Guenon estuda

Princípio da Instituição de Castas

de René Guénon

in Introduction Générale a l'Étude des Doctrines Hindoues

Em apoio ao que expusemos no capitulo anterior, acrescentaremos algumas precisões referentes à instituição das castas, de importância primordial na lei de Manu, e tão profundamente incompreendida pela generalidade dos Europeus. Em primeiro lugar, colocaremos esta definição : a casta, que os Hindús designam indiferentemente por uma ou outra das duas palavras jâti e varna , é uma função social determinada pela natureza própria de cada ser humano. A palavra varna no seu sentido primitivo, significa "cor" , e alguns quiseram encontrar nela uma prova ou pelo menos um indício do fato que supõe que a distinção das castas teria na origem sido fundada sobre diferenças de raça ; mas não é nada disso, porque a mesma palavra tem, por extensão, o sentido de "qualidade" em geral, de onde seu uso analógico para designar a natureza particular de um ser, o que se pode chamar sua "essência individual", e é exatamente isto o que determina a casta, sem que a consideração de raça só tenha que intervir como um dos elementos que poderiam influir na constituição da natureza individual. Quanto à palavra jâti, seu sentido próprio é o de "nascimento", e pretende-se concluir disso que a casta é essencialmente hereditária, o que constitui ainda um erro; se ela é com mais freqüência hereditária de fato, não o é estritamente em princípio, podendo ser o papel da hereditariedade na formação da natureza individual preponderante na maioria dos casos, mas não sendo, no entanto, de nenhum modo exclusivo; isto demanda, aliás, algumas explicações complementares.

No seu conjunto, o ser individual é encarado como um composto de dois elementos, que são chamados respectivamente nâma, o nome, e rûpa , a forma ; esses dois elementos são em suma a "essência" e a "substância" da individualidade, ou o que a escola aristotélica denomina "forma" e "matéria", tendo esses termos, aliás, um sentido técnico muito diferente de sua acepção corrente ; é preciso mesmo notar que o termo forma", em vez de designar o elemento que denominamos assim para traduzir o sânscrito rûpa designa então ao contrário o outro elemento, aquele que é propriamente a "essência individual".

Devemos acrescentar que a distinção que acabamos de indicar, se bem que análoga à da alma e do corpo entre os Ocidentais, está longe de ser rigorosamente um equivalente desta : a forma não é exclusivamente a forma corporal, ainda que não seja possível insistir nisso aqui ; quanto ao nome, o que ele representa é o conjunto de todas as qualidades ou atribuições características do ser considerado. Agora é o momento de fazer uma distinção no interior da "essência individual": nâmika , o que se refere ao nome, num sentido mais restrito, ou o que deve exprimir o nome particular de cada indivíduo, é o conjunto das qualidades que pertencem propriamente a este, sem que as tenha de outra fonte do que de si mesmo; gotrika , o que pertence à raça ou à família, é o conjunto das qualidades que o ser tem de sua hereditariedade. Poder-se-ia encontrar uma representação analógica desta segunda distinção na atribuição a um indivíduo de um "prenome" , que lhe é específico, e de um "nome de família" ; aliás, haveria muito o que dizer sobre a significação original dos nomes e sobre o que normalmente eles deveriam ser destinados a exprimir, mas, como essas considerações não se enquadram no nosso plano atual, nos limitaremos a indicar que a determinação do nome verdadeiro se confunde em princípio com o da natureza individual mesma.

O "nascimento", no sentido do sânscrito jâti é propriamente a resultante dos dois elementos nâmika e gotrika ; é preciso portanto distinguir aí a parte da hereditariedade, e ela pode ser considerável, mas também a parte daquilo através do qual o indivíduo se distingue de seus pais e dos outros membros de sua família. Com efeito, é evidente que não há dois seres que apresentem exatamente o mesmo conjunto de qualidades, sejam físicas, sejam psíquicas : junto do que lhes é comum, há também o que os diferencia; os mesmos que gostariam de explicar tudo no indivíduo pela influência da hereditariedade ficariam sem dúvida muito embaraçados em aplicar sua teoria a um caso particular qualquer ; essa influência é inegável, mas é preciso dar-se conta de outros elementos, como a teoria que acabamos de expor faz de modo preciso.

