A doutrina hindu ensina que a duração de um ciclo da humanidade, a que dá o nome de Manvantara, se divide em quatro idades que marcam outras tantas fases progressivas dum obscurantismo gradual da espiritualidade primordial; são esses mesmos períodos que, por sua vez, as tradições da antigüidade ocidental designavam como as idades de ouro, de prata, de bronze e de ferro.
Estamos presentemente na quarta idade, a Kali-Yuga, ou "Idade Sombria", e isto, dizem eles, há mais de seis mil anos, isto é, desde uma época muito anterior a todas as que são conhecidas da história "clássica". Desde então, as verdades que outrora eram acessíveis a todos os homens, tornaram-se cada vez mais encobertas e menos atingíveis.
Os que as possuem são cada vez menos, e se o tesouro da sabedoria "não humana", anterior a todas as idades, não pode jamais perder-se, esse tesouro vem-se envolvendo em véus cada vez mais impenetráveis, sob os quais, é extremamente difícil de o descobrir, pois se acha dissimulado a qualquer olhar. E' por isso que sob símbolos diversos se fala sempre de alguma coisa que se perdeu, aparentemente, pelo menos, em relação ao mundo exterior, que deve ser encontrada de novo por aqueles que aspiram ao verdadeiro conhecimento; também se diz, porém, que o que se acha assim escondido, de novo voltará a ser visível no fim deste ciclo, o qual, em virtude da continuidade que liga todas as coisas entre si, será também o começo dum novo ciclo.
Mas, perguntar-se-á, por que deve processar-se assim o desenvolvimento cíclico num sentido descendente, indo do superior para o inferior? Assim sendo, como se poderá facilmente notar, isso representa a própria negação da idéia de "progresso", tal como os modernos a entendem. É que o desenvolvimento de toda a manifestação implica necessariamente um afastamento cada vez maior do princípio de onde ela procede; partindo do ponto mais alto, ela tende forçosamente para baixo, e como os corpos pesados, ela para aí tende com uma velocidade sempre crescente, até encontrar, enfim, um ponto de parada. Esta queda poderia ser caracterizada como uma materialização progressiva, pois a expressão do princípio é espiritualidade pura; dizemos a expressão, e não o próprio princípio, por não poder este ser designado por nenhum dos têrrmos. que parecem indicar uma oposição qualquer, pois fica sempre para além de todas as oposições. Ademais, palavras como "espírito" e "matéria", que para maior comodidade de expressão tomamos emprestadas, dos idiomas ocidentais, não têm para nós senão um valor simbólico; mas em todo o caso, podem servir muito bem para o que está se tratando sob a condição de afastar as interpretações especiais dadas pela filosofia moderna, cujo "espiritualismo" e "materiailismo", não são, a nosso ver, senão duas formas complementares das quais uma implica à outra, sem importância entretanto para quem almeja a elevar-se acima destes pontos de vista contingentes. Contudo, não é metafísica pura o que nós nos propomos tratar presentemente; por isso, sem nunca perdermos de vista os princípios essenciais e tomando as devidas precauções para evitar qualquer equívoco, podemos nos permitir de usar termos que embora pouco adequados pareçam suscetíveis de tornar as coisas mais facilmente compreensíveis. Isso, entretanto, na medida do possível, sem desnaturar o nosso objetivo. O que dissemos sobre o desenvolvimento da manifestação apresenta um aspecto que, embora exata em seu conjunto, fica entretanto muito simplificado e esquemático e ipode fazer pensar que este desenvolvimento se efetua em linha reta, num sentido único e sem qualquer oscilação; a realidade porém é muito mais complexa.
