Rene Guenon

René Guénon, metafisíco

Algumas notas sobre sua obra

Fernando Guedes Galvão

Fernando Guedes Galvão foi o introdutor da obra de René Guénon no Brasil e o estudo que ora apresentamos constitui o apêndice da tradução de "A Crise do Mundo Moderno", publicado pela Martins Editora, São Paulo, 1948.
Galvão desfrutou do privilégio de ser amigo e correspondente assíduo de Guénon por anos a fio. Hoje, tivemos a grata surpresa de receber telefonema de uma das filhas de Fernando Guedes Galvão, nos trazendo preciosas informações sobre o pai, que sempre manteve a família unida. Foi preservado com cuidado e carinho o patrimônio intelectual legado pelo pai, falecido em 1982, aos 82 anos. Retificamos, pois, com grande alívio, informações incorretas que constavam nesta página e que nos haviam sido fornecidas por um falecido estudioso de artes orientais. Como havíamos advertido então, tratava-se de informações de terceira mão mas, felizmente, o equívoco foi identificado e sanado. Acreditamos que em breve poderemos ter elementos de fonte direta para resgatarmos a trajetória deste importante intelectual brasileiro.

(São Paulo, 22-9-2007 - Luiz Pontual)

Ao tratar-se da obra de um escritor, tem-se também por hábito discorrer sobre sua pessoa; no caso presente seria contra-indicado, pois o próprio René Guénon declarou terminantemente, quando lhe pediram informações biográficas "que estas não pertencem ao público, visto que tais coisas não podem ter para ninguém, o mínimo interesse verdadeiro: que só a doutrina vale, e diante dela as individualidades não existem". Sempre que fôr possível, transcreveremos o texto de Guénon, para desta forma nos aproximarmos com mais exatidão de seu pensamento. Certa revista francesa assim se exprimiu a seu respeito: "as doutrinas de René Guénon..." Êle contesta: "nossas doutrinas não existem porque nunca fizemos outra coisa senão expor, o melhor que nos foi dado, as doutrinas tradicionais que a ninguém pertencem". É por conseguinte, a Tradição mesmo que vamos estudar através de sua obra.

Nos primeiros anos que sucederam ao armistício de 1918 foi ainda uma vez feita no Ocidente uma tentativa muito importante, visando um retorno aos princípios tradicionais. Estamos convencidos que a matéria exposta por Guénon, com uma clareza e uma autoridade incontestável, influiu grandemente para a elaboração dum movimento nesse sentido, mostrando as verdades imutáveis que a Europa abandonara há seis séculos.

Em 1921, oferece ao público: "Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus", que é como a chave de toda a sua obra. Está dividida em quatro partes, cujas duas últimas efetivamente são consagradas à exposição das doutrinas hindus e à crítica das interpretações que lhes fizeram os ocidentais. As duas primeiras partes porém, a despeito de seu título, são na realidade uma magistral introdução ao estudo de todas as tradições, tanto orientais como ocidentais, diremos mesmo, ao estudo da Tradição. "Convém, sem mais delongas, dar a significação precisa da palavra hindu, fazendo notar que não se aplica a uma unidade étnica, mas tradicional: são hindus todos aqueles que aderem à mesma tradição, sob a condição, está visto, de serem devidamente qualificados para poderem aderir real e efetivamente, e não de um modo simplesmente exterior e ilusório. Pelo contrário, não são hindus aqueles que não partícipam desta mesma tradição, seja por razão estranha à sua vontade ou porque a tenham voluntariamente abandonado, ou ainda, porque tenham sido postos fora da unidade hindu. Este último é o caso dos Jainas e também foi, nos tempos modernos, o dos Sikfos. É portanto um verdadeiro contra-senso dizer-se, por exemplo: "jainismo hindu", em vez de jainismo indiano. O que faz a gravidade de um erro tal, e que constitui aos nossos olhos muito mais do que uma simples inexatidão de detalhe, é que isso evidencia uma profunda falta de conhecimento do caráter mais essencial da civilização hindu.

Toda a tradição hindu é e sempre foi fundada sobre o Veda, vocábulo esse que significa, propriamente o conhecimento tradicional por excelência. É o princípio e o fundamento comum de todas as ramificações derivadas da doutrina hindu. Os Vedas cuja origem é tida como "não-humana" está repartido em quatro coleções, pertencendo à classe dos textos tradicionais chamados Shruti, termo cujo sentido é vizinho da nossa palavra "revelação", designando o fruto duma inspiração direta, de maneira que ela possui sua autoridade própria. Os Vedas são estudados especialmente pelos Brâhmanas, que fazem parte da primeira casta, correspondendo às três outras, aos nobres, aos comerciantes e aos servos (1). Quanto às "classes" sociais, como hoje são compreendidas, nada têm de comum com as verdadeiras castas. São uma espécie de contrafação, sem qualquer valor ou alcance, pois não estão absolutamente baseadas na diferença das possibilidades inerentes à natureza dos "indivíduos humanos". Esta diferença é que estabelece entre os indivíduos uma hierarquia, cujo desconhecimento não pode trazer senão a desordem e a confusão. É precisamente este desconhecimento que está implicado na teoria de "igualdade", tão querida do mundo moderno, teoria que é contrária a todos os fatos estabelecidos, e que é até desmentida pela simples observação corrente, visto que a igualdade não existe realmente, em parte alguma.

As palavras que servem para designar casta, na Índia, não significam outra coisa senão "natureza individual", entendendo por isso o conjunto dos caracteres que se agregam à natureza humana "específica" para diferençar os indivíduos entre eles. Convém dizer imediatamente que a hereditariedade só entra, em parte, na determinação destes caracteres, sem o que todos os indivíduos duma mesma família seriam exatamente semelhantes. Ainda que a casta não seja estritamente hereditária em princípio, tornou-se assim de fato mais freqüentemente, e também na aplicação. Além do mais, não podendo haver dois indivíduos idênticos ou iguais a todos os respeitos, há forçosamente ainda diferenças entre aqueles que pertencem a uma mesma casta; mas do mesmo modo que há mais caracteres comuns entre seres duma idêntica espécie do que entre seres duma espécie diferente, há também mais, no interior da espécie, entre indivíduos duma mesma casta, do que entre os de uma casta diferente. Em vista disso, poder-se-ia dizer que a distinção das castas constitui, na espécie humana, uma verdadeira classificação natural, à qual deve corresponder a repartição das funções sociais. Com efeito, cada homem, em razão de sua própria natureza, está mais apto para preencher tais funções definidas, com exclusão de outras; e numa sociedade estabelecida regularmente sobre bases tradicionais, estas aptidões devem ser determinadas segundo regras precisas, a fim de que cada indivíduo se encontre no lugar que deve ocupar normalmente, pela correspondência dos diversos gêneros de função, levando em conta as grandes divisões da classificação das "naturezas individuais", salvo exceções devidas a erros de aplicação sempre possíveis, mas por assim dizer, reduzidos ao mínimo. Assim a ordem social traduz exatamente as relações hierárquicas que resultam da própria natureza dos seres. Tal é, em poucas palavras, a razão fundamental da existência das "castas".

