Meus hóspedes, os animais.

Um índio norte-americano, em plena floresta, faz amizade com animais selvagens.
Condensado de "Tales of an Empty Cabin' e publicado na "Seleções do Reader's Digest"(*) de julho de 1952

Coruja Cinzenta

MINHA pequena cabana de troncos no Lago de Ajawaan, no remoto noroeste do Canadá, saiu um tanto diferente daquela que eu havia originalmente traçado, pois os meus amigos castores, com fervor inabalável, insistiram em fazer alterações. Grande parte da praia que fica em frente está ocupada por uma balsa também de troncos, de quase dez metros de comprimento, que oculta a entrada subaquática do aposento exterior da habitação dos castores; esta, por sua vez, encosta na minha cabana. O quarto de dormir, uma estrutura imponente feita de barro e paus entrelaçados, foi construído dentro da minha casa, com a parede da cabana servindo-lhe de divisão cômoda. Uma abertura lhes dá acesso fácil ao meu quarto. A noite, ouço um murmúrio igual ao de vozes infantis, vindo do quarto de dormir deles, quando os engenheiros se põem a conferenciar sobre novos melhoramentos.

Numa noite de maio ouvi um gemido em tudo semelhante ao choro de um bebê. Outra voz trêmula e mais outra se juntaram ao débil coro, misturando-se ao cantarolar e ao mugir com que o casal de castores procurava acalentar os pimpolhos. Olhei com cuidado através da abertura : lá estavam quatro castorezinhos felpudos, de uns 10 centímetros de comprimento, cor cinza-avermelhada, olhos negros redondos e a cauda parecendo de borracha; lá estavam eles indefesos, enquanto mamãe castor, com mãos semelhantes às humanas, atendia às suas necessidades imediatas.

Quando tudo silenciou de novo, papai castor deslizou para o túnel e desapareceu. Uma vez em céu aberto, pôs-se a brincar, gritando alto e fazendo piruêtas na água, em êxtase, ou talvez como que aliviado. Começou, então, uma excursão em volta do lago, eu acompanhando-o de canoa. Era uma verdadeira marcha triunfal aquática. O pequeno animal, excitado, subia na canoa e tornava a descer, saltava precipitadamente nos pontos de desembarque e logo tornava a embarcar, soltando altos guinchos de vez em quando, parecendo incapaz de expressar de modo adequado os seus sentimentos. Durante várias semanas, o casal dividiu os cuidados com a prole, ficando o macho em casa atendendo com desvelo aos filhotes todas as vezes que a mãe saía à procura de alimento.

Quando os castorezinhos saíram de casa pela primeira vez, os pais os trouxeram a mim, e agora eles até procuram a minha companhia. Se estendo a mão, logo se precipitam de braços abertos para agarrá-la ou voam pela prancha que prendi à canoa, especialmente para eles. Já não gritam alto fora da toca, mas ali, a salvo, tornam-se gárrulos. Os castores têm grande facilidade de articulação; muitas vezes os tenho surpreendido falando sós, em voz baixa, gutural. Os esforços que a mãe faz para que eu a compreenda são verdadeiramente patéticos. As queixas dos filhotes, as repreensões dos adultos procurando disciplinar os gulosos têm semelhança muito acentuada com os sons que, imagino, uma criança de três anos emitiria se nunca tivesse aprendido a falar em língua alguma.

Não são apenas os pais que se mostram solícitos em atender e proteger os de tenra idade. Um castor selvagem apareceu, certa vez, em nossas plagas, mas, embora tivesse acabado manso, sua iniciação à nossa pequena comunidade levou meses e isso porque, sem dúvida, tinha tido razão para desconfiar do homem. Todavia, a despeito da experiência desencorajadora que, possivelmente, tivera com o animal homem, quando viu os castorezinhos agrupados em volta de mim arrojou-se contra o grupo, dispersando-o e, num só fôlego, aproximou-se de mim, a cerca de um metro, ameaçando-me com ruídos e gestos inconfundíveis. Não há dúvida de que, para êle, assumir tal atitude significava arriscar a vida; mesmo assim, arriscou-se com bravura para proteger aquelas pequenas criaturas, para as quais não tinha qualquer obrigação; era uma cena tocante vê-lo empurrando com o nariz os castorezinhos de volta à casa, se o pequeno grupo se desgarrava do caminho.