Efetivamente, se encararmos em todas as coisas,, como já indicamos precedentemente, duas tendências opostas, uma ascendente e outra descendente, ou, se quisermos servir-nos de outro modo de representação, uma centrífuga e outra centrípeta, do predomínio de uma ou outra, procedem duas fases complementares. da manifestação — uma de afastamento do princípio, outra de retorno ao princípio — fases que freqüentemente são comparadas simbolicamente aos movimentos do coração, ou às duas fases da respiração. Ainda que estas duas fases sejam comumente descritas como sucessivas, é preciso conceber que, na realidade, as duas tendências, às quais elas correspondem, agem sempre simultânemente, todavia em proporções diversas. Acontece, às vezes, em certos momentos críticos em' que a tendência descendente parece estar a ponto de predominar definitivamente, na marcha geral do mundo; que uma ação especial intervém para reforçar a tendência contrária, de modo a restabelecer um certo equilíbrio, pelo menos relativo, como podem comportar as condições do momento, e assim operar uma retificação parcial, pela qual o movimento de queda poderá parecer detido, ou temporariamente neutralizado. (1)
É fácil de compreender que destes dados tradicionais só podemos limitar-nos presentemente a fazer aqui uma sumária exposição, que torne possíveis vastas e profundas concepções muito diferentes de todos: os ensaios de "filosofia da história", e aos quais se entregam de tão boa mente os modernos.
No momento não cogitamos de ir até às origens do presente ciclo, nem mesmo simplesmente ao começo da Idade Sombria. Nossais intenções relacionam-se dum modo direto, com um campo mais limitado; somente as últimas fases desta mesma Idade Sombria. Pode-se, com efeito, dentro de cada um dos grandes períodos de que já falamos, distinguir ainda diferentes fases secundárias, e que constitutem outras tantas subdivisões e sendo cada parte, de um certo modo, análoga ao todo, estas subdivisões reproduzem, por assim dizer, em escala mais reduzida, a marcha geral do grande ciclo, no qual integram; porém, mais uma vez ainda, uma completa pesquisa das modalidades de aplicação desta lei aos diversos casos particulares, nos levaria muito além do quadro que traçamos para este estudo. Mencionaremos somente, para terminar estas considerações preliminares, algumas das últimas épocas particularmente críticas que a humanidade atravessou; as que entram no período que habitualmente se costuma chamar "histórico", pois que é efetivamente o único que se torna verdadeiramente acessível à história comum, ou "profana"; e isso nos levará por si mesmo ao que deve constituir o próprio objeto de nosso estudo, visto que a última destas épocas críticas é exatamente a que forma o que se chama os tempos modernos.
Dá-se aqui um fato muito estranho e que parece não ter sido nunca tão convenientemente notado, como mereceria; é que o período propriamente "histórico", no sentido que acabamos de indicar, remonta exatamente ao século VI, antes da era cristã, como se houvesse, no tempo, uma barreira que não pudesse ser transposta com o ajutório dos meios de investigação da quie dispõem os pesquisadores comuns. A contar desta época, com efeito, possui-se em toda a parte uma cronologia bastante precisa e bem fundamentada; para o que é anterior, ao invés, (só não se obtém em geral, sertão uma aproximação vaga e as datas; propostas para os mesmos acontecimentos variam, muitas vezes, de vários séculos. É bastante característica que mesmo para países como o Egito, por exemplo, em que a "história oficial" registra mais do que simples vestígios esparsos, prevaleça essa constatação, e o que é talvez ainda mais surpreendente é que, num caso excepcional e privilegiada como o da China, que possui para épocas bem mais afastadas anais datados por meio de observações astronômicas e que, portanto; não deveriam deixar lugar a dúvida alguma, os modernos, mesmo assim, qualificam estas épocas de "lendárias", como se fosse um domínio, no qual, eles não se reconhecessem dom direito algum à certeza e onde mesmo se interditassem a si próprios a regalia de efetuar investigação para atingi-la.
A antigüidade chamada "clássica" não é, portanto, a bem dizer, senão uma antigüidade toda relativa, e até muito mais próxima dos tempos modernos que da verdadeira antigüidade, pais que essa não atinge, nem sequer, a metade da Idade Sombria que por sua vez, segundo a doutrina hindu, é somente a décima parte do Manvantara.
Por aí se poderá julgar suficientemente até que ponto os modernos têm razão de se mostrarem orgulhosos da extensão de seus conhecimentos históricos! Mas tudo isso, responderiam ainda eles, sem dúvida, para se justificarem, não passa de períodos "lendários", e eis porque julgam não dever dar-lhes importância; esta resposta, porém, é precisamente a confissão de ignorância, e duma falta de compreensão que apenas se pode explicar pelo desdém que votam à tradição.