Se nos estendemos um pouco sobre o princípio das castas, é porque os ocidentais de hoje desconhecem, permitam-nos dizer, quase que completamente este ponto. Notificaremos que os "Brâhmanas" não são de modo algum "padres", no sentido ocidental religioso desta palavra. Indubitavelmente suas funções comportam o cumprimento dos ritos de ordens diferentes, porque eles devem dar aos ritos toda a sua eficiência (2), mas comportam, antes de tudo, a conservação e a transmissão da doutrina tradicional." Nessa primeira obra publicada por René Guénon, há capítulos dedicados à tradição e à religião, aos caracteres essenciais da metafísica e da teologia, ao simbolismo e ao antropomorfismo, ao pensamento metafísico e ao pensamento filosófico, às relações do esoterismo e do exoterismo, e finalmente à realização metafísica. Estes capítulos apresentam um interesse tão capital para o estudante da tradição cristã, ou da Kabbala, quanto para o discípulo do taoísmo, do Vêdânta, ou do islamismo.

No mesmo ano de 1921 é publicado "O Teosofismo, história duma pseudo-religião", onde vêm narradas as peripécias da fundação da Sociedade Teosófica, a história de seus fundadores e membros principais, assim como a história das inúmeras e nefastas sociedades espiritualistas que se formaram desde os meados do século XIX. O título do livro "O Erro Espírita" editado em 1923, só por si já é bastante eloqüente. Contudo, sobre: esses dois livros diremos de um modo geral o que já foi dito na revista parisiense ,"Etudes Traditionnelles" (3), na qual Guénon colabora regularmente desde 1929: "Considero os partidários do néo-espiritualismo como responsáveis, em parte, da desordem da intelectualidade moderna: p ocultismo e o espiritismo impediram, com efeito, uma possível reação contra o materialismo, apresentando uma falsa espiritualidade que não é mais que um materialismo disfarçado. Por outro lado, o teosofismo, deformando as concepções tradicionais, frustou a ação reformadora, que poderia ter produzido o conhecimento das verdadeiras doutrinas orientais". (Jean Reyor, "Etudes Traditionnelles", 1932, pág. 340).

A livraria Payot edita em 1924 "Oriente e Ocidente". Nesse volume Guénon se propõe "denunciar os erros e as ilusões ocidentais, e isto não é empreender uma obra de critica vã e puramente negativa, pois esta atitude comporta razões profundas. Preferiríamos muito mais não ter que nos entregar a esse trabalho, mais do que ingrato, e 'contentar-nos em expor certas verdades, sem ter que nos preocupar com as falsas interpretações, que só complicam e embaraçam as questões como propositalmente. Mas devemos levar em conta estas contingências, pais se não começarmos por varrer o terreno, tudo: aquilo que poderemos dizer correrá o risco de permanecer incompreendido. Contudo, teremos certamente ocasião de expor coisas que tenham um alcance verdadeiramente positivo, mesmo quando parecer que nós afastamos somente erros, ou respondemos a objeções".

"O homem e seu vir a ser, segundo o Vêdânta", 1925. "No Vêdânta estamos no domínio da metafísica pura. É por conseguinte supérfluo repetir que não é nem filosofia, nem religião, embora os orientalistas gostem de ver nesta doutrina ou uma ou outra destas coisas, ou então, como Schopenhauer, religião e filosofia ao mesmo tempo. Etimològicamente Vêdânta significa "fim do Veda", e o vocábulo "fim", deve ser tomado no seu duplo sentido, que também tem em português: de conclusão e de finalidade. Com efeito, as "Upanishads", nas quais êle se baseia essencialmente, formam a última parte dos textos védicos, e o que é ali ensinado, na medida em que pode ser, é o termo último e supremo do conhecimento tradicional inteiro, livre de todas as aplicações mais ou menos particulares e contingentes, as quais podem dar lugar em ordens diversas. A própria designação das "Upanishads", indica que estão destinadas a destruir a ignorância, raiz da ilusão que encerra o ser nos laços da existência condicionada, e que operam este efeito fornecendo os meios de aproximar-se do conhecimento de Brahma. Esta aproximação, sendo rigorosamente incomunicável na sua essência, só pode ser atingida efetivamente por um trabalho estritamente pessoal, e nenhum ensinamento exterior, por mais elevado e profundo que seja, tem o poder de supri-lo. Numerosos têm sido os comentários sobre o Vêdânta; os mais importantes são os de Sehankarâchârya e de Râmânuja, perfeitamente ortodoxos, tanto um como o outro".

Ainda no ano de 1925, Guénon empresta sua pena a "Regnabit ", Revista Universal do Sagrado Coração de Jesus, publicada sob a proteção de S. Ema. o Cardeal Dubois, arcebispo de Paris. Escreveu magníficos artigos referentes ao simbolismo, à unidade das tradições e outros assuntos. Expôs seu conceito sobre o catolicismo: "é somente no cristianismo, digamos mais precisamente, no catolicismo, que se encontram, no Ocidente, os restos do espírito tradicional que sobrevivem ainda. Toda a tentativa "tradicionalista" que não levar em conta este fato, está inevitavelmente destinada ao insucesso, porque lhe falta a base".

O Revdo. Abade Anizan, secretário-geral da referida revista, espírito esclarecido e admirador de Guénon, compreende perfeitamente o alcance que poderia ter na formação duma elite para contrapor-se ao materialismo invasor e todas suas nefandas conseqüências, a orientação do autor do "Teosofismo".

