Guenon estuda

O Simbolismo da Cruz

René Guénon
Título original: "Le Symbolisme de la Croix" - Les Éditions Vêga, Paris, 1983
Tradução de Luiz Augusto Bicalho Kehl

Introdução

No início de L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, apresentamos aquela obra como constituindo o começo de uma série de estudos nos quais poderíamos, conforme o caso, seja expor diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do Oriente, seja adaptar estas mesmas doutrinas do modo que nos parecesse mais inteligível e proveitoso, embora sempre permanecendo fiel ao seu espírito. É esta série de estudos que retomamos aqui, após have-la interrompido momentaneamente em razão de outros trabalhos necessários a certas considerações oportunas, nos quais descemos antes de tudo ao domínio das aplicações contingentes; mas, mesmo nestes casos, jamais perdemos de vista os princípios metafísicos, que são o único fundamento de todo verdadeiro ensinamento tradicional.

Em L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, mostramos como um ser tal como o homem é encarado por uma doutrina tradicional e de ordem puramente metafísica, sempre nos mantendo, tão estritamente quanto possível, dentro da rigorosa exposição e da interpretação exata da própria doutrina, ou ao menos só saindo daí para assinalar, quando a ocasião permitia, as suas concordâncias com outras formas tradicionais. De fato, jamais pretendemos permanecer fechados exclusivamente em uma forma determinada, o que aliás seria bem difícil quando se tem consciência da unidade essencial que se dissimula sob a diversidade das formas mais ou menos exteriores, que são como que vestimentas diferentes de uma só e mesma verdade. Se, de modo geral, tomamos como ponto de vista central aquele das doutrinas hindus, por razões já explicadas (1), isto não nos impediria de recorrer, quando cabível, aos modos de expressão de outras tradições, desde que se tratassem de tradições verdadeiras, regulares e ortodoxas, entendendo estes termos no sentido que já definimos em outras ocasiões (2). É isto, em particular, que faremos aqui, de forma mais livre do que na obra precedente, porque trata-se, não mais da exposição de um certo ramo doutrinal, tal como ele existe numa dada civilização, mas da explicação de um símbolo que é precisamente daqueles que são comuns a quase todas as tradições, o que é para nós a indicação de que ele se liga diretamente à grande Tradição primordial.

É preciso, a este respeito, insistir um pouco sobre um ponto que é particularmente importante para dissipar muitas confusões, infelizmente freqüentes em nossa época: trata-se da diferença capital que existe entre “síntese” e “sincretismo”. O sincretismo consiste em juntar desde fora elementos mais ou menos disparatados e que, vistos deste modo, não poderiam nunca ser unificados; não passa, no fundo, de uma espécie de ecletismo, com tudo o que este comporta sempre de fragmentário e de incoerente. Trata-se de algo puramente exterior e superficial; os elementos, tomados de todos os lados e reunidos assim artificialmente não possuem senão o caráter de empréstimos, incapazes de se integrar efetivamente numa doutrina digna deste nome. A síntese, ao contrário, efetua-se essencialmente desde dentro; queremos com isto dizer que ela consiste propriamente em encarar as coisas na unidade de seu princípio, em ver como elas derivam e dependem deste princípio, e em reuni-las assim, ou antes em tomar consciência de sua união real, em virtude de uma ligação interior, inerente àquilo que há de mais profundo em sua natureza. Para aplicar isso ao que nos ocupa no momento, podemos dizer que haverá sincretismo todas as vezes em que se limite a emprestar elementos de diferentes formas tradicionais, para soldá-los de certa forma exteriormente uns aos outros, sem saber que, no fundo, não há mais do que uma doutrina única da qual estas formas não passam de expressões diversas, adaptações a condições mentais particulares, em relação com circunstâncias determinadas de tempo e lugar. Em semelhante caso, nada válido pode resultar deste conjunto; para usarmos uma comparação facilmente compreensível, termos, ao invés de um conjunto organizado, uma maçaroca informe de partes inutilizáveis, porque falta aí aquilo que poderia dar uma unidade análoga à de um ser vivo ou de um edifício harmonioso; e é próprio do sincretismo, em razão mesmo de sua exterioridade, ser incapaz de realizar uma tal unidade. Ao contrário, haverá síntese quando se parta da própria unidade, sem perde-la de vista através da multiplicidade de suas manifestações, o que implica que se tenha alcançado, para além das formas, a consciência da verdade principial que se reveste delas para se exprimir e se comunicar na medida do possível. Assim, poderemos nos servir de uma ou outra destas formas, conforme a ocasião, exatamente do modo como podemos, para traduzir um mesmo pensamento, empregar linguagens diferentes conforme as circunstâncias, a fim de se fazer compreender por diferentes interlocutores; é isso, por sinal, que certas tradições designam simbolicamente como o “dom das línguas”. As concordâncias entre todas as formas tradicionais representam, podemos dizer, “sinonimias” reais; é assim que nós as encaramos e, do mesmo modo como a explicação de certas coisas pode ser mais fácil em tal língua do que em outra,, uma destas formas poderá servir melhor que as outras à exposição de certas verdades e torná-las mais facilmente inteligíveis. É portanto perfeitamente legítimo utilizar, em cada caso, a forma que parecer mais adaptada ao que se pretende; não há nenhum inconveniente de passar de uma a outra, com a condição de se conhecer sua equivalência, o que só pode ocorrer partindo de seu princípio comum. Assim, não haverá sincretismo; este, de resto, não passa de um ponto de vista “profano”, incompatível com a noção mesma de “ciência sagrada” à qual estes estudos se referem exclusivamente.