Com efeito, o espírito especificamente moderno, é como mais adiante mostraremos, nada mais, nada Menos que o espírito antitradicional. No século VI, antes da era cristã, produziram-se mutações consideráveis entre quase todos os povos; 'estas alterações apresentaram, aliás, caracteres diferentes, conforme os países. Em certos casos, foi uma readaptação da tradição a diferentes condições das que tinham existido anteriormente, readaptação que se efetuou num sentido rigorosamente ortodoxa; foi o que |se deu particularmente na China, onde a doutrina, primitivamente constituída de um só conjunto, foi então dividida em duas partes nitidamente distintas: o taoismo, que reservado a uma elite, compreendia a metafísica pura e as ciências tradicionais de ordem propriamente especulativa e o confucionismo, que era comum a todos, indistintamente, e tinha por domínio próprio as aplicações práticas e principalmente sociais. Entre ps persas, parece que houve igualmente uma readaptação do mazdeísmo, pois esta época foi a do último Zoroastro. (2)
Na India, apareceu então o budismo (3) destinado a vir a ser pelo tempo adiante, um veículo para a difusão de diversos elementos da doutrina hindu em outras partes da Ásia, tais como a China, o Japão, os Países Malaios e o Thibet. É bastante curioso constatar que na India não se encontre nenhum monumento construído antes dessa época, e os orientalistas, que gostam de dizer que tudo começou com o budismo,1 cujas particularidades eles exageram singularmente, quiseram tirar partido desta constatação a favor de sua tese; entretanto a explicação do fato é simplicíssima; é que todas as construções anteriores a esse tempo eram de madeira, e por isso desapareceram muito naturalmente, sem deixar vestígios (4); porém, a verdade é que uma tal mudança no modo de construção, corresponde necessariamente a uma profunda modificação das condições gerais do modus vivendi do povo em que isso se verifica.
Aproximando-nos do Ocidente, vemos que esta mesma época foi para os judeus a do cativeiro de Babilônia; e nessa época pode-se verificar um dos fatos mais espantosos que se possa constatar: o curto período de setenta anos foi suficiente para perderem até a sua própria escrita, pois tiveram que reconstituir os Livros sagrados dom caracteres bem: diferentes daqueles que estiveram em uso até então. Poder-se-iam citar ainda muitos outros acontecimentos referentes mais ou menos ao mesmo tempo; apenas: faremos notar que para Roma foi o inicio do período propriamente "histórico", que sucedeu à época "lendária" dos reis. Sabe-se, também, de uma maneira um pouco vaga, que houve então importantes movimentos entre Os povos celtas. E sem mais insistir, vamos ao que se refere à Grécia. Aí, igualmente, o século VI foi o ponto de partida da civilização chamada "clássica", a única a que os modernos reconhecem o caráter "histórico", e tudo quanto precede é bem mal conhecido, sendo tratado de "lendário", embora as descobertas arqueológicas recentes não nos permitirem mais duvidar de que lá, anteriormente, também houve uma civilização real. E temos razões de sobra para crer que esta primeira civilização helênica foi intelectualmente muito mais interessante que a seguinte, e que as relações entre essas duas civilizações não deixam de oferecer certa analogia cem as que existiram entre a Europa medieval e a Europa moderna. Todavia, convém notar que a cisão não foi tão radical como neste último caso, pois houve, ao menos parcialmente, uma readaptação efetuada na ordem tradicional, principalmente no domínio dos "mistérios", que está ligado com o pitagorismo, que foi sobretudo, sob uma nova forma uma restauração do orfismo anterior, e cujos laços evidentes com o culto délfico de Apólo hiperbóreo permitem até vislumbrar uma filiação contínua e regular com uma das mais antigas tradições de humanidade. Mas por outro lado, vimos logo aparecer algo de que não se tinha tido até então exemplo algum e que, com o decorrer dos tempos, devia exercer uma influência nefasta sobre todo o mundo ocidental: queremos nos referir a esse modo especial de pensar que tomou e conservou o nome de "filosofia", e este ponto é bastante importante para nele nos determos alguns instantes.