Neste período, é solicitado em diversos meios, inclusive o da "cultura oficial", até pela Sorbonne onde pronuncia uma esplêndida conferência. Em Regnabit, no número de fevereiro de 1927, lê-se o seguinte: "Muitos ficarão talvez surpreendidos, seja a propósito das considerações que já expusemos ou das que teremos o ensejo de expor futuramente, do lugar preponderante (ainda que de nenhum modo exclusivo) que damos, entre as diferentes Tradições antigas, à da Índia. Seria, em suma, bastante compreensivo a causa desta admiração, levando em conta a ignorância completa que se tem geralmente no mundo ocidental da verdadeira significação dessas doutrinas. Poderíamos nos limitar a dizer que como estudamos mais particularmente as doutrinas hindus nos é lícito tomá-las legitimamente como termo de comparação. Contudo, acreditamos ser preferível dizer claramente que há para isso razões profundas e dum alcance mais geral. Àqueles que forem tentados a duvidar aconselharemos vivamente a ler o interessante livro do Revdo. Pe. William Wallace, S. J., intitulado: "Do Evangelismo ao Catolicismo, pelo caminho das Índias", (4) que constitui a esse respeito um grande testemunho de grande valor. É uma autobiografia do autor, que foi à Índia como missionário anglicano, convertendo-se depois ao catolicismo pelo estudo direto que fêz das doutrinas hindus. Em sua exposição demonstra uma compreensão dessas doutrinas, que apesar de não ser totalmente completa sobre todos os pontos, vai incomparavelmente mais longe do que tudo quanto encontramos nas outras obras ocidentais, inclusive as dos "especialistas". Ora, o Revdo. Pe. Wallace declara formalmente, entre outras coisas, que o "Sanatana Dharma dos sábios hindus (que poderemos traduzir com bastante exatidão por Lex Perenmis que é o fundo imutável da doutrina), procede exatamente do mesmo princípio que a religião cristã"; que "tanto um como outro almejam o mesmo fim e oferecem os mesmos meios essenciais para atingi-lo" (pág. 218 da tradução francesa); afirma que "Jesus Cristo aparece tão evidentemente como o Consumador do Sanatana Dharma, dos hindus (este sacrifício aos pés do Supremo), quanto o Consumador da religião típica e profética dos judeus e da Lei de Moisés" (pág. 217). Que a doutrina hindu é "o pedagogo natural que conduz a Cristo" (pág. 214). Não justifica isso amplamente a importância que atribuímos à esta tradição, cuja harmonia profunda com o cristianismo (5), não poderá escapar a quem quer que a estude, como o fêz o Revdo. Pe. Wallace, sem idéias preconcebidas? Considerar-nos-emos felizes se conseguirmos fazer sentir, por pouco que seja, a harmonia existente entre os pontos que tratamos, e ao mesmo tempo, se fizemos compreender que o motivo deve ser procurado na. cadeia diretíssima que une a doutrina hindu à grande Tradição primordial.

Lembremo-nos das próprias palavras de Cristo: " Não julgueis que vim destruir a lei, ou os profetas; não vim a destrui-los, mas sim a dar-lhes cumprimento" (Mat. V. 17). Mais tarde o excelso Santo Agostinho declara o seguinte: "Pois isso mesmo o que agora se chama religião cristã, já existia entre os antigos, nem deixou de existir desde o começo do gênero humano, até a vinda de Cristo encarnado; e então a verdadeira religião que já existia, começou a chamar-se cristã." (6) A partir de março de 1927, o Revdo. Pe. Anizan deixa bem patenteada a ortodoxia de Regnabit, que doravante passará a trazer o "Nihil obstat". Entretanto, somente ainda dois artigos de Guénon são publicados, quando, depois do número de maio que contém "O Centro do Mundo nas doutrinas do extremo Oriente", cessa sua colaboração.

Como é possível que o "Órgão da Sociedade de Cintilação Intelectual do Sagrado Coração de Jesus" anuncie em suas capas livros "exóticos" como: "O Homem e seu vir a ser, segundo o Vêdânta"? Mal-entendido, de um certo modo "clássico", encontrar-se heresias onde a Verdade aparece apenas com, uma outra vestimenta. .Debalde empreendeu o Abade Anizan, o mesmo que procurava conseguir o Cheikh El-Alawi, no velho continente africano, em Mostaghanem; um entendimento entre membros de várias tradições para combater a "degenerescência modernista".

Desenvolveremos rapidamente os acontecimentos que ocorreram durante aquele período. J. Evola exprime-se assim: "Guénon é combatido em França por todos os meios e modos; tentam até fazer desaparecer os seus livros da circulação". Esta tentativa foi levada bastante longe, considerando-se que em 1929, ou 30, não era fácil encontrar no mercado um livro seu qualquer; até que por esse ano uma firma "L'Anneau d'Or", constitui-se e adquire a propriedade da maioria de suas obras, entregando-as novamente ao público. Os editores de uma revista francesa, na qual colaborava então Guénon, chegaram a ser seriamente ameaçados. Onde poderia êle encontrar apoio? Não seria por certo nos meios protestantes, pois não tinha repetidas vezes proclamado a heterodoxia dessa "religião"? No ocultismo, no espiritismo, no teosofismo e em todas as outras seitas mais ou menos semelhantes, nem vale a pena falar. Nos meios "culturais" universitários ou científicos, não mostrou êle plenamente a insuficiência de muitas dessas coisas e de outras ainda que gozam de tanto crédito no mundo contemporâneo ? Não é nem poderá nunca ser partidário de um regime político em vigor no Ocidente. E por quê, perguntarão muitos? Damos a palavra a A. K. Coomaraswamy: "A democracia é o governo de todos, por uma maioria de proletários; o soviet é o governo de um pequeno grupo de proletários; e a ditadura é o governo de um só proletário.

Numa sociedade tradicional e unânime, o governo é confiado a uma aristocracia hereditária, cuja função é assegurar a conservação duma certa ordem, repousando sobre princípios eternos, antes de impor as opiniões ou a vontade arbitrária (vontade tirânica, no sentido mais técnico do termo) dum indivíduo ou dum partido qualquer" (da "Mentalidade primitiva", publicado nos "Estudos Tradicionais" número de agosto de 1939). De acordo com o encargo que nos impusemos, preferimos, sempre que nos seja possível, transcrever o trecho onde se acha a própria redação de Guénon (como já o dissemos anteriormente), quando fere diretamente ou quando faz sugerir o assunto que desejamos expor. Pode ter igualmente acontecido, e acontecer ainda, que por comodidade lancemos mão de uma citação de um outro autor que será, naturalmente, também uma autoridade. Continuando passar em revista as "forças" mais em evidência na atualidade, faz-se a pergunta e a Fran-co-Maçonaria estende-lhe a mão? Como poderia fazê-lo se Guénon lamenta a sua degenerescência avançada, embora não lhe negue uma filiação ortodoxa?

Vejamos como êle se exprime a esse respeito: "Tudo mostra, disse Joseph de Maistre, que a Franco-Maçonaria vulgar é um galho destacado, talvez corrompido, dum tronco antigo e respeitável". É assim, mesmo que é preciso encarar a questão. Comete-se freqüentemente a injustiça de pensarmos somente na Maçonaria Moderna, sem refletir que esta é simplesmente o produto dum descaminho. Os primeiros responsáveis por este descaminho, ao que parece, foram os pastores protestantes, Anderson e Desaguliers, que redigiram as Constituições da grande Loja da Inglaterra, publicadas em 1723 e que fizeram desaparecer todos os antigos documentos dos quais puderam deitar mão, para que não se percebesse as inovações que eles introduziram, e também por que estes documentos continham fórmulas que julgavam muito estorvantes, como a obrigação de "fidelidade a Deus, à Santa Igreja e ao Rei", sinal incontestável da origem católica da Maçonaria. (7) Os protestantes prepararam este trabalho de deformação, aproveitando os quinze anos que decorreram entre a morte de Cristovam Wren, último Grão-Mestre da Maçonaria antiga (1702) e a fundação da nova Grande Loja da Inglaterra (1717).

