Por J. P. McEvoy
(Condensado de «Travel»)
para a Seleções do Reader's Digest (*)
Por J. P. McEvoy
(Condensado de «Travel»)
para a Seleções do Reader's Digest (*)
Talvez não seja progresso... mas que importa?
Nos BONS tempos da Idade Pré-Atômica, havia uma instituição que tendia a aumentar e a expandir-se cada vez mais: refiro-me ao turismo. O mundo andava cheio de turistas, que viajavam, quase sempre, para fugir à monotonia ou às aflições de sua vida cotidiana. Hoje já começam a aparecer turistas outra vez, tomados porem, agora, de novo e diferente desejo: trata-se de fugir não à monotonia e às aflições, mas a algo de mais específico—a bomba... Seus olhos descansarão, talvez, sobre a paisagem, mas em seus espíritos conturbados há uma pergunta nervosa: «Será que estarei a salvo aqui, quando eles começarem a atirar bombas atômicas a torto e a direito ?»
O local teria que ser, naturalmente, salubre, belo de panorama, e tão insignificante, do ponto de vista político e econômico, que ninguém se lembraria de esperdiçar ali uma bomba caríssima. Quanto aos habitantes, conviria que fossem homens duros e empedernidos, já tendo sobrevivido a inúmeras catástrofes no passado, e dotados de uma atitude filosófica capaz de triunfar sobre os imprevisíveis horrores do futuro.
Embora correndo o risco de dar lugar a uma espécie de «estouro da boiada», permito-me anunciar que, segundo creio, já encontrei p lugarzinho—pelo menos para mim. È a aldeia chamada Chichicastenango, situada num remoto planalto da Guatemala, a dois mil metros de altura, cercada, por todos os lados, de íngremes precipícios e protegida por um cíiculo de serranias hostis.
Grande parte de seus habitantes são índios Quiche, sobreviventes de um ramo da grande raça dos Maias. Por mais que tentassem, os conquistadores espanhóis não puderam exterminá-los, nem os frades conseguiram apaziguá-los. Terremotos houve, e eles não se abalaram; vieram inundações, e lá estão eles; medonhas erupções vulcânicas cobriram de lava as suas aldeias, mas, cavando, furando, penetrando, alcançaram outra vez a luz do dia e, num nobre desafio, plantaram milharais até quase a orla das crateras fumegantes, como fazem ainda hoje.
Para fugir à bomba atômica, é um esconderijo ideal, para onde irei um dia; e, quando for, meu vizinho favorito será certo índio Maia-Quiche que, sem possuir chapéu nem sapatos, vive confortavelmente em Chichicastenango com um gasto mínimo de energias. Aprendeu a viver à custa das orquídeas: pela manhã —de vez em quando, bem entendido— caminha até a ribanceira mais próxima e aí colhe algumas «irmãs brancas», o nome que dão às orquídeas. Dirige-se então ao portal da Hospedaria Maia, onde oferece as flores à venda com a mais altiva indiferença. Quando o turista lhe pergunta quanto quer por elas, sorri, balbuciando então qualquer algarismo fantástico que lhe de na veneta; cm geral alguns tostões... Certa vez cometi o gravíssimo erro, próprio dos forasteiros, de lhe dar imediatamente os 50 centavos que me pedia. Levou-os, mas saiu cabisbaixo, macambúzio; considerava estragado o seu dia, pois já agora não tinha mais pretexto para se deixar ficar por ali, rondando o hotel dos turistas, espiando aqueles esquisitos estrangeiros que lá chegavam com suas vestimentas estrambóticas, máquinas fotográficas a tiracolo, camisas de manga curta por fora de umas calças com fundilhos mal ajustados... Para ele, o gostoso é permanecer nas imediações do hotel o dia inteiro, orquídeas em punho, regateando, até conseguir vendê-las por 15 centavos, seu último preço, absolutamente o último. O índio guatemalense é talvez o ser humano mais quieto que existe, e sempre achei divertido contemplar as faces espantadas dos turistas ao defrontar, pela primeira vez, a bela e granítica dignidade desses solenes sobreviventes de priscas eras. De minha janela, numa manhã de domingo, vejo a feira livre em pleno funcionamento. A velha praça, fronteira à igreja, está repleta de índios—uns 5 mil talvez—e mal ouço suas vozes. Aproximemo-nos de um grupo onde se regateia à vontade, e não ouviremos mais que um murmúrio discreto; aqui e ali, entre longos silêncios, uma espécie de grunhido monossilábico ..
Faz-se comércio, aí, sem ruído nem espalhafato; o meio de comunicação mais comum, ao que pude perceber, é um erguer de sobrancelhas, um encolher de ombros ou um olhar furtivo entre um marido de pé e sua mulher agachada. Ocorre-me comparar isso a uma guerra de nervos primitiva... Daí a não sei quanto tempo, mediante qualquer processo sutil, imperceptível mesmo, desmorona-se afinal a última muralha de resistência mercantil, a oferta é aceita, a transação completada.
E o ÍNDIO guatemalense é o ser humano mais sossegado do universo, o turista americano é sem dúvida o mais barulhento. Chego, mesmo a arriscar uma teoria; quando o americano se dispõe a virar turista e abandona enfim sua terrinha natal, com os mexericos, a censura de parentes e vizinhos, convence-se de que, graças a algum bruxedo, se tornou invisível. Movimenta-se então num maravilhoso e estranho país estrangeiro cheio de gente que não compreende o que ele diz, não se interessa pelo que pensa, e se mostra indiferente ao que ele esteja fazendo. Liberta-se de seus recalques acumulados; e —ó alívio! —consegue, pela primeira vez na vida, dizer e fazer o que muito bem lhe vem à cabeça...