A cruz, dissemos, é um símbolo que, sob formas diversas, se encontra quase em toda parte, e isto desde épocas muito recuadas; ele está portanto longe de pertencer exclusivamente ao Cristianismo, como querem alguns. É preciso mesmo dizer que o Cristianismo, ao menos sob seu aspecto exterior e geralmente conhecido, parece ter perdido um pouco de vista o caráter simbólico da cruz, para ver nela não mais do que o signo de um fato histórico; na realidade, estes dois pontos de vista não se excluem, e mesmo o segundo não é mais do que uma conseqüência do primeiro; mas este modo de ver as coisas é a tal ponto estranho para a maioria dos nossos contemporâneos que devemos nos deter um pouco aqui para evitar qualquer mal-entendido. De fato, existe uma tendência a se pensar que a admissão de um sentido simbólico carrega em si a rejeição do sentido literal ou histórico; esta opinião resulta da ignorância da lei de correspondência que é o fundamento mesmo de todo o simbolismo, e em virtude de que cada coisa, procedendo essencialmente de um princípio metafísico do qual ela tira toda a sua realidade, traduz ou exprime este princípio ao seu modo e segundo sua ordem de existência, de tal maneira que, de uma ordem à outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem para concorrer à harmonia universal e total que é, dentro da multiplicidade da manifestação, como que um reflexo da própria unidade principial. É por isso que as leis de um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar as realidade de uma ordem superior, onde elas tem sua razão profunda, que é a um só tempo seu princípio e seu fim; e podemos lembrar aqui, o erro das modernas interpretações “naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de realidades. Assim, os símbolos ou os mitos jamais tiveram por função, como quer uma teoria muito popular hoje em dia, a de representar os movimentos dos astros; mas a verdade é que encontramos freqüentemente figuras inspiradas nestes e destinadas a exprimir analogamente coisas bastante diferentes, porque as leis destes movimentos traduzem fisicamente princípios metafísicos dos quais eles dependem. O que dizemos a respeito dos fenômenos astronômicos, podemos dizer igualmente de todos os demais gêneros de fenômenos naturais: estes fenômenos, pelo fato mesmo de derivarem de princípios superiores e transcendentes, são na verdade símbolos deles; e é evidente que isto em nada afeta a realidade própria que estes fenômenos enquanto tais possuem dentro da ordem de existência à qual pertencem; pelo contrário, é nisto mesmo que se fundamenta esta realidade, pois, se separadas de sua dependência em relação aos princípios, todas as coisas não são mais que um puro nada. Com os fatos históricos dá-se o mesmo: também eles conformam-se necessariamente à lei de correspondência de que falamos e, por isso mesmo, traduzem ao seu modo as realidades superiores, da qual eles são de certa forma a expressão humana; e acrescentaremos aqui que é isso que os torna interessantes do nosso ponto de vista, inteiramente diferente, como se vê, daquele em que se colocam os historiadores “profanos” (3). Este caráter simbólico, embora comum a todos os fatos históricos, deve ser particularmente mais claro quando se referem àquilo que chamamos a “história sagrada”; e é o que encontramos, de modo evidente, em todas as circunstâncias da vida do Cristo. Se ficou entendido o exposto, ver-se-á de imediato que não só não há aí razão para negar estes eventos, tratando-os como “mitos” puros e simples, mas ao contrário, estes eventos só poderiam ter sido como foram, e não poderiam ser diferentes; como seria possível atribuir um caráter sagrado àquilo que seria completamente desprovido de todo significado transcendente? Em particular, se o Cristo morreu sobre a cruz, foi em função do valor simbólico que a cruz possui em si e que sempre foi reconhecido por todas as tradições; é assim que, sem diminuir em nada seu significado histórico, podemos vê-la como derivada deste próprio valor simbólico.