Muitos outros animais se reúnem em Ajawaan, porque os animais identificam de pronto um lugar que lhes sirva de asilo. Alguns, como o castor que há pouco mencionei, precisam de algum tempo para analisar a situação. Outros, porém, respondem quase na mesma hora ao meu apelo. É o caso, por exemplo, do veado que vi não há muito pastando nas proximidades da cabana. Saí sem fazer ruído, mas sem deixar perceber qualquer intenção maliciosa. Ao ver-me, pôs-se de guarda—músculos tensos, cabeça erguida, olhar fixo em cada movimento que eu fazia. Comecei, então, a falar com voz branda. Por fim, agitou a cauda—o sinal para indicar que já havia chegado a uma conclusão. Ou fugiria aos saltos, numa carreira vertiginosa, ou ficaria, calmamente, onde estava. Voltei a falar, avancei um pouco. O animal relaxou todos os músculos e, num gesto de confiança, voltou-me as costas e continuou a pastar entre os brotos de pinheiro. Eu tinha conquistado mais um amigo.

Acredito que, de um modo geral, os animais têm uma intuição que lhes permite perceber quase instantaneamente as nossas intenções. Em regiões onde o homem ainda é raro, sua visão desperta nos outros animais apenas curiosidade, e os bichos às vezes ficam parados e a descoberto admirando o estranho bípede. Da nossa atitude dependerá então o conceito que formarão de nós: um ato impensado, indiscreto, alienará de vez a confiança dos habitantes de toda a região; mas uma demonstração de benevolência granjeará o interesse dos bichos, alguns dos quais, após meia-dúzia de incursões experimentais, começarão a freqüentar o habitat do curioso bípede.

Basta-me pisar fora da cabana para que algum pequeno animal, vendo-me ou ouvindo o meu chamado, logo venha ver o que eu tenho para lhe oferecer. Eles não levaram muito tempo para descobrir que ninguém sai com as mãos vazias. Os animais que me visitam variam entre o pequeno castor-rato, preto e lanudo, que passeia pela cabana espreitando o momento em que eu deixe a man teigueira destampada, e o avantajado alce, um veado gigantesco, do tamanho de um cavalo, com chifres que medem mais de um metro de uma ponta à outra.
Eu não tinha feito nenhuma tentativa para entabular amizade com o alce até que um dia, ao anoitecer, êle chegou-se com ar decidido e ficou observando os castores trabalharem.

Os castores logo se agruparam e começaram a jogar água no intruso, o que apenas fêz com que o volumoso ruminante se acercasse ainda mais para saber o que significava aquilo. Mal saí da cabana, êle disparou pela colina acima e eu comecei a falar com os castores, para acalmá-los. Logo que ouviu minha voz, o alce diminuiu a velocidade, voltou-se e veio, devagar, na minha direção; durante mais de uma hora ficou pastando despreocupado à curta distância. O fato de essa criatura selvagem e livre ter respondido à minha voz e se colocado voluntariamente dentro da minha influência deve significar que já havia analisado a situação por si mesmo, já se havia acostumado com o som da minha voz, através de demoradas observações, e sentido nela o tom de segurança que eu lhe quis dar. Agora êle passa grande parte do tempo vagando pachorrento pelo meu campo, tendo ainda o hábito de quedar-se meditando sob a minha janela—e sair da cabana à noite e tropeçar num animal de meia tonelada assusta qualquer pessoa. Acho que o que êle veio fazer é principalmente divertir-se, porque os animais adoram a introdução de qualquer coisa incomum na monotonia da vida que levam, contanto que a novidade não seja perigosa.