Entretanto, deixaram subsistir o simbolismo, sem suspeitar que este, para aqueles que o compreendiam, testemunhava contra eles tão eloqüentemente, quanto os textos escritos, que aliás não conseguiraram destruir totalmente. Eis brevissimamente resumido o que deveria saber todo aquele que quiser combater eficientemente as tendências da Maçonaria atual." (8) Também não podemos omitir o aspecto que apresenta relativamente aos meios "semistas" ou "anti-semistas", e qual a atitude de um ou de outro, em relação ao "caso Guénon", como foi chamado e forjado pelos seus inimigos. Noticiando a publicação de um dos livros de Léon de Poncins, lê-se o seguinte:

"Há seguramente muita verdade no que está exposto a respeito das duas"Internacionais", uma revolucionária, e a outra financeira, que sem dúvida estão muito menos em oposição do que poderia crer o observador superficial. Mas, poderia tudo isso, que aliás faz parte de um conjunto muito mais vasto, estar realmente debaixo da direção dos judeus (seria talvez preciso dizer de certos judeus), ou não estará isso sendo utilizado por "alguma coisa" que os ultrapassa? Haveria, sem embargo, um estudo curioso a fazer, pensamos, considerando as razões pelas quais o judeu, quando é infiel à sua tradição, se torna, mais facilmente que outro qualquer, o instrumento das "influências" que presidem ao extravio moderno; o que seria, de certo modo, o avesso da "missão dos Judeus" (9), e talvez isso possa levar-nos bem longe... O autor tem perfeitamente razão quando fala de uma "conspiração do silêncio", referente a certas questões. Mas, o que seria se lhe acontecesse tocar diretamente em coisas muitíssimo mais "misteriosas" ainda, e sobre as quais, seja dito sem insistir, as publicações antijudeu- maçônicas são as primeiras a abster-se de fazer a mínima alusão?" (Estudos Tradicionais, 1936, pág. 390). Como se tais elementos obedecessem a uma palavra de ordem e houvesse um "chefe" que dirigisse esse estranho movimento, tornando a situação cada vez mais tensa, René Guénon retira-se da Europa. "Podemos afirmar que se no atual momento existem representantes autênticos das tradições ocidentais, não se deve procura los entre os adversários de R. Guénon, pois é claro que um tamanho desacordo implicaria logicamente na negação da Revelação primitiva, e a identidade fundamental das tradições ortodoxas.

Diante da campanha de calúnias manobradas atualmente contra sua pessoa (e não já somente contra a doutrina que expõe), por adversários da mais acabada deslealdade, queremos trazer publicamente a M. René Guénon o nosso modesto testemunho de gratidão e de respeito" (palavras de Marcel Clavelle).

* * *

Retomando a enumeração das obras de Guénon, segue-se: 1925 — O Esoterismo de Dante — Suspeitava-se desde há muito, e o próprio Dante o deixa claramente entender (10), que o texto da Comédia contém diversos sentidos ocultos, e o sentido exterior e aparente não é senão um véu que deve ser afastado por aqueles que são capazes de penetrar mais além. A "catolicidade" da Tradição permite a Guénon invocar as doutrinas hindus e islâmicas (aliás bem parece que Dante teve conhecimento destas últimas) para restituir o sentido profundo da Comédia. Esclarece também numerosos pontos acerca das ciências tradicionais: o simbolismo dos números, a doutrina dos ciclos cósmicos, a "Pedra Filosofal" dos hermetistas, etc.

* * *

Antes de terminar o ano de 1925, Guénon pronuncia na Sorbonne, no dia 17 de dezembro, uma conferência que êle intitula "A Metafísica Oriental". "Tomei como assunto desta dissertação, a metafísica oriental. Talvez tivesse sido melhor dizer simplesmente — a metafísica — sem epíteto, porque na verdade a metafísica pura, estando por essência fora e além de todas as formas e de todas as contingências, não é nem oriental nem ocidental: é universal. São somente as formas exteriores por meio das quais ela se revestiu para as necessidades duma exposição, para exprimir o que é exprimível. São estas formas que podem ser orientais ou ocidentais; todavia, debaixo de sua diversidade é um fundo idêntico que se encontra por toda a parte e sempre, sempre pelo menos, onde haja metafísica verdadeira, e isso pela simples razão de que a Verdade é uma."

São formulados os pontos seguintes: "Metafísica e Sobrenatural", "A incomunicável certeza do conhecimento metafísico", "Ela é obtida pela intuição intelectual supra-racional", "A distinção da "Personalidade" e da "individualidade", "A identificação pelo Conhecimento", "A realização espiritual; seus adjuvantes: os ritos".
A restauração do "estado primordial" e o "sentido da eternidade"; Os estados supra-individuais. A "União" (Yoga) e a "Liberação final". Conclusão: O Ocidente não tem outro meio de salvação, a não ser o "retorno às origens".

1927 — A Crise do Mundo Moderno, cuja tradução em português entregamos ao público.

1927 — O Rei do Mundo. Uma das idéias dominantes na obra de René Guénon é a comunidade de origem das tradições iniciáticas e religiosas da humanidade; é por conseguinte a existência duma Tradição primitiva, fonte única, que no decorrer dos tempos alimentou a vida espiritual dos homens e forneceu as bases de todas as civilizações ortodoxas.

Esta Tradição Primordial, que é como a manifestação da "Vontade do Céu", no nosso mundo, deve ser, necessariamente, conservada na sua integridade por um "centro" espiritual que permanece inafetado pelas vicissitudes cíclicas. É a este "Centro Supremo", cuja localização geográfica foi primitivamente hiperbórea e mesmo "polar", mas que atualmente está escondido (o Agarttha que já foi mencionado por St. Yves d'Alveydre e Ossendowski, segundo informações de procedência hindu e mongólica), é a este Centro Supremo e a seu chefe, o "Rei do Mundo" (o Manu da tradição hindu), que é consagrado esse estudo.