Uma outra conseqüência da lei de correspondência é a pluralidade de sentidos incluídos em cada símbolo: uma coisa qualquer, de fato, pode ser considerada como representando não apenas os princípios metafísicos, mas também as realidades de todas as ordens que lhe são superiores, mesmo que ainda contingentes, porque estas realidades das quais ela depende também mais ou menos diretamente desempenham em relação a ela o papel de “causas segundas”; e o efeito sempre pode ser tomado como símbolo da causa, em qualquer grau que seja, porque tudo o que ele é não passa da expressão de alguma coisa que é inerente à natureza desta causa. Estes sentidos simbólicos múltiplos e hierarquicamente superpostos não se excluem mutuamente, assim como não excluem o sentido literal; ao contrário, eles são perfeitamente concordantes entre si, porque eles exprimem na verdade as aplicações de um mesmo princípio a ordens diversas; e assim eles se corroboram e se completam integrando-se na harmonia da síntese total. É isto aliás que faz do simbolismo uma linguagem bem menos limitada do que a linguagem comum, e o que o torna apto à expressão e à comunicação de certas verdades; é por isso que ele abre possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas; é por isso que ele constitui a linguagem iniciática por excelência, o veículo indispensável a todo ensinamento tradicional.

A cruz possui assim, como todo símbolo, múltiplos sentidos; mas nossa intenção não é de desenvolver todos igualmente aqui, e alguns apenas indicaremos brevemente. O que temos essencialmente em vista, de fato, é o sentido metafísico, que é aliás o primeiro e o mais importante, por ser propriamente o sentido principial; todos os demais não passam de aplicações contingentes e mais ou menos secundárias; e, se contemplarmos alguma destas aplicações, será sempre, no fundo, para ligá-las à ordem metafísica, pois é isto o que, do nosso ponto de vista, as torna válidas e legítimas, conforme à concepção, hoje completamente esquecida do mundo moderno, das “ciências tradicionais”.

Notas:

1. Orient et Occident, 2ª ed., pgs. 203-207.

2. Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, 3ª parte, cap. III; L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, 3ª ed., cap. I.

3. “A própria verdade histórica não é sólida se não derivar do Princípio” (Tchoang-Tseu, cap. XXV)

Capítulo I: A MULTIPLICIDADE DE ESTADOS DO SER

Um ser qualquer, seja ele o ser humano ou outro, pode evidentemente ser visto a partir de muitos pontos de vista diferentes, diríamos mesmo de uma indefinidade de pontos de vista, de importância bastante desigual, mas todos igualmente legítimos dentro de seus respectivos domínios, com a condição de que nenhum deles pretenda ultrapassar seus limites próprios, e menos ainda tornar-se exclusivo e chegar à negação dos outros. Se é verdade que isto é assim, e se consequentemente não podemos recusar a nenhum destes pontos de vista, mesmo ao mais secundário e contingente dentre eles, o lugar que lhe pertence pelo simples fato de ele corresponde a alguma possibilidade, não é menos evidente, por outro lado, que, do ponto de vista metafísico, o único que nos interessa aqui, a consideração de um ser sob seu aspecto individual é necessariamente insuficiente, pois quem diz metafísica diz universal. Nenhuma doutrina que se limite à consideração dos seres individuais poderia merecer o nome de metafísica, qualquer que possa ser seu interesse sob outros aspectos; uma tal doutrina poderá sempre ser chamada de “física”, no sentido original do termo, pois ela se atém exclusivamente ao domínio da “natureza”, ou seja da manifestação, e ainda assim com a restrição de enfocar apenas a manifestação formal, ou mesmo mais especificamente um dos estados que a constituem.

Longe de ser em si mesmo uma unidade absoluta e completa, como querem a maior parte dos filósofos ocidentais – e os modernos sem exceção – o indivíduo não passa na verdade de uma unidade relativa e fragmentária. Ele não é um todo fechado e auto-suficiente, um “sistema fechado” como a “mônada” de Leibnitz; e a noção de “substância individual”, entendida neste sentido, e à qual os filósofos atribuem grande importância, não tem nenhum alcance metafísico; no fundo, não é outra coisa que a noção lógica do “sujeito”, e, se ela pode ser de grande utilidade sob este prisma, ela não pode ser legitimamente transportada para além dos limites deste ponto de vista especial. O indivíduo, mesmo visto em toda a extensão de que é susceptível, não é um ser total, mas apenas um estado particular de manifestação de um ser, estado esse submetido a certas condições especiais e determinadas de existência, e que ocupa um dado lugar dentro da série indefinida de estados do ser total. É a presença da forma dentre as condições de existência que caracteriza um estado como individual; é claro, de resto, que esta forma não deve ser concebida necessariamente como espacial, pois ela só o é no mundo corpóreo, sendo o espaço precisamente uma das condições que definem este mundo como tal (1).