A natureza própria de cada indivíduo comporta necessariamente, desde a origem, todo o conjunto das tendências e disposições que se desenvolverão e se manifestarão durante sua existência, e que determinarão em especial, já que é exatamente disso que se trata aqui, sua aptidão para esta ou aquela função social. O conhecimento da natureza individual deve portanto permitir assinalar a cada ser humano a função que lhe convém em razão dessa natureza mesma, ou, em outros termos, o lugar que ele deve normalmente ocupar na organização social.

Pode-se conceber facilmente que este é o fundamento de uma organização verdadeiramente hierárquica, isto é, estritamente conforme à natureza dos seres, segundo a interpretação que demos da noção de dharma os erros de aplicação, sempre possíveis sem dúvida, e sobretudo nos períodos de obscuridade da tradição, não diminuem em nada, aliás, o valor do princípio, e pode-se dizer que a negação deste implica, teoricamente pelo menos, senão sempre na prática, a destruição de qualquer. hierarquia legítima.

Ao mesmo tempo, observa-se como é absurda a atitude dos Europeus que se indignam que um homem não possa passar de sua casta para uma casta superior: isto implicaria, na realidade, nem mais nem menos que uma mudança de natureza individual, isto é, que tal homem deveria cessar de ser ele mesmo para se tornar um outro homem, o que é uma impossibilidade manifesta; o que um ser é potencialmente desde seu nascimento, o será durante toda sua existência. A questão de saber por que um ser é o que ele é e não um outro ser é aliás uma das questões que não têm como se colocar; a verdade é que cada um, segundo sua própria natureza, é um elemento necessário da harmonia total e universal.

No entanto, é bem certo que considerações desse gênero são completamente estranhas àqueles que. vivem nas sociedades cuja constituição carece de princípio e não repousa sobre qualquer hierarquia, como as sociedades ocidentais modernas, onde qualquer homem pode ocupar quase que indiferentemente as funções mais diversas, inclusive aquelas para as quais está menos adaptado, e onde, além do mais, a riqueza material detém quase que exclusivamente toda a superioridade efetiva.

Do que dissemos sobre a significação de dharma , resulta que a hierarquia social deve reproduzir analogicamente, segundo suas próprias condições, a constituição do "Homem Universal" ; entendemos por isso que há uma correspondência entre a ordem cósmica e a ordem humana, e que essa correspondência, que naturalmente se encontra na organização do indivíduo, encarado, aliás, na sua integralidade ou mesmo simplesmente na sua parte corpórea, deve ser igualmente realizada, sob o modo que lhe convém em especial, na organização da sociedade.

A concepção do "corpo social", com órgãos e funções comparáveis aos de um ser vivo, é aliás familiar aos sociólogos modernos; mas estes foram muito mais longe nesse sentido, esquecendo-se que correspondência e analogia não querem dizer assimilação e identidade, e que a comparação legitima entre ambos os casos deixa subsistir uma diversidade necessária nas modalidades de aplicação respectivas ; além disso, ignorando as razões profundas da analogia, eles nunca puderam tirar nenhuma conclusão válida quanto ao estabelecimento de uma verdadeira hierarquia. Feitas estas reservas, é evidente que as expressões que poderiam indicar uma assimilação não deverão ser tomadas a não ser num sentido puramente simbólico, como o são também as designações tomadas de empréstimo das diversas partes do indivíduo humano quando são aplicadas analogicamente ao "Homem Universal".