Do americano burguês, que alcançou certo êxito na vida, alguém já disse que, tendo nascido na roça, ele se esforça loucamente para conseguir morar na cidade, onde passa a esforçar-se mais loucamente ainda, para conseguir morar na roça. Mas o índio de Chichicastenango é muito mais esperto que o turista, o qual lá um dia obtém umas férias, fugindo à gaiola do êxito para desfrutar uns quinze dias de ociosidade e gozar a delícia de se sentir superior aos índios «incivilizados».
Talvez sejam incivilizados, realmente; mas vejamos as observações que fez um cientista, após examiná-los durante anos: «Entre estes índios são raríssimas as lesões cardíacas e inexistentes os distúrbios mentais. O homem branco parece ter perdido a confiança em si próprio, e nos semelhantes. O nervosismo generalizado, que vemos atualmente, é, no fundo, o medo de não poder comer três vezes por dia. O índio, se está de barriga vazia, faz com suas próprias mãos um cinto e nele se cinge. É perfeitamente capaz de ser feliz apesar da fome. Tendo comido sua última migalha, vai dormir ainda cheio de confiança em si e na benevolência da Natureza.»
Ah... o pobre índio! Eis aqui o indivíduo mais independente que existe. Com suas próprias mãos planta o que precisa para comer, tece sua roupa e faz o que possa vender. Tem seu negócio bem dele, livre de notas promissórias e de fiscais do imposto de renda. Quer haja turistas quer não, tem sua milpa (pequeno miIharal) onde planta e colhe o suficiente para seu sustento, sobrando-lhe ainda bastante para levar à feira e trocar por sal e pimenta ou uma esteira das que se tecem nas aldeias próximas ou ainda um cobertor também feito a mão.
Satisfeitas assim suas necessidades materiais, compra um pouquinho de incenso para queimar em homenagem a seu deus pagão à porta da igreja; e queima um pouco também dentro da capelinha, em homenagem aos santos, porque seguro morreu de velho... Arrumando no chão um desenho bonito de pétalas de rosa e grãos de milho, acende velinhas no meio e, enquanto sua mulher e seus filhos se ajoelham em silêncio, ele canta monotonamente os nomes de vários apóstolos e santos. Feito isso vai-se em bora, reforçado em sua fé e serenamente convencido de que fez tudo o que se pode esperar de um homem...
O ÍNDIO volta à aldeia por ocasião das festas. Algumas duram apenas um dia, mas é preciso reservar um dia para os preparativos e dois outros para a convalescença... A melhor de todas, em honra de S. Tomás, santo-padroeiro de Chichicastenango, estende-se por quase todo o mês de dezembro, exigindo longos preparativos e ensaios para as dansas, as procissões e os fogos de artifício. Segue-se o Natal, sem solução de continuidade; e depois vem o Ano Bom, segundo o calendário cristão, e o Ano Bom do calendário Maia. Em suma, graças à tradição, aos vários projetos e à religiosidade, o índio consegue enfiar, pelo ano a dentro, uma boa dose de feriados...
—O diabo é que esses índios são tão preguiçosos! observou o turista à medida que caminhávamos pela praça da feira, esforçando-nos por não ser atingidos por foguetes, dançarinos mascarados e procissões de vários santos. Havia uma semana que tinham começado os festejos, e os índios dançavam pelas ruas noite e dia. Mal o turista fizera aquela observação, parou perto de nós um velho e minúsculo índio, com pesado turbante na cabeça e levando às costas um grande feixe de lenha. Livrando-se por um momento de sua carga, deixou-a no chão e pôs-se a dançar com os outros.
—Veja se consegue levantar isso, disse eu ao turista. Este tentou, mas não conseguiu erguer a pesadíssima geringonça. Observei-lhe então: —Esse homem carregou a madeira desde o outro lado da montanha, só para vir dançar em honra de S. Tomás. Enquanto falava, vimos outros índios que se aproximavam da praça com verdadeiros montes de cerâ mica nas costas, trazidas de aldeias longínquas, donde haviam caminhado a pé, durante três dias, para tomar parte na festa. O turista corrigiu-se, dizendo que talvez a palavra «preguiçosos» fosse exagerada; mas porque era que esses homens não se reuniam para comprar um caminhão, por exemplo?
—Lembre-se, meu amigo, comentei, —de que caminhão significa pneumáticos, gasolina, acessórios, consertos, seguro... Para que plantar mais, trabalhar mais, esforçar-se mais, só para manter um caminhão? Assim como estão agora, não têm nem as despesas nem as preocupações do homem da cidade, e quando querem podem até libertar-se das preocupações de seus negócios, como fez aquele velhote ao deixar no chão a sua carga. Você conhece muitos homens de negócio bem sucedidos, que tenham tanta organização em suas vidas?
—Mas isto não é progresso! exclamou o turista indignado. —Quem vive deste jeito, não alcança nada... Mil índios passavam por nós, às piruetas e passos de dança, parando apenas para soltar mais foguetes.
—Quem sabe? Talvez você tenha razão, concordei. —Talvez o progresso consista em lançar bombas atômicas; talvez isto de atirar foguetinhos ao ar, só por gosto, não seja progresso. E pode ser que os índios não alcancem nada, como você diz. Mas alcançar o que ? Não estão bem assim?
Nos olhos do turista via-se uma luz nova... Observou:
—Será... será que eles é que têm razão?
—Parece-me que sim, respondi. —Tudo se resume nisto, meu caro: esta gente não parece sentir falta de uma vida melhor...