Devemos relembrar aqui, ao menos sumariamente, a distinção fundamental do “Si” e do “eu”, ou da “personalidade” e da “individualidade”, sobre que já demos anteriormente todas as explicações necessárias (2). O “Si”, dissemos, é o princípio transcendente e permanente do qual o ser manifestado, o ser humano por exemplo, não é mais do que uma modificação transitória e contingente, modificação que não pode de modo algum afetar o princípio. Imutável em sua natureza própria, ele desenvolve suas possibilidades em todos as modalidades de realização, em multitude indefinida, que são para o ser total outros tantos estados diferentes, dos quais cada qual possui suas condições de existência limitativas e determinantes, e dos quais apenas um constitui a porção, ou melhor a determinação particular deste ser que é o “eu” ou a individualidade humana. De resto, este desenvolvimento só é tal, a bem dizer, quando o vemos do lado da manifestação, fora da qual tudo deve estar necessariamente em perfeita simultaneidade no “eterno presente”; e é porisso que a “permanente atualidade” do “Si” não é afetada. O “Si” é assim o princípio pelo qual existem, cada qual dentro de seu próprio domínio, que podemos chamar um grau de existência, todos os estados do ser; e isto deve entender-se, não apenas dos estados manifestados, individuais como o estado humano ou supra-individuais - em outros termos, formais ou informais – mas também, embora o termo “existir” se torne então impróprio, dos estados não-manifestados, compreendendo todas as possibilidades que, por sua própria natureza, não são susceptíveis de nenhuma manifestação, e mais as próprias possibilidades de manifestação em modo principial; mas este “Si” propriamente dito não tem nem pode ter, na unidade total e indivisível de sua natureza íntima, nenhum princípio que lhe seja exterior.

Dissemos que o termo “existir” não pode aplicar-se com propriedade ao não-manifestado, vale dizer ao estado principial; de fato, tomado em seu sentido estritamente etimológico (do latim ex-stare), este termo indica o ser dependente em relação a um princípio outro que não ele, ou, em outros termos, aquele que não possui em si sua razão suficiente, ou seja o ser contingente, que é a mesma coisa que o ser manifestado (3). Quando falarmos da Existência, iremos entende-la como a manifestação universal, com todos os estados ou graus que ela comporta, que podem cada qual ser designados igualmente como “mundos”, e que são em multitude indefinida; mas este termo não convém mais ao grau do Ser puro, princípio de toda manifestação e ele próprio não-manifestado, nem, com mais razão ainda, àquilo que está para além do próprio Ser.

Podemos coloca em princípio, antes de qualquer coisa, que a Existência, vista universalmente segundo a definição que lhe demos, é única em sua natureza íntima, como o Ser é um em si-mesmo, e em razão precisamente desta unidade, porque a Existência universal não é outra coisa que a manifestação integral do Ser, ou, para falar mais exatamente, a realização, em modo manifestado, de todas as possibilidades que o Ser comporta e contém principialmente em sua própria unidade. Por outro lado, tanto quanto a unidade do Ser sobre a qual está fundamentada, esta “unicidade” da Existência, se podemos usar um termo que pode parecer um neologismo (4), não exclui a multiplicidade de modos da manifestação nem é por eles afetada, pois ela compreende igualmente todos estes modos pelo fato mesmo de serem eles igualmente possíveis, sendo que esta possibilidade implica em que cada um deva realizar-se segundo as condições que lhe são próprias. Resulta daí que a Existência, em sua “unicidade”, comporta, como já indicamos, uma indefinidade de graus, que correspondem a todos os modos da manifestação universal; e esta multiplicidade indefinida dos graus da Existência implica correlativamente, para um ser qualquer visto na sua totalidade, uma multiplicidade igualmente indefinida de graus possíveis, dos quais cada um deve realizar-se em um grau determinado da Existência.

Esta multiplicidade de estados do ser, que é uma verdade metafísica fundamental, é verdadeira quando nos limitamos a considerar os estados de manifestação, como fizemos até agora e como faremos sempre que se trate apenas da Existência; ela é então verdadeira a fortiori se considerarmos ao mesmo tempo os estados de manifestação e os estados de não-manifestação, cujo conjunto constitui o ser total, visto então, não apenas dentro do domínio restrito da Existência, mesmo tomado na integralidade de sua extensão, mas dentro do domínio ilimitado da Possibilidade universal. Deve compreender-se, com efeito, que a Existência não encera todas as possibilidades de manifestação, e ainda com a restrição de que estas possibilidades só são concebidas na medida em que se manifestem efetivamente, pois, na medida em que não se manifestarem, permanecendo em princípio, manter-se-ão no grau do Ser. Consequentemente, a Existência está longe de ser toda a Possibilidade, concebida como verdadeiramente universal e total, fora e além de todas as limitações, compreendendo-se aí mesmo esta primeira limitação que constitui a determinação mais primordial de todas, ou seja a afirmação do Ser puro (5).