Expõe também, Guénon, as teorias da Kabbala sobre as influências espirituais e os intermediários metafísicos, elucidando dois trechos particularmente enigmáticos da Bíblia: a vestidura de Abrahão por Melchissedec, e a homenagem prestada ao Cristo nascente, pelos Reis-Magos. Dá a profunda significação da lenda do Santo Graal, e a do Preste João, ainda menos conhecida."

1929 — São Bernardo. Esta pequena brochura traz o "Nihil obstat", e é uma reimpressão do estudo que tinha sido publicado há alguns anos atrás, na coleção intitulada "A Vida e as obras de alguns grandes Santos". Réne Guénon faz reviver a grande figura deste monge nascido de uma família .pertencente à alta nobreza da Borgonha, e que foi incumbido de redigir a regra da Ordem do Templo, cujos membros eram, eles também, monges e cavaleiros. É esta, sem dúvida, a razão pela qual Dante devia escolher São Bernardo para seu guia nos últimos círculos do Paraíso. Relata, Guénon, os acontecimentos mais importantes da existência deste grande santo: sua intervenção no cisma que sobreveio em 1130; suas lutas contra Abelardo, este precursor da filosofia moderna; seu papel nas Cruzadas. Há observações curiosas a fazer sobre o que poderíamos chamar a história subterrânea da Idade Média. "A cristandade era idêntica à civilização ocidental, fundada então sobre bases essencialmente tradicionais, como é toda a civilização normal, e que ia atingir seu apogeu no século XIII. À .perda deste caráter tradicional devia necessariamente seguir-se a ruptura da própria unidade da cristandade. Esta ruptura foi ultimada no domínio religioso pela Reforma e no domínio político pela instauração das nacionalidades, precedida pela destruição do regime feudal. Pode-se dizer sob este último ponto de vista, que foi Filipe o Belo que desferiu o primeiro golpe no edifício grandioso da cristandade medieval, o mesmo que por uma coincidência que nada tem de fortuito, destruiu a Ordem do Templo (11) atacando por ali diretamente a obra de São Bernardo". Enfim Guénon termina o seu estudo dizendo algumas palavras da doutrina de "amor", professada por aquêle, "no qual alguns querem ver, não sem razão, o protótipo de Galaaz — o cavaleiro ideal e sem mácula, o herói vitorioso da demanda do Santo Graal".

1929 — Autoridade Espiritual e Poder Temporal — No preâmbulo deste volume, Guénon logo nos faz ver qual a sua finalidade:
"O que sobretudo nos impressionou nas discussões, foi que de lado algum houve preocupação de situar bem as questões em seu verdadeiro terreno, de distinguir dum modo preciso o essencial do acidental, os princípios necessários e as circunstâncias contingentes. Na verdade, isso. não nos surpreendeu, pois somente vimos um outro exemplo a mais, depois de muitos, da confusão que hoje reina em todos os domínios — fato que consideramos como eminentemente característico do mundo moderno, por razões que já explicamos em obras precedentes. (12) No entanto, não podemos deixar de deplorar que esta confusão tenha afetado até os representantes duma autêntica autoridade espiritual, os quais parecem ter perdido de vista o que deveria fazer a sua verdadeira força. Referimo-nos à transcedência da doutrina em nome da qual aqueles representantes estão qualificados para falar. (13) Sendo absolutamente independentes de tudo quanto não seja a verdade pura e desinteressada, e estando decididos a assim permanecer, propomo-nos simplesmente dizer as coisas como elas são, sem ter a preocupação de agradar ou desagradar a quem quer que seja, pois nada temos a esperar, nem de uns, nem de outros, nem mesmo contamos que os que possam tirar proveito das idéias que formulamos, disso venham a mostrar-se gratos, o que aliás pouco nos importaria".

Guénon faz o paralelo entre a sociedade baseada nos princípios tradicionais e as sociedades modernas; e que contraste! Enquanto a primeira se acha subordinada à autoridade espiritual, acatando o poder temporal suas diretivas, hoje, no Ocidente, o poder temporal pretende exercer a primazia, quando não nega o espiritual. Esboça então um quadro notável e que não deixa de ser impressionante, onde evidencia a degenerêscencia social:"Desde o momento em que o poder temporal pretendeu elevar-se acima da autoridade espiritual, abriu-se a porta a todas as revoluções. Quando em 1.302, Filipe o Belo convocou pela 1.ª vez os "Estados Gerais", a burguesia imiscuiu-se nos negócios do Estado, e a realeza abriu inconscientemente o caminho à Revolução; esta, destruindo-a, não fêz outra coisa senão adiantar-se mais ainda no sentido da desordem, por onde a realeza tinha começado a trilhar.

De fato, no mundo ocidental a burguesia conseguiu assenhorear-se do poder, sendo a realeza quem primeiro a fêz participar dele, indevidamente. Pouco importa, aliás, que ela tenha sido abolida como em França, ou que tenha subsistido nominalmente, como na Inglaterra ou algures: o resultado é o mesmo em qualquer dos casos. Mas a instabilidade aumenta a medida que se afunda na materialidade, e as mudanças se produzem cada vez mais rapidamente. Assim, o reino da burguesia só poderá ter uma curta duração, em comparação com o regime ao qual sucedeu; e como a usurparão chama a usurpação, depois dos burgueses, são agora os proletários que por sua vez aspiram à dominação — eis aí muito exatamente, a significação do bolchevismo."

1931 — O Simbolismo da Cruz — Há símbolos tradicionais encontrados freqüentemente em todas as épocas e em todos Os países, e que representam um caráter, por assim dizer, mais fundamental do que os outros, e que bem parecem proceder diretamente da própria Tradição Primordial.

A Cruz é um destes símbolos fundamentais rua tomou formas diversas, e cada uma delas aliás tinha mais particularmente a sua razão de ser, porque neste terreno nada há de arbitrário.
Como todo o símbolo, ela representa significações múltiplas, porém, todas elas derivadas de um mesmo sentido superior, metafísico ou principial. É sobretudo este sentido metafísico que está.exposto no presente estudo, do modo mais completo possível. A cruz, sob este ponto de vista, é a figura do "Homem Universal": representa a realização total do ser, em todas as possibilidades que êle encerra em si próprio, e que, hierarquizadas conforme a sua natureza, constituem a indefinida multiplicidade de seus estados, em correspondência com todos os "mundos", ou graus de Existência universal.

Os desenvolvimentos geométricos a que se presta esta figura, na sua dupla aplicação "macrocósmica" e "microcósmica", e os símbolos secundários que nas diferentes doutrinas tradicionais ,se relacionam com seus diversos aspectos, são em seu conjunto encarados em alguns explêndidos capítulos. Esta obra, como todas as demais, do mesmo autor, contribuirá para mostrar a unidade essencial que se dissimula sob a multiplicidade das formas exteriores que estas doutrinas revestem a fim de se adaptarem às circuntâncias de tempo e lugar, tão numerosas quantas as expressões da Verdade Una.