Estas notas bastam para permitir compreender sem dificuldade a descrição simbólica da origem das castas, tal como se encontra em numerosos textos, e inicialmente no Purusha-sûtra do Rig-Vêda : "De Purusha o Brâhmana foi a boca, o Kshatriya os braços, o Vaishya as ancas ; o Shûdra nasce sob seus pés" . Encontra-se aqui a enumeração das quatro castas cuja distinção é o fundamento da ordem social; aliás, elas são suscetíveis de subdivisões secundárias mais ou menos numerosas: os Brâhmanas representam essencialmente a autoridade espiritual e intelectual; os Kshatriyas , o poder administrativo, comportando tanto as atribuições judiciárias e militares, e cuja função real é tão somente o grau mais elevado; os Vaishyas , o conjunto das diversas funções econômicas no sentido mais extenso da palavra, compreendendo as funções agrícolas, industriais, comerciais e financeiras; quanto aos Shûdras , eles cumprem todos os trabalhos necessários para assegurar a subsistência puramente material da coletividade. Interessa acrescentar que os Brâhmanas não são de nenhum modo "sacerdotes" no sentido ocidental e religioso deste termo: sem dúvida, suas funções comportam a realização dos ritos de diferentes ordens, porque eles devem possuir os conhecimentos necessários para dar a esses ritos toda sua eficácia; mas elas comportam também, e antes de tudo, a conservação e a transmissão regular da doutrina tradicional; aliás, na maior parte dos povos antigos, a função de ensinamento, que figura a boca no simbolismo precedente, era igualmente encarada como a função sacerdotal por excelência, pelo fato mesmo que toda a civilização repousava sobre um princípio doutrinal.

Pela mesma razão, os desvios da doutrina aparecem geralmente como que ligados a uma subversão da hierarquia social, como se poderia observar em especial nos casos das tentativas feitas diversas vezes pelos Kshatriyas para rejeitar a supremacia dos Brâhmanas, supremacia cuja razão desaparecia nitidamente para tudo o que dissemos sobre a verdadeira natureza da civilização hindú. Por outro lado, para completar as considerações que acabamos de expor sumariamente, seria a ocasião de assinalar os vestígios que essas concepções tradicionais e primordiais puderam deixar nas antigas instituições da Europa, em particular no que se refere à investidura do "direito divino" conferida aos reis, cujo papel era considerado na origem, assim como indica a raiz mesma da palavra rex , como essencialmente regulador da ordem social; mas só podemos notar essas coisas en passant , sem insistir mais do que conviria talvez , para fazer sobressair todo seu interesse.

A participação na Tradição só é plenamente efetiva para os membros das três primeiras castas; é o que as diversas designações que lhes são exclusivamente reservadas exprimem, como a de ârya , que já mencionamos, e de dwija , ou "nascido duas vezes"; a concepção do "segundo nascimento", entendida num sentido puramente espiritual, é aliás uma das que são comuns a todas as doutrinas tradicionais, e o próprio Cristianismo a apresenta no rito do batismo, o equivalente em modo religioso. Para os Shûdras , sua participação é sobretudo indireta e como que virtual, porque em geral ela só resulta de suas relações com as castas superiores; além disso, para retomar a analogia do "corpo social", seu papel não constitui propriamente uma função vital, mas uma atividade mecânica de qualquer modo, e eis por que eles são representados nascendo, não de uma parte do corpo de Purusha , ou do "Homem Universal", mas da terra que está sob seus pés, e que é o elemento no qual a nutrição corporal se elabora.

Existe, no entanto, uma outra versão segundo a qual o Shûdra nasce dos próprios pés de Purusha ; mas a contradição só é aparente, e trata-se aqui em suma de dois pontos de vista diferentes, dos quais o primeiro ressalta sobretudo a importante diferença que existe entre as três primeiras castas e os Shûdras , enquanto que o segundo se liga ao fato que, apesar desta diferença, os Shûdras , no entanto, participam também da tradição. A propósito dessa mesma representação, devemos ainda notar que a distinção das castas aplica-se às vezes, por transposição analógica, não ao conjunto dos seres humanos, mas ao de todos os seres animados e inanimados que compreendem a natureza como um todo, da mesma maneira como se diz que esses seres nasceram todos de Purusha : é assim que o Brâhmana é encarado como o tipo dos seres imutáveis, isto é, superiores à mudança, e o Kshatriya como o dos seres móveis ou submetidos à mudança, porque suas funções se ligam respectivamente à ordem da contemplação e à da ação. Isto permite entrever bem quais são as questões de princípios implicadas aqui, e cujo alcance ultrapassa de longe os limites do domínio social, ao qual sua aplicação foi encarada de modo mais particular; tendo assim mostrado o que é essa aplicação na organização tradicional da civilização hindu, não nos deteremos mais no estudo das instituições sociais, que não constituem o objeto principal da presente exposição.