Quando se trata dos estados de não-manifestação de um ser, é preciso ainda distinguir o grau do Ser daquilo que lhe está além; neste último caso, o termo “ser” não pode mais ser aplicado em seu sentido próprio; mas somos obrigados, em função das constituição da linguagem, a faze-lo na falta de um termo mais adequado, mas atribuindo-lhe apenas um valor puramente analógico e simbólico, sem o que nos seria impossível expressar as idéias de que se trata. Assim é que poderemos continuar a falar do ser total como sendo ao mesmo tempo manifestado em certos estados e não-manifestado em outros, sem que isto implique em que, para estes últimos, devamos nos restringir à consideração daquilo que corresponde ao grau do Ser (6).

Os estados de não-manifestação são essencialmente extra-individuais e, assim como o “Si” principial do qual não podem ser separados, eles não podem de modo algum ser individualizados; quanto aos estados de manifestação, alguns são individuais, enquanto que outros são não-individuais, diferença que corresponde, segundo indicamos, à distinção da manifestação formal e da manifestação informal. Se considerarmos em particular o caso do homem, sua individualidade atual, que constitui propriamente falando o estado humano, não passa de um estado de manifestação em meio a uma indefinidade de outros, que devem ser concebidos todos como igualmente possíveis e, porisso mesmo, como existindo ao menos virtualmente, senão efetivamente realizados para o ser que enfocamos, sob um aspecto relativo e parcial, neste estado individual humano.

Notas:

1. Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. II e X.

2. Ibid., cap. II.

3. Resulta daí que, rigorosamente falando, a expressão vulgar “existência de Deus” é um contra-senso, quer se entenda por “Deus” o Ser, como se faz usualmente, quer se entenda o Princípio Supremo que está para além do Ser.

4. Este termo é o que permite traduzir mais exatamente a expressão árabe equivalente Wahdatul-wujûd. – Sobre a distinção que se deve fazer entre a “unicidade” da Existência, a “unidade” do Ser e a “não-dualidade” do Princípio Supremo, ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. VI.

5. Os filósofos, para edificar seus sistemas, pretendem sempre, conscientemente ou não, impor alguma limitação à Possibilidade universal, o que é contraditório, mas que é exigido pela própria constituição de um sistema como tal; seria curioso fazer a história das diferentes teorias filosóficas modernas, que são as que apresentam em maior grau este caráter sistemático, colocando-se do ponto de vista das supostas limitações da Possibilidade universal.

6. Sobre o estado que corresponde ao grau do Ser e o estado incondicionado que esta além do Ser, ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XIV e XV, 3ª Ed.

Capítulo II: O HOMEM UNIVERSAL

A realização efetiva dos estados múltiplos do ser refere-se à concepção daquilo que as diferentes doutrinas tradicionais, e notadamente o esoterismo islâmico, chamam de “Homem Universal” (1); esta concepção estabelece a analogia constitutiva entre a manifestação universal e sua modalidade individual humana, ou, na linguagem do hermetismo ocidental, entre o “macrocosmo” e o “microcosmo” (2). Esta concepção pode aliás ser vista em diferentes graus e com extensões variadas, mas a analogia permanece a mesma em todos os casos (3): assim, ela pode restringir-se à humanidade em si, encarada seja em sua natureza específica, seja mesmo na sua organização social, pois é sobre esta analogia que repousa essencialmente, entre outras aplicações, a instituição das castas (4). Em outro grau, mais extenso, a mesma noção pode abarcar o domínio de existência correspondente a todo o conjunto de um estado do ser determinado, qualquer que seja ele (5); mas este significado, sobretudo se se trata do estado humano (mesmo tomado no desenvolvimento integral de todas as suas possibilidades), ou de qualquer outro estado individual, é ainda “cosmológico”, e o que devemos essencialmente fazer aqui é uma transposição metafísica da noção de homem individual, que deve efetuar-se no domínio extra-individual e supra-individual. Neste sentido, a concepção de “Homem Universal” irá se aplicar antes de mais nada ao conjunto dos estados de manifestação; mas podemos torná-la ainda mais universal, na plenitude do termo, estendendo-a igualmente aos estados de não-manifestação, portanto à realização completa e perfeita do ser total, entendido no sentido superior que já indicamos, e sempre com a ressalva de que o termo “ser” só poderá ser tomado então com um significado puramente analógico.