A palavra "filosofia", em si mesma pode seguramente ser tomada em um stentido muito legítimo, que sem dúvida foi o seu primitivo sentido, sobretudo, se fôr verdade, como pretendem, que foi Pitágoras quem a empregou antes de qualquer outra pessoa: etimològicamente ela não significa senão "amor à sabedoria"; designa portanto, em primeiro lugar, uma prévia disposição requerida para ascender à sabedoria, mas também pode designar, por uma extensão muito natural, a procura que, provindo desta mesma disposição, deve conduzir ao conhecimento. Não é pois senão um estágio preliminar o preparatório de um encaminhamento que conduz à sabedoria, mas que nem por isso deixa de estar abaixo dela. (5) O descaminho que se produziu posteriormente consistiu em tomar este grau transitório pelo próprio fim, tem pretender substituir pela sabedoria a "filosofia", o que implica na falta de lembrança ou o desconhecimento da verdadeira natureza da primeira. E foi assim que nasceu o que poderemos chamar a filosofia "profana", isto é, uma pretensa sabedoria puramente humana e por conseguinte de ordem simplesmente racional, tomando o lugar da verdadeira sabedoria tradicional, supra-racional e "não humana".
Sem embargo, ainda subsistiu alguma coisa desta através de toda a antigüidade, o que é provado primeiramente pela persistência dos "mistérios", cujo caráter essencialmente "iniciático", não poderá ser contestado; e também pelo fato de que o ensinamento dos próprios filósofos apresentava às mais das vezes e ao mesmo tempo, um lado "esotérico" ou interno, podendo este último permitir a ligação com um ponto de vista superior, o que aliás se manifestava duma maneira muito nítida embora ainda talvez incompleta em certos aspectos, alguns séculos mais tarde entre os Alexandrinos. Para que a filosofia "profana" fosse definitivamente constituída como tal era preciso que somente o "exoterismo" permanecesse, e que fosse até à negação pura e simples de qualquer "esoterismo". É este o resultado onde deveria ir dar o movimento começado pelos gregos., e que ora presenciamos; já se afirmavam as tendência que deviam em nossos; dias ser levadas às conseqüências mais extremas e a excessiva importância que deram ao pensamento racional, acentuou-se ainda mais, chegando ao "racionalismo", atitude especialmente moderna que consiste, não mais em só e simplesmente ignorars mas em negar expressamente tudo quanto seja de ordem supra-racional. Não antecipemos, entretanto, as conseqüências que isso acarretou e o modo como se desenvolveram, assunto que voltaremos noutra parte deste trabalho.
Do que acabamos de dizer, uma coisa sobretudo deve ser lembrada particularmente, para o ponto de vista que tratamos: convém procurar na antigüidade "clássica", algumas das origens do mundo moderno, que se gaba, não sem razão, de ser o continuados da civilização greco-latina. É no entretanto, preciso dizer que essa continuação é longínqua e um tanto infiel, pois havia apesar de tudo, nessa antigüidade, muitas coisas que na ordem intelectual e espiritual não têm equivalentes entre os modernos; em todo o caso no obscurecimento progressivo do verdadeiro conhecimento, são dois graus bastante diferentes. Poder-se-ia, outrossim, Conceber que a decadência da civilização antiga tenha trazido de um modo gradual e sem solução de continuidade um estado mais ou menos semelhante ao que vemos hoje; mas na verdade, tal não se deu, porque no intervalo1 houve para o Ocidente uma outra época crítica que foi ao mesmo tempo uma dessas épocas de retificação a que aludimos acima.