As aves, que são de natureza mais prática, só se deixam influenciar por considerações de ordem econômica; isso é mais verdadeiro em relação ao gaio do Canadá, pedinchão que não se contenta com uma parte de nossa refeição, mas quere-a toda. Esses simpáticos marotos têm o hábito de ficar olhando a gente comer. Nessas ocasiões o seu olhar sugere ao mesmo tempo reprovação e fome—o que induz as pessoas inexperientes a dar-lhes por vergonha sempre um pouquinho mais. Minha saída da cabana é o sinal para que sentinelas alertas logo anunciem em voz alta—"Aí vem êle, pessoal!" Muitos deles aprenderam a pousar na minha mão e beliscar despreocupados a comida que lhes ofereço; outros caem sobre mim como aviões de ataque e apanham a comida no vôo.

Quando saio, mal ando alguns passos, escuto atrás de mim um pisar leve mas indignado, e um esquilo se atira ao meu ombro para cobrar o amendoim que sempre tenho para êle. Chama-se Shapawee, o Saltador: vive a 100 quilômetros por hora, sempre numa atividade febricitante. Completamente diferente é o meu pequeno amigo Subconsciente, assim chamado porque, quando ainda muito jovem, costumava vagar pelo terreiro sem objetivo aparente, como se estivesse num sonho. Outro desses acrobatas voadores incorporou-se, o
ano passado, ao meu grupo de companheiros constantes, de sorte-qtie agora, onde quer que eu vá, sou seguido por esses três pequenos animais, três feixes de energia que, aliás, não se entendem bem entre si.

Uma família de ratos alrniscarados vive sob o soalho num canto da cabana. Como os castores, também esses respondem ao meu chamado e freqüentam a cabana com a mesma liberdade; quando querem entrar, conversam entre si e arranham com impaciência uma tábua solta, do lado de fora, até serem admitidos. Havia, também, uma marmota, muito amável e idosa, que costumava espiar-me no trabalho e me permitia alguns privilégios, inclusive um muito raro —o de tomar os seus filhotes nas minhas mãos. Essa já se foi, cumprida a sua missão, e em seu lugar, hoje, há outra, também de aspecto matronal mas jovem, que gosta de olhar pela minha janela. Sei que devo encarar essas perdas com equanimidade, mas sinto a falta desses amigos que partiram, pois todo animal tem a sua personalidade, fácil de discernir para quem o conheça. Suas atitudes e maneiras de expressar suas emoções, às vezes tão infantis—o olhar de esguelha, o gesto esquisito, a petulância quando contrariados, a expressão aflita quando em dificuldades, a afeição mútua evidente—guardo-as todas na memória, lembranças de uma presença humilde que encheu por breve tempo a minha vida.

Nenhum dos meus hóspedes precisa dos presentes que lhes dou. Antes de eu chegar, eles já proviam às suas necessidades, e se eu desaparecesse nenhum deles se sentiria pior. Em todo caso, agrada-me pensar que alguns deles sentiriam a minha falta. Agrada-me muitíssimo ouvir um animalzinho que voltou à casa faminto, depois de horas de trabalho árduo, resmungar sua satisfação enquanto come uma maçã, ou enquanto se atira com as duas mãos a um pires de arroz. E no inverno, enche-me de alegria ver um buraco na neve, por baixo de um velho tronco, porque sei que ali é a morada de um animal feliz, que está de barriga cheia e dorme a sono solto.

Raramente estou desacompanhado de um ou outro dos meus amigos, se bem que nem sempre sejam visíveis. Enquanto escrevo, a porta se abre de supetão, e entra um carregamento de barro e gravetos trazido por um par de braços peludos, para o conserto da casa do castor; é noite, e ouço passadas leves pelo soalho—é um rato almiscarado que veio buscar a sua maçã. Agora, é o arranhar de chifres contra os galhos dos salgueiros. Esses sons, tão familiares para mim quanto os ruídos das ruas para um citadino, dizem-me que não estou sozinho.