É essencial frisar aqui que toda transposição metafísica deste gênero deve ser vista como a expressão de uma analogia no sentido próprio da palavra; e lembraremos, para maior precisão, que toda verdadeira analogia deve ser aplicada em sentido inverso: é isto que representa o símbolo bem conhecido do “selo de Salomão”, formado pela união de dois triângulos opostos (6). Assim, por exemplo, do mesmo modo como a imagem num espelho é invertida em relação ao objeto, aquilo que é primeiro e maior na ordem principial é, ao menos aparentemente, o último e o menor na ordem da manifestação (7). Para fazermos uma comparação no campo da matemática, é assim que o ponto geométrico é quantitativamente nulo e não ocupa nenhum espaço, embora seja o princípio pelo qual se produz todo o espaço, que é o desenvolvimento ou a expansão de suas próprias virtualidades. É assim também que a unidade aritmética é o menor dos números se a colocamos diante da sua multiplicidade, mas é o maior em princípio, porque contém a todos virtualmente e produz toda a sua série pela simples repetição indefinida de si-mesma.

Existe portanto analogia, mas não similitude, entre o homem individual, ser relativo e incompleto, tomado aqui como o tipo de um certo modo de existência (ou mesmo de toda a existência condicionada), e o ser total, incondicionado e transcendente em relação a todos os modos particulares e determinados da existência, inclusive em relação à Existência pura e simples, e que chamamos simbolicamente de “Homem Universal”. Devido a esta analogia, podemos dizer que, se o “Homem Universal” é o princípio de toda a manifestação, o homem individual deverá ser, na sua própria ordem, sua resultante e seu resultado - e é poroso que todas as tradições concordam em considerá-lo como formado pela síntese de todos os elementos e de todos os reinos da natureza (8). Desta forma, a analogia se mostra exata; mas para justificá-la completamente, e com ela a própria designação do “Homem Universal”, seria preciso expor considerações sobre o papel cosmológico do ser humano, que nos levariam muito longe do presente estudo. Diremos, no momento, apenas que o ser humano tem, no seu domínio da existência individual, um papel que podemos chamar de “central” em relação a todos os outros seres que se situam no mesmo domínio; este papel faz do homem a expressão mais completa do estado individual em questão, cujas possibilidades se integram por assim dizer nele (ao menos sob um certo aspecto, e com a condição de tomá-lo, não apenas na sua modalidade corporal, mas no conjunto de todas as suas modalidades, na extensão indefinida de que são susceptíveis) (9). Aí residem as razões mais profundas da nossa analogia; e é esta situação em particular que permite transpor a noção de homem, mais do que de qualquer outro ser que viva no mesmo estado, para transformá-la na concepção tradicional do “Homem Universal” (10).

Acrescentaremos ainda uma observação que é das mais importantes: é que o “Homem Universal” só existe virtualmente, e de certa forma negativamente, como se fosse um arquétipo ideal, até que a realização efetiva do ser total lhe dê uma existência atual e positiva; e isto vale para qualquer ser, considerado como efetuando ou devendo efetuar esta realização (11). Diremos ainda, que este modo de falar que apresenta como sucessivo o que é em si essencialmente simultâneo, só é válido quando nos colocamos do ponto de vista particular de um estado de manifestação do ser, tomado como ponto de partida da realização. Por outro lado, é evidente que expressões como “existência negativa” ou “existência positiva”, não devem ser tomadas ao pé da letra, mesmo porque aí a própria noção de “existência” só se aplica numa certa medida e até um certo ponto; mas as imperfeições inerentes à linguagem, pelo fato de que ela está ligada às condições do estado humano (e mais particularmente da sua modalidade corporal e terrestre), obrigam às vezes ao emprego, com todo o cuidado, de “imagens verbais” deste tipo, sem o que seria impossível expressar as verdades metafísicas em línguas tão pouco adaptadas para isto como o são as línguas ocidentais.

Notas:

(1) “Homem Universal” (em árabe El-Insânul-Kâmil) é o Adam Qadmôn da Cabala hebraica e o “Imperador” (Wang) da tradição extremo-oriental (Tao Te King, XXV). - No esoterismo islâmico existe um grande número de tratados de vários autores sobre El-Insânul-Kâmil; os mais importantes são os de Mohyiddin ibn Arabi e de Abdul-Karim El-Jîlî.

(2) Já explicamos em outra parte como entendemos estes termos (L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. II e IV). - Estes termos, de origem grega, tem seus exatos equivalentes em árabe (El-Kawnul-kebir e El-Kawnuç-çeghir).

(3) Podemos dizer o mesmo da teoria dos ciclos, que é outra expressão dos estados de existência; todo ciclo secundário reproduz a seu modo, em menor escala, as fases correspondentes do ciclo maior a que está subordinado.