1932 — Os Estados Múltiplos do Ser. — Este livro é como a continuação do "Simbolisimo da Cruz", no qual Guénon expunha, com dados fornecidos pelas diferentes doutrinas tradicionais, uma representação geométrica do ser, inteiramente baseada sobre a teoria metafísica dos estados múltiplos. Deixando agora de lado esta representação simbólica, ou pelo menos, voltando a ela só incidentemente quando se faz mister, Guénon consagra inteiramente esse volume a um mais amplo desenvolvimento desta mesma teoria dos estados múltiplos a qual deve ser considerada como absolutamente fundamental, sob o ponto de vista da metafísica pura. Êle a encara, em primeiro lugar, no seu próprio princípio; depois em algumas de suas aplicações, no que concerne mais particularmente ao ser considerado sob seu aspecto humano; todavia, mesmo nestas últimas considerações, êle nunca perde de vista o essencial, isto é, a ordem dos princípios universais dos quais tudo depende, e com os quais tudo deve estar sempre relacionado quando se trata não simplesmente de saber "profano", mas sobretudo de "ciência sagrada".

Encontraremos ali ainda novas vistas do mais alto alcance sobre a verdadeira metafísica, que deve abrir, para quem é capaz de a compreender e penetrar, possibilidade de concepção ilimitada, como a própria Verdade total.
1945 — O Reinado da quantidade e os Sinais dos Tempos — É a Nouvelle Revue Française que edita este volume, o primeiro duma coleção intitulada "Tradição", e cujo lema bem poderia ter saído da própria pena de Guénon"
"Sob este nome geral propõe-se publicar uma série de volumes que conterão, tanto exposições de diferentes aspectos de doutrinas metafísicas e cosmológicas, como estudos que se inspirarão a vista de aplicações em domínios particulares, ou ainda, traduções de textos que constituem o testemunho da intelectualidade sagrada no Ocidente e no Oriente."

Este livro foi esgotado rapidamente e a reimpressão já está no prelo. Lembraremos sem insistir que uma sensível mudança se operou desde 1929, quando a campanha de calúnia grassava impiedosamente, envolvendo com seus tentáculos, a obra do Mestre e até sua própria pessoa. A este propósito, e encarando tudo quanto este volume encerra, citaremos as palavras proféticas que se acham nos Evangelhos, notando que se podem aplicar não somente à função desempenhada por um representante da doutrina tradicional, mas também entender-se com sinais dos tempos: "Porque nada há de encoberto que se não venha a descobrir, nem oculto, que se não venha a saber" (Mat, X-26).

"A obra é um quadro e uma explicação do mundo contemporâneo: se o quadro é explicativo, é porque está completo, pois inclui a razão que produziu o mundo moderno, e o fim ao qual êle está destinado — vai portanto do Alfa ao Omega. Todas as dificuldades que se encontram para explicar uma coisa provêm de que esta é o ato duma potência que a ultrapassa. Assim, sua causa eficiente ou filial não pertence à sua ordem, mas é-lhe superior, e o exame, ou a análise da própria coisa, não nô-la podem revelar. Quer se trate do indivíduo, da humanidade ou dum grande período histórico, há no início e no fim de sua manifestação temporal, algo de transcedente em relação a esta manifestação. Eis porque os estudos puramente históricos não nos oferecem o sentido da História, e porque, dum modo geral, o "profano" não sabe nem de onde vem, nem para onde vai. Quanto mais se alastra um modo puramente "terrestre" de encarar a humanidade, tanto mais êle se alimenta de ilusões sobre seu futuro. É esse o ponto essencial que distingue o livro de Guénon de todos os ensaios de interpretação da civilização moderna até então publicados, ensaios que podem mostrar seus defeitos, mas que não Vêem suficientemente os limites dessa civilização.

E pensando assim, que no fundo essa civilização é normal, ela então só necessitaria de reformas. Estas seriam prolongadas no futuro indefinidamente, e far-se-iam também, sem dúvida, quanto ao passado, se possível fosse; o que precedeu é rebaixado a uma espécie de estágio preparatório, verdadeiramente pré-humano e propriamente incompreensível. Sobre a história dos últimos séculos, Guénon, ao contrário, projeta uma luz que é superior à história: são as idéias tradicionais olvidadas pelos modernos sobre a teoria dos ciclos cósmicos e humanos, a descida da manifestação até à substância e a natureza da substância e da quantidade.

O plano do livro desenrola-se procedendo deste caráter fundamental. O primeiro quarto é "doutrinai" e trata mormente da substância, da quantidade e da matéria. É mesmo a base da obra, e nestes assuntos difíceis manifesta-se com o máximo de clareza a mestria do autor. Segue-se uma série de estudos extremamente variados, mostrando as conseqüências duma orientação cada vez mais marcada da humanidade para o quantitativo. Ao mesmo tempo, somos levados pouco a pouco j para uma outra idéia: a da "dissolução" duma civilização, à qual falta qualquer base sólida. E agora movimentam-se as forças inferiores, sendo que o encargo duma tradição viva é precisamente contê-las; elas porém acham-se não somente liberadas, mas ainda reforçadas, voluntariamente ou não, pelo comportamento de certos meios; e assim reaparecem novamente as considerações expostas especialmente no Erro Espírita.

O final da obra é consagrado aos últimos resultados desta ação dissolvente e à restauração que se dará — uma vez postas em ordem todas as coisas — a qual marcará o início duma humanidade. Eis, em poucas linhas, o plano do livro e seu! sentido geral. (André Préau: "Estudas Tradicionais", 1946,

1946 — Vistas sobre a Iniciação — O conteúdo deste livro não é inteiramente inédito, pois a grande maioria de seus capítulos já tinha sido publicado na revista parisiense "Estudos Tradicionais". Mas, como diz o autor, "estes artigos, escritos, conforme as circunstâncias, e freqüentemente para responder a perguntas que nos foram feitas, não se ligavam como capítulos sucessivos de um livro; foi então preciso retocá-los, completá-los e dispo-los convenientemente. Esse é o trabalho que ora apresentamos". Vejamos como o Mestre de um modo lapidar e conciso se exprime sobre a iniciação: "A iniciação tem essencialmente por fim ultrapassar as possibilidades do estado individual humano .e de tornar efetivamente possível a passagem aos estados superiores, até conduzir finalmente o ser além de todo o estado condicionado, seja êle qual fôr." "Muitos imaginam que é possível à própria pessoa "iniciar-se", o que de certo modo é uma contradição nos termos. Esquecendo, se é que já souberam, a palavra "initium" significa "entrada" ou "começo", confundem o próprio fato entendido em seu sentido estritamente etimológico, com o trabalho a fazer-se ulteriorniente para que esta iniciação, de virtual que era a princípio, torne-se mais ou menos plenamente efetiva".