Foi o início e a expansão do cristianismo, que coincidia de um lado com a dispersão do povo judeu, e de outro, com a última fase da civilização greco-latina; assim, podemos passar mais rapidamente sobre esses acontecimentos, apesar de sua importância, porque são mais geralmente conhecidos do que aqueles de que discorremos até aqui, e seu sincronismo foi notado até pelos historiadores de horizontes bem superficiais. Já foram também várias vezes assinalados certos traços comuns entre a decadência antiga e a época atual; e sem querer levar muito avante o paralelismo, devemos, efetivamente, reconhecer nele várias semelhanças notáveis. A filosofia puramente "profana" tinha ganho terreno; o aparecimento do cepticismo de um lado, o sucesso do "moralismo" estóico e epicurista do outro, mostram bastante até que ponto a intelectualidade desceu. Ao mesmo tempo as antigas doutrinas sagradas, que quase mais ninguém compreendia, tinham degenerado, devido a esta incompreensão, ao "paganismo", no verdadeiro sentido do termo, isto é, não passavam de "superstições", coisas que, tendo perdido sua profunda significação, sobrevivem a si mesmas por manifestações unicamente exteriores. Houve tentativas de reação contra esta caducidade; o próprio helenismo tentou revitalizar-se à custa de elementos tirados das doutrinas orientais, com as quais podia achar-se em contato, mas tal já não bastava ; a civilização greco-latina estava em seu fim e seu ressurgimento tinha que vir de algures e operar-se sob uma forma completamente diversa. Foi o cristianismo que levou a cabo esta transformação e salientaremos de passagem que a comparação que se pode fazer sob certos aspectos entre aquele tempo e o nosso, talvez seja um dos elementos determinantes do "messianismo" desordenado que atualmente tomou incremento.
Após o agitado período das invasões bárbaras, necessário para completar a destruição do antigo estado de coisas, uma ordem normal foi restaurada e teve a duração de alguns séculos — a Idade Média — tão desconhecida pelos modernos, incapazes de compreendê-la na sua intelectualidade, e para os quais ela é muito menos familiar e longínqua do que a antigüidade "clássica".
A verdadeira Idade Média, para nós, estende-se desde o reinado de Carlos Magno até os princípios do século XIV. Com esta última data começa uma mova decadência, que através de etapas diversas, se foi acentuando até nossos dias. E o verdadeiro ponta de partida da crise moderna é o começo da desagregação da "crístandade", com a qual se identificava essencialmente a civilização medieval no Ocidente; ao mesmo tempo, o fim do regime feudal, assaz intimamente ligado e solidário com esta mesma "crístandade", é a origem da constituição das "nacionalidades". Portanto, é preciso considerar o começo dos tempos modernos dois séculos mais cedo do que se leva em conta habitualmente ; a renascença e a reforma são sobretudo resultantes, que somente se tornaram possíveis em virtude de uma decadência anterior. Longe de serem uma retificação, elas marcaram uma queda muito mais profunda, pois consumaram o rompimento definitivo com o espírito tradicional, quer no campo dais ciências e das artes, quer até mesmo no campo religioso, no qual tal ruptura teria sido bem dificilmente concebível.
Aquilo a que se chama Renascença, foi na realidade, como em outras ocasiões já o fizemos notar a morte de muitas coisas, sob o pretexto de volver à civilização greco-romana; só aproveitaram desta o que ela tinha de mais exterior, pois só isso havia claramente nos textos escritos. E mesmo esta restituição incompleta não podia, sem dúvida, ter senão um caráter muito artificial, atendendo a que se tratava de formas que há muitos séculos tinham cessado de existir com vida própria. Quanto às ciências tradicionais da idade média, depois de terem apresentado ainda algumas manifestações finais, inerentes a esta época, desapareceram tão radicalmente como as das civilizações mais remotas que foram outrora aniquiladas por algum cataclismo; desta vez, porém, nada haveria para substitui-las. Daí por diante nada mais houve além da filosofia e da ciência "profanas", isto é, a negação da verdadeira intelectualidade, a limitação do conhecimento à ordem mais inferior, o estudo empírico e analítico dos fatos que não estão mais ligados a qualquer princípio, a dispersão numa multidão indefinida de detalhes insignificantes, o acúmulo de hipóteses sem fundamentos, que se destróem incessantemente umas às outras, e vistas fragmentárias que a nada podem conduzir, salvo a essas aplicações práticas que constituem a única superioridade efetiva da civilização moderna; superioridade aliás pouco invejável, e que desenvolvendo-se até abafar qualquer outra preocupação deu à esta civilização o caráter puramente material que a tornou uma verdadeira monstruosidade.
