas as coisas; pois d'Ele partem todas as coisas; e Ele é a concentração de todos os poderes agrupados e unidos em um só." Stromata, IV, 635-9, citado em Johannes Scotus Erigena, a Study in Medieval Philosophy, de H. Bett: Cambridge, 1925, p. 32.

180íbid., p. 40.

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