Diz ainda mais adiante: "Não estamos na época primordial, quando todos os homens possuíam normal e expontâneamente um estado que hoje está ligado a um alto grau da iniciação. Aliás, na verdade, a própria palavra iniciação em tal época não podia ter nenhum sentido. Nós estamos na Idade Sombria, isto é, em um tempo onde o conhecimento espiritual se tornou cada vez mais encoberto e somente poucos podem ainda atingi-lo, desde que se coloquem nas condições requeridas para obtê-lo. Um dessas condições é precisamente aquela a que já nos referimos; a outra é um esforço que os homens das primeiras idades não necessitavam, pois o desenvolvimento espiritual efetuava-se neles tão naturalmente quanto o desenvolvimento corporal".

É esse um dos pontos capitais evidenciados pela ciência tradicional, e que a moderna ciência rebaixa até a degenerescência, pintando com os tons mais pejorativos e tétricos, o "homem primitivo". "O homem porém, não começou sua existência no planeta por um viver brutal e selvagem. Esse estado é de pura decadência. As origens do homem e da sociedade são mais nobres, são diretamente divinas."Estas palavras são de Monsenhor Manuel Vicente da Silva, no prefácio para a "Concordância dos Santos Evangelhos." (14) Quantos católicos lembrar-se-ão delas e quantos as terão assimilado? — .Não é só; diz êle ainda: "Houve uma época da vida do gênero humano que se chamou Idade de Ouro. Nessa época a revelação primitiva era recente; dominava os espíritos e dirigia as vontades; a paz reinava entre os homens".

Vamos agora transcrever, sobre o assunto, um trecho primoroso de Elie Lebasquais: "Problema com efeito insolúvel para a ciência arqueológica, mas que pode receber das doutrinas tradicionais uma explicação clara. Todo o segredo reside na idéia que se faz do "primitivo". Para um espírito contemporâneo é difícil, é até quase impossível, separar no homem o que êle ê e o que êle tem — seu ser e seu haver. Compreender que o haver, isto é, o material inteiro da civilização, não pode prosperar senão a expensas do ser; portanto, que a "civilização" moderna é uma excrescência monstruosa que deixou o homem vazio de sua íntima substância, materializando-a sobre êle como um fardo, em seu redor como uma prisão, dentro dele como um virus, e cuja ruína inevitável e necessária o deixará libertado, sem dúvida, mas desmunido e moribundo.

A autonomia, a autarquia do primitivo é para nós inconcebível. A independência absoluta de um homem que satisfaz, êle mesmo, todas as suas necessidades, que retém em si todas as suas forças, pois permanece conscientemente ligado à sua origem fecunda e nutriente, o inatacável e invisível império duma personalidade — não é compreendido pelo "civilizado", que se coloca no lugar deste ser e se imagina tragado pela animalidade, só, fraco, pobre e nu, tal como poderá encontrar-se talvez amanhã, mas certamente como nunca jamais viveu no passado.

Para compreender a vida destes homens, vestidos com peles de animais e alimentando-se sem fadiga dos frutos da terra, é preciso admitir entre eles, por compensação e por equilíbrio, uma espiritualidade tanto mais alta, quanto não era estorvada por qualquer espécie de artifício. Este estado corresponde ao dos patriarcas que recitavam a Bíblia, cujo conteúdo dogmático e perfeição formal são inconciliáveis com a teoria moderna do primitivo" ("As Origens da Arte").

Enfim, voltando à obra de Guénon, contém ela quarenta e oito substanciosos capítulos, nos quais êle discorre sobre a iniciação e assuntos conexos, apresentando suas diversas faces, removendo, também, dúvidas, e afastando os falsos conceitos que os modernos podem ter aceito sem discriminação.

No fim do Rei do Mundo, há também um trecho que se aplica admiravelmente às Vistas sobre a Iniciação "certamente dissemos muito mais do que até hoje foi dito sobre essa questão e alguns talvez sejam tentados a reprovar-nos. Não pensamos, porém, que seja demasiado e estamos mesmo persuadidos que não se acha aí nada que não deva ser dito, se bem que estejamos menos dispostos do que qualquer outro, a contestar que é mister encarar uma questão de oportunidade, quando se trata de expor publicamente certas coisas que tenham um caráter um tanto insólito. Sobre esta questão de oportunidade, podemo-nos limitar a uma breve observação: é que nas circunstâncias, no meio das quais vivemos presentemente, os acontecimentos se desenrolam com uma tal rapidez, que muitas coisas, cujas razões não aparecem ainda imediatamente, poderiam encontrar, muito mais cedo do que seríamos tentados a pensar, aplicações bastante imprevistas, senão absolutamente imprevisíveis".

1946 — Os princípios do cálculo infinitesimal, segundo volume da coleção "Tradição", editada pela N.R.F.

"Contrariamente à tendência moderna, que quer que uma ciência particular seja independente, fato que a priva de qualquer solidez e todo o alcance intelectual verdadeiro, Guénon preocupou-se nesse volume, antes de tudo, em estabelecer a ligação entre o cálculo infinitesimal e os princípios universais, resultando imediatamente daí, a solução de inúmeras dificuldades que foram levantadas quando expostas por Leibnitz, sobre a significação real e o rigor do método infinitesimal. No mesmo, êle explica como a correspondência estabelecida entre as realidades matemáticas e as de uma ordem superior, confere às primeiras um sentido mais profundo graças ao qual podem servir de "suporte" para chegar analògicamente ao conhecimento das verdades metafísicas."

O primeiro capitulo, intitulado "Infinito e indefinido", assim começa: "Procedendo de um certo modo em sentido inverso ao da ciência profana, devemos, segundo o ponto de vista constante de toda a ciência tradicional, assentar desde já e antes de tudo, o princípio que nos permita resolver logo, duma maneira quase que imediata, as dificuldades a que deu lugar o método infinitesimal, sem nos deixarmos perder em discussões que de outra forma correriam o risco de ser intermináveis, como o são, com efeito, para os filósofos e matemáticos modernos, pois faltando-lhes esse princípio nunca chegaram a apresentar para essas dificuldades uma solução satisfatória e definitiva".
1946 — A Grande Tríade — Tal é o título da última obra publicada por Guénon. Passamos simplesmente a enumerar alguns de seus capítulos: Ternário e Trindade — Yin e Yang —Solve e Coagula — Questões de Orientação — Números celestes e números terrestres — O Filho do Céu e da Terra Spirítus, Anima, Corpus (15) — Enxofre, Mercúrio e Sal —O Mediador entre o esquadro e o compasso — O Wang, ou o Rei Pontífice — O Homem verdadeiro e o homem transcedente — O triplo tempo — A roda cósmica — O Triratna — A Cidadela dos Salgueiros — A Via do Meio.