O que é muitíssimo extraordinário, é a rapidez com a qual a civilização medieval caiu no mais completo esquecimento; os homens do século XVII, não tinham mais a mínima noção do que ela fora; os monumentos que subsistiam nada mais representam aos seus olhos, nem na ordem intelectual, nem tampouco na ordem estética. Pode-se julgar por aí o quanto a mentalidade se tinha transformada nesse intervalo! Não tentaremos procurar descobrir aqui os fatores, sem dúvida alguma muito complexos, que Concorreram para esta transformação tão radical, e é até bem difícil admitir que ela pudesse operar-se espontaneamente, sem a intervenção duma vontade diretriz, cuja natureza exata permanece forçosamente bastante enigmática; a este respeito, há circunstâncias assaz estranhas, como a vulgarização, num determinado momento, apresentando como novas descobertas, coisas que na realidade eram conhecidas há muito tempo, mas cujo conhecimento em virtude de certos inconvenientes, que poderiam pôr em risco suas vantagens, não tinha caído ainda até então no domínio público. (6)
Não é também nada provável que a lenda que fêz da Idade Média uma época de "trevas", de ignorância e de barbárie, se tenha originado te firmado por si mesma, e que a verdadeira falsificação da história, tal como nos é apresentada peitos modernos, tenha sido empreendida sem nenhuma idéia preconcebida. Mas não iremos mais avante no exame desta questão, pois seja qual fôr o modo pelo qual este trabalho se tenha efetuado, é no momento, a constatação do resultado o que em suma mais nos importa.
Há uma palavra que ocupou um lugar de honra na Renascença, e que resumia antecipadamente todo o programa da civilização moderna: o "humanismo". Tratava-se, com efeito, de reduzir tudo a proporções puramente humanas; prescindir de qualquer princípio de ordem superior, e poder-se-ia dizer simbolicamente desviar-se do céu sob o pretexto de conquistar a terra. Pretendia-se seguir o exemplo dos gregos, porém estes nunca tinham ido tão longe nesse sentido, nem no tempo de sua maior decadência intelectual, ou, pelo menos, as preocupações utilitárias nunca tinham passado para o primeiro plano, como logo deveria suceder entre os modernos. O "humanismo" já era uma primeira forma daquilo em que se transformaria o "laicismo" contemporâneo; e querendo reduzir tudo à medida do homem, tomado como fim, a si próprio, acabou êle por descer de etapa em etapa ao seu mais baixo nívtel, e para só quase procurar a satisfação das necessidades inerentes ao lado material de sua natureza, pretensão afinal de contas bastante ilusória, pois que esta suscita sempre mais necessidades artificiais dia que as poderia satisfazer.
Irá o mundo moderno até o fim deste fatal declive, ou então, como aconteceu na decadência do mundo greco-latino, uma nova correção se produzirá, e ainda desta vez antes que tenha atingido o fundo do abismo para onde está sendo arrastado? Mas parece provável que uma parada a meio caminho não seja mais possível. Segundo todas as indicações fornecidas pelas doutrinas tradicionais, nós já entramos decididamente na fase final da Kali Yuga, no período mais sombrio desta "idade sombria", e deste estado de dissolução não é mais possível sair senão por um cataclismo, pois neste caso não bastará uma simples retificação — será necessário uma renovação total. A desordem e a confusão imperam em todos os campos, foram levadas a um ponto que ultrapassa muito e muito tudo quanto se havia visto precedententente, e partindo do Ocidente, ameaçam agora invadir o mundo inteiro.. Entretanto, sabemos muito bem que seu triunfo não poderá ser senão aparente e passageiro; tal grau parece-nos ser o sinal da mais grave de todas as crises que atravessou a humanidade durante o ciclo atual. Não temos nós chegado a esta época temível, anunciada pelote Livros sagrados da India, "em que as castas serão, misturadas, em que a própria família deixará de existir"? Basta que cada um olhe em volta de si, para se convencer de que este é realmente o estado do mundo atual por toda a parte, estado que demonstra essa profunda degradação a que o Evangelho chama "a abotninação da desolação". Não se deve dissimular a gravidade da situação; convém encará-la tal qual ela se apresenta, sem nenhum "otimismo", mas também sem nenhum "pessimismo", visto que, como atrás dizíamos, o fim do mundo antigo será também o começo dum mundo novo.