(4) Cf. Purusha-Shûkta do Rig-Vêda, X, 90

(5) A este respeito, e a propósito do Vaishwânara da tradição hindu, ver L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XII.

(6) Ver ibid., cap. I e III.

(7) Mostramos que isto se acha claramente expresso tanto nos textos dos Upanishads como nos Evangelhos.

(8) Assinalemos notadamente, a este respeito, a tradição islâmica relativa à criação dos anjos e do homem. – Não é preciso dizer que o significado real destas tradições não tem nada em comum com qualquer concepção “transformista”, ou mesmo simplesmente “evolucionista”, no sentido mais geral desta palavra, nem com nenhuma das fantasias modernas inspiradas mais ou menos diretamente de tais concepções antitradicionais.

(9) A realização da individualidade humana integral corresponde ao “estado primordial”, de que já falamos muitas vezes, e que é chamado de “estado edêmico” na tradição judaico-cristã.

(10) Lembraremos, para evitar qualquer equívoco, que sempre tomamos o termo “transformação” em seu sentido estritamente etimológico, que é o de “passagem além da forma”, portanto para além de tudo o que pertence à ordem das existências individuais.

(11) Em um certo sentido, estes dois estados negativo e positivo do “Homem Universal” correspondem respectivamente, na linguagem da tradição judaico-cristã, ao estado anterior à “queda” e ao estado consecutivo à “redenção”; trata-se, segundo este ponto de vista, dos dois Adão de que fala São Paulo (1ª Epístola aos Coríntios, XV), o que mostra ao mesmo tempo a relação entre o “Homem Universal” e o Logos (cf. Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, 2ª ed., pg. 98).

Capítulo III: O SIMBOLISMO METAFÍSICO DA CRUZ

A maior parte das doutrinas tradicionais simboliza a realização do “Homem Universal” por um signo que é sempre o mesmo e que se liga diretamente à Tradição primordial: é o signo da cruz, que representa claramente o modo como esta união é atingida pela comunhão perfeita entre a totalidade dos estados do ser, harmônica e conformemente hierarquizados, num desabrochar integral nos dois sentidos da “amplitude” e da “exaltação”. De fato, este duplo desabrochar do ser pode ser visto como efetuando-se, de um lado, horizontalmente, ou seja em um certo nível ou grau de existência determinado, e de outro lado, verticalmente, ou seja na superposição hierárquica de todos os seres. Assim, o sentido horizontal representa a “amplitude” ou a extensão integral da individualidade tomada como base para a realização; esta extensão consiste no desenvolvimento indefinido de um conjunto de possibilidades submetidas a certas condições específicas de manifestação; no caso do ser humano, esta extensão não é, por sinal, limitada à parte corporal da individualidade, mas ela compreende todas as modalidades desta, sendo o estado corporal apenas uma destas modalidades. O sentido vertical representa a hierarquia, ainda mais indefinida, dos estados múltiplos, dos quais cada qual, visto também na sua integralidade, é um conjunto de possibilidades, relacionadas a outros tantos “mundos” ou graus, todos compreendidos na síntese total do “Homem Universal” (2). Na representação da cruz, a expansão horizontal corresponde à indefinidade das modalidades possíveis de um só estado do ser considerado integralmente, e a superposição vertical à série indefinida de estados do ser total.

É claro que o estado cujo desenvolvimento é representado pela linha horizontal pode ser qualquer estado; de fato, ele será o estado no qual o ser que pretende realizar o “Homem Universal” se ache atualmente manifestado, e este estado será para ele o ponto de partida e o suporte, ou a base, para esta realização. Qualquer estado poderá fornecer a um ser esta base; se consideramos especificamente o estado humano, é porque este nos concerne diretamente, de modo que iremos tratar do caso dos seres que partem deste estado para efetuar a realização; mas, do ponto de vista metafísico, este caso não constitui, de modo algum, um caso privilegiado.

A totalização efetiva do ser, que está além de toda condição, é a mesma coisa que a doutrina hindu chama de “Libertação” (Moksha), ou que o esoterismo islâmico chama de “Identidade Suprema” (3). No Islã ensina-se que o “Homem Universal”, representado pelo conjunto “Adão-Eva”, tem o mesmo número que Allah, o que é bem uma expressão da “Identidade Suprema” (4). É preciso fazer aqui uma observação importante: pode-se objetar que a designação “Adão-Eva”, embora susceptível de transposição, só se aplica em sentido próprio ao estado humano primordial; o que acontece é que a “Identidade Suprema”, embora só seja realizada efetivamente na totalização dos estados múltiplos, já se acha realizada virtualmente no estado “edêmico”, na integração do estado humano ligado ao seu centro original, que é o ponto de comunicação direta com os outros estados (5).