* * *

"Nenhum escritor ocidental contemporâneo é mais significativo que René Guénon. A sua tarefa consistiu em dar a conhecer a tradição metafísica universal, a qual foi o fundamento essencial de todas as civilizações do passado e representa "a base indispensável para toda a civilização que mereça realmente este nome... O Ocidente e o Oriente poderão entender-se num terreno comum, e é só aí que poderão estar de pleno acordo, a saber: no terreno da tradição metafísica puramente intelectual, baseado no sanatana dharma (Philosophia Perenis), corno nós chamamos. Não se deva entretanto pensar 'que esta "sabedoria não criada, a de hoje, a qual sempre foi, 1 e sempre será a mesma" (Santo Agostinho), pertence exclusivamente à Índia ou à Europa, ou ainda a qualquer outra parte da humanidade (Ananda K. Coomaraswamy).

Resta-nos ainda dizer porque o título de metafísico é o único que convém ao Mestre, a quem são dedicadas estas páginas, com reconhecimento e veneração. Para tanto citaremos isimplesmente sua própria definição de metafísica que é voluntàriamente simples e concisa como o espelho de seu pensamento, espelho que devolve os raios de sol projetando-os generosamente, fertilizando aqui as sementes já germinadas, e lá fazendo-as germinar: "Metafísica significa literalmente "além da física", tomando "física" na acepção que este termo sempre teve para os antigos: "ciência da natureza", em toda a sua generalidade. A física é o estudo de tudo que pertence ao domínio da natureza; portanto, aquilo a que se refere a metafísica é o que está além da natureza."

GLÓRIA A S. S. TRINDADE!

Notas:

(1) Pode-se verificar uma incontestável analogia com as quatro classes que existiram no regime feudal.

(2) "Nas tradições regulares, todo o rito e toda a fórmula corresponde a uma essência metafísica, que faz participar o homem que cumpre esses ritos ou pronuncia essas fórmulas ao conhecimento puro. Mas esta participação será tanto mais direta, quanto mais consciente fôr o alcance dos ritos e das fórmulas; de sorte que uma prática como a oração, por exemplo, contém uma dupla possibilidade para aqueles que crêem: é uma afirmação indireta duma idéia velada e para aqueles que sabem, é a penetração intelectual dum simbolismo". Frithjof Schuon, Estudos Tradicionais, Dez. 1933.

(3) Publicação exclusivamente consagrada às doutrinas metafísicas e esotéricas do Oriente e do Ocidente, editada em Paris, 11, Quai Saint Michel.

(4) Tradução francesa do Rev.do Pe. Humblet, S. J., Livraria A. Dewit, Bruxelas, 1921.

(5) Certamente os cristãos não se distinguiram sempre pela estreiteza de espírito, que os leva hoje a desconhecer as conseqüências implicadas no dogma relativo à Tradição primordial. Renè Allar, Estudos Tradicionais, outubro, 1935

(6) Lib. Rectractionum 1-13, tradução do Dr. Alexandre Correia.

(7) No decorrer do século XVIII, a Maçonaria escocesa foi um ensaio para voltar à tradição católica, representada pela dinastia dos Stuarts, em oposição à Maçonaria inglesa, que ficou protestante e dedicada à casa de Orange

(8) Deu-se ultimamente um outro extravio nos países latinos, num sentido anti-religioso. Mas é sobre a protestantização da Maçonaria anglo-saxônica que convém insistir em primeiro lugar.

(9) Título de um livro do Marquês Saint Yves d'Alveydre

(10) O voi che avete gl'intelleti sani Mirate la dottrina che s'asconde Sotto il velame degli versi strani Inferno, IX, 61/3. Êle vai mais longe ainda quando declara que todas as escrituras, e não somente as escrituras sagradas, podem ser compreendidas e devem explicar-se principalmente segundo quatro sentidos: "si possono intendere e debbonsi sponere massimamente per quattro sensi". Convito, t. II, cap. 1.°

(11) "Filipe o Belo, destruiu a Ordem do Templo e também alterou as moedas. Estes dois fatos estão talvez ligados mais estreitamente do que se poderia supor à primeira vista. Em todo caso, se os contemporâneos deste rei o acusaram do crime de alterar as moedas, é preciso concluir que mudando por sua própria iniciativa o título das mesmas, ele ultrapassava os direitos reconhecidos ao poder real. Temos aí uma indicação que é preciso reter, porque esta questão da moeda tinha na Antigüidade e na Idade Média aspectos completamente ignorados dos "Autoridade Espiritual e Poder Temporal", pág. 111, sugerimos a possibilidade duma estreita relação entre a destruição da Ordem do Templo e a alteração das moedas, o que se compreenderia facilmente admitindo, pelo menos como muito verossímil, que a Ordem tinha então, entre outras funções, a de exercer o controle espiritual neste domínio, Não insistiremos mais, mas lembremo-nos que foi precisamente naquele momento, assim pensamos, que se originou o desvio moderno propriamente dito.

(12) “Oriente e Ocidente" e "A Crise do Mundo Moderno".

(13) Somente quase 17 anos depois é que S. S. Pio XII, por sua vez, vê-se obrigado a denunciar, no encerramento do Congresso dos Catequistas realizado em Boston, no mês de outubro de 1946, a insuficiência atual de "certos elementos": "O Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja, acha-se atualmente ameaçado, não somente do exterior pelas potências hostis, mas também internamente pela fraqueza e decadência de certos elementos. Esta fraqueza crescente, que se manifesta em numerosos setores da Igreja, tem sua fonte principal na ignorância ou melhor, no conhecimento superficial das verdades religiosas nadas pelo Redentor."

(14) "Concordância dos Santos Evangelhos", por D. Duarte Leopoldo, 1.° Arcebispo de S. Paulo

(15) Ponto importantíssimo e completamente esquecido pelos modernos ocidentais, que só levam em consideração a alma e corpo, sobretudo depois de Descartes. Tal porém não corresponde exatamente
à verdade: É o " esse" e o " proprium" de S. Bernardo, o " Ser" e a "propriedade", este último termo designando as qualidades psíco-físicas pelas quais um indivíduo se distingue de outro.
" Porque a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que toda a espada de dois gumes: penetra até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e medulas... (Aos Hebreus-IV-12.)
" E o mesmo Deus da paz vos santifique em tudo, para que todo o vosso espírito, e a alma, e o corpo se conservem sem repreensão para a vinda de N. S. Jesus Cristo. (I Aos Tessalonicenses-V-23.)