Quanto ao presente, pergunta-ste: qual será a razão de ser dum período, como o em que vivemos? Com efeito, por mais anormais que sejam as condições presentes, consideradas em si mesmas, elas devem no entanto entrar na ordem geral das coisas, nesta ordem que segundo uma fórmula do Extremo Oriente, é formada pela soma de todas as desordens. Esta época por mais penível e turva que ela seja, também deve ter, como todas as outras, seu lugar marcado no conjunto do desenvolvimento humano, e demais o fato de ter ela sido prevista pelas doutrinas tradicionais é, a este respeito, uma indicação suficiente. O que dissemos sobre a marcha geral dum ciclo de manifestação caminhando no sentido duma materializarão progressiva, dá, sem mais delongas, a explicação dum tal estado e mostra bem que o que é anormal e desordenado, sob um certo ponto de vista particular, não é entretanto senão conseqüência duma lei que fie relaciona com um ponto de vista superior ou mais extenso. Acrescentaremos, sem contudo insistir demais, que, como toda a mutação de um estado, a passagem de um ciclo para outro só se pode efetuar na penumbra. Esta lei é muito importante, e são múltiplas, as suas aplicações, e por isso mesmo uma exposição um pouco detalhada a tal respeito nos levaria demasiadamente longe. (7)
Mas não é só; a época moderna deve necessariamente corresponder ao desenvolvimento de certas possibilidades, que desde sua origem estavam incluídas na potencialidade do ciclo atual, e por mais inferior que seja o lugar ocupado por essas possibilidades na hierarquia de todo o conjunto nem por isso deveriam deixar de ser chamadas à manifestação tanto quanto às outras, segundo a ordem que lhes foi assinalada. Relativamente a esta circunstância, segundo a tradição, o que caracteriza a última fase do ciclo é, poder-se-ia dizer, a exploração de tudo quanto foi desdenhado' ou rejeitado no decorrer das fases precedentes. Efetivamente é mesmo isso o que nós podemos constatar na civilização moderna, que não vive por assim dizer, senão daquilo que as civilizações anteriores desdenharam. Para o evidenciar, basta ver de que modo os representantes das civilizações que se puderam ainda manter, até agora no mundo oriental, apreciam as ciências ociden tais e suas aplicações industriais. Entretanto estes conhecimentos inferiores, tão vazios aos olhos de quem possui um conhecimento de outra ordem, deviam ser "realizados", e para isso seria preciso que se encontrassem numa fase em que a verdadeira intelectualidade tivesse desaparecido. Estas pesquisas dum alcance exclusivamente prático, no sentido mais restrito da palavra, deveriam ser realizadas por homens aprofundados na matéria, a ponto de nada mais. conceberem para além e que tivessem chegado ao extremo oposto da espiritualidade primordial, tornando-se tanto mais escravos desta mesma matéria quanto mais pretendessem sujeitá-la a seus diversos; fins, o que os conduziria a uma agitação sempre crescente, sem regra nem finalidade, à uma dispersão na pura multiplicidade até a dissolução final.
Tal é, esboçada a largos traços e reduzida ao essencial, a verdadeira explicação do mundo moderno; mas, digamo-lo abertamente, esta explicação não deverá absolutamente ser tomada por uma justificativa. Uma infelicidade inevitável, nem por isso deixa de ser uma infelicidade; e mesmo se de um mal deve advir um bem, este fato hão tolhe ao mal o seu caráter. É claro que os termos de "bem" e "mal", que nós empregamos agora aqui, para melhor nos fazermos compreender, estão fora de qualquer intenção especificamente "moral". As desordens parciais não podem deixar de existir, por serem elementos necessários da ordem total; mas, apesar disso, uma época de desordem é propriamente alguma coisa comparável a uma monstruosidade, que mesmo sendo a conseqüência de certas leis naturais, não deixa de ser um extravio e uma espécie de erro, ou então é comparável a um cataclismo, que embora resulte do curso normal das coisas, não deixa de ser, se o encararmos isoladamente, uma grande perturbação e uma anomalia.
A civilização moderna, como todas as coisas, tem forçosamente sua razão de ser, e se fôr realmente ela que vai fechar um ciclo, pode-se dizer que ela é o que ela deve ser, e que ela vem a seu tempo e se acha em seu lugar; e nem por isso deverá deixar de ser julgada segundo a palavra evangélica, tão freqüentemente mal compreendida: "Porque é necessário que sucedam escândalos; mas ai daquele, por quem vêm os escândalos".