De resto, podemos dizer que a integração do estado humano, ou de qualquer outro estado, representa, na sua ordem e grau, a própria totalização do ser; isto ficará mais claro pelo simbolismo geométrico que iremos explicar. Isto acontece porque podemos encontrar em todas as coisas, e notadamente no homem individual (e mais particularmente ainda no homem corporal), a correspondência e a figuração do “Homem Universal”; cada parte do Universo, seja um mundo ou um ser particular, é sempre e em toda parte análogo ao todo. Leibnitz tinha razão em admitir que a “substância individual” (com as reservas que já fizemos) deve conter em si-mesma uma representação integral do Universo, o que é uma aplicação correta da analogia entre o “macrocosmo” e o “microcosmo” (6); mas ao limitar-se à consideração da “substância individual”, vendo-a como um ser completo e fechado sem nenhuma comunicação com algo que o ultrapasse, ele não pôde passar da “amplitude” à “exaltação”, privando a sua teoria de um verdadeiro alcance metafísico (7).

Para voltarmos ao simbolismo da cruz, diremos que ela tem vários sentidos, mais ou menos secundários e contingentes, além do significado metafísico e principial que expusemos; e é natural que seja assim, dada a pluralidade de sentidos que cabem em qualquer símbolo. Antes de desenvolvermos a representação geométrica do ser e de seus estados múltiplos, tal como ela é sintetizada no signo da cruz, e de nos aprofundarmos neste símbolo, vamos falar um pouco destes outros sentidos; embora esta considerações não sejam propriamente o objeto de nosso estudo, tudo de certo modo é ligado, e às vezes mais estreitamente do que supomos, em virtude da lei de correspondência que é o fundamento de todo simbolismo.

Notas:

(1) Estes termos são da linguagem do esoterismo islâmico, que é bem preciso sobre este ponto. - No mundo ocidental, o símbolo da “Rosa-Cruz” teve exatamente o mesmo sentido, antes que a incompreensão moderna deturpasse seu sentido; o significado da roda será explicado mais adiante.

(2) “A partir do momento em que o homem, no “grau universal”, se exalta na direção do sublime, a partir do momento em que surgem nele os outros graus (estados não-humanos), em perfeito desabrochar, ele é o “Homem Universal”. A exaltação e a amplidão atingiram sua plenitude no Profeta (que é assim idêntico ao “Homem Universal”)” (Epístola sobre a Manifestação do Profeta, pelo Sheikh Mohammed ibn Fadlallah El-Hindi). - Isto permite entender as palavras ditas a cerca de vinte anos por um alto representante do Islam: “Se os cristãos tem o sinal da cruz, os muçulmanos tem a doutrina”. Acrescentemos que, na ordem esotérica, a relação do “Homem Universal” com o Verbo e com o Profeta não deixa haver, no fundo da doutrina, nenhuma divergência entre Cristianismo e Islam, entendidos no seu verdadeiro significado. - Parece que o conceito de Vohu-Mana, entre os antigos Persas, também corresponda ao do “Homem Universal”.

(3) Ver a respeito os últimos capítulos de L’Homme et son devenir selon le Vêdânta.

(4) Este número, que é 66, é dado pela soma dos valores numéricos das letras que formam os nomes Adam wa Hawâ. Segundo o Gênesis, o homem, “criado macho e fêmea” (ou seja num estado andrógino) “é a imagem de Deus”; e, segundo a tradição islâmica, Allah ordenou aos anjos adorar o homem (Corão, II, 34; XVII, 61; XVIII, 50). O estado andrógino original é o estado humano completo, no qual os complementares se equilibram, ao invés de se opor. Acrescentemos que, na tradição hindu, uma expressão deste estado está contido simbolicamente na palavra Hamsa, onde os dois pólos complementares do ser são relacionados com as duas fases da respiração, que representam as fases da manifestação universal.

(5) Os dois estágios da realização da “Identidade Suprema” correspondem à distinção entre a “imortalidade efetiva” e a “imortalidade virtual” (ver L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XVIII, 3a. ed.).

(6) Já assinalamos que Leibnitz, ao contrário dos filósofos modernos, possuía alguns dados tradicionais, embora elementares e incompletos, e que parece aliás não tê-los entendido muito bem.

(7) Outra falha na concepção de Leibnitz foi a introdução do ponto de vista moral nas considerações de ordem universal, pelo “princípio do melhor”, no qual ele via a “razão suficiente” de toda a existência. Digamos ainda que a distinção que ele estabelece entre o possível e o real, não possui valor metafísico, pois tudo o que é possível é porisso mesmo real à sua maneira.

Guenon Sorri