A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: dentre todas aquelas que conhecemos mais ou menos completamente, esta civilização e a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e este desenvolvimento monstruoso, cujo início coincide com o que se convencionou chamar Renascimento, foi acompanhado, como fatalmente o deveria ser, por uma correspondente regressão intelectual; não dizemos equivalente, pois se trata de duas ordens de coisas entre as quais não poderia haver qualquer medida em comum. Esta regressão chegou a tal ponto que os Ocidentais de hoje não sabem mais o que possa ser a intelectualidade pura, e nem mesmo suspeitam de que possa haver algo semelhante.
Resulta disto seu desprezo, não apenas pelas civilizações orientais, mas até pela idade média européia, cujo espírito igualmente lhes escapa por completo. Como explicar o interesse de um conhecimento totalmente especulativo a pessoas para as quais a inteligência é somente um meio de se agir sobre a matéria e de sujeitá-la com finalidades práticas, e para quem a ciência, no sentido restrito pelo qual a entendem, vale especialmente na medida em que conduz a aplicações industriais? Nada exageramos: basta um olhar a volta para compreendermos que ê esta a mentalidade da imensa maioria de nossos contemporâneos. E um exame da filosofia a partir de Bacon e Descartes iria apenas confirmar estas constatações. Lembraremos somente que Descartes limitou a inteligência à razão, que atribuiu um único papel aquilo que acreditava poder chamar de metafísica: o de servir de fundamento ã física, estando esta destinada, segundo seu pensamento, a preparar a constituição das ciências aplicadas - mecânica, medicina e moral - fim último do saber humano tal como ele o concebia. Não seriam já as tendências que ele assim afirmava as mesmas que caracterizam â primeira vista todo o desenvolvimento do mundo moderno? Negar ou ignorar todo conhecimento puro e supra-racional era abrir o caminho que dever ia conduzir logicamente, por um lado ao positivismo e ao agnosticisrno, que se fundamentam nas mais estreitas limitações da inteligência e de seu objeto e, por outro lado, a todas as teorias sentimentalistas e voluntaristas, que se empenham em procurar no infra-racional aquilo que a razão não lhes pode dar.
Na realidade, aqueles que hoje em dia querem reagir contra o racionalismo também aceitam sua identificação da totalidade da inteligência com a razão, e crêem que ela ê apenas uma faculdade prática, incapaz de sair do domínio da matéria. Bergson escreveu textualmente o seguinte: "A inteligência, considerada no que parece ser seu procedimento original, é a faculdade de fabricar objetos artificiais, particularmente ferramentas de fazer ferramentas (sic) e de variar indefinidamente sua fabricação" (1) . E ainda: "A inteligência, mesmo quando não mais opera sobre a matéria bruta, segue os hábitos adquiridos nesta operação: aplica formas que são as mesmas da matéria inorganizada. Ela ê feita para este tipo de trabalho. Por si só, este tipo de trabalho lhe satisfaz plenamente. E é o que ela exprime dizendo que somente assim atinge a distinção e a clareza" (2)
Por estes últimos indícios pode-se reconhecer sem esforço que não é a inteligência mesmo que está em causa, porém apenas a concepção cartesiana de inteligência, o que ê bem diferente. E a superstição da razão , a "filosofia nova", no dizer dos que a ela aderiram, vai substituí-la por outra ainda mais grosseira, sob certos aspectos - a superstição da vida. 0 racionalismo, impotente para elevar-se até a verdade absoluta, ao menos deixava subsistir a verdade relativa. 0 intuicionismo contemporâneo rebaixa esta verdade a ponto de não ser senão uma representação da realidade sensível, em tudo o que ela tem de inconsistente e de incessantemente mutável. Enfim, o pragmatismo termina por fazer desaparecer a própria noção de verdade ao identificá-la à noção de utilidade, o que resulta em suprimi-la pura e simplesmente. Se esquematizamos um pouco as coisas, de modo algum as desfiguramos e, quaisquer que possam ter sido as fases intermediárias, as tendências fundamentais são exatamente aquelas que acabamos de descrever. Os pragmatistas, indo até o fim, mostram-se os mais autênticos representantes do pensamento ocidental moderno : o que importa a verdade em um mundo cujas aspirações, por serem unicamente materiais e sentimentais, e não intelectuais, encontram satisfação completa na indústria e na moral, domínios em que é bem possível abster-se de conceber a verdade? Sem dúvida não se chegou de uma só feita a tais extremos, e muitos europeus irão protestar que ainda não chegaram a tanto. Mas aqui pensamos especialmente nos americanos, que já se encontram em uma fase mais "avançada" , se é que podemos dizê-lo, da mesma civilização. Mentalmente, assim como geograficamente, a América atual é verdadeiramente o "Extremo Ocidente". E a Europa a seguirá, sem dúvida alguma, se nada vier a impedir o curso das conseqüências que acarretará o presente estado de coisas.
Mas o que há, talvez, de mais extraordinário, é a pretensão de fazer desta civi1ização anormal o modelo de todas as civilizações, de tomá-la como "a civilização" por excelência, até como a única merecedora de tal nome. É também, como complemento desta ilusão, a crença no "progresso", considerado de maneira igualmente absoluta, e identificado naturalmente, em sua essência, com o desenvolvimento material que absorve toda a atividade do ocidental moderno . £ curioso constatar como certas idéias- conseguem rapidamente disseminar-se e impor-se, mesmo correspondendo pouco, e evidente, às tendências gerais de um meio e de uma época. É o caso das idéias de "civilização" e de "progresso" , que tanta gente acredita serem universais e necessárias, quando, na realidade, foram de invenção bem recente, e quando ainda hoje pelo menos três quartas partes da humanidade persistem em ignora-las ou não as consideram em absoluto. Jacques Bamville (*) chama atenção para o fato de que "se o verbo civilizar pode já ser encontrado com o significado que hoje lhe atribuímos em bons autores do século XVIII','o substantivo civi1ização é encontrado apenas em textos dos economistas da época imediatamente precedente à Revolução. Littré (**) cita um exemplo tirado de Turgot (***) . Littre, que havia esmiuçado toda a nossa literatura, não conseguiu ir mais além. Assim, a palavra civilização não tem mais do que um século e meio de existência. Acabou entrando no dicionário da Academia em 1835, isto é, há pouco menos de cem anos... A Antigüidade, da qual ainda vivemos, também não possuía um termo para designar aquilo que chamamos civilização. Se esta palavra figurasse em uma versão para o latim, o jovem aluno se veria bem atrapalhado... A vida das palavras não é independente da vida das idéias. A palavra civilização, que a nossos'ancestrais não fazia falta, talvez porque possuíssem a própria coisa designada, disseminou-se no século XIX sob a influência de idéias novas. As descobertas científicas, o desenvolvimento da industria, do comércio, da prosperidade e do bem-estar criaram uma espécie de entusiasmo, e até de profetismo. A concepção do progresso indefinido, surgida na segunda metade do século XVIII, concorreu para convencer e espécie humana de que ela entrara em uma nova era, a da civilização absoluta. É devido a um prodigioso utopista, Fourier (****), hoje bastante esquecido, que se chama o período contemporâneo de civilização, e se confunde a civilização com a idade moderna... A civilização era, pois, o grau de desenvolvimento e de aperfeiçoamento a que chegaram as nações européias no século XIX. Este termo compreendido por todos, se bem que por ninguém definido, abarcava ao mesmo tempo o progresso material e o progresso moral, um trazendo o outro, ambos unidos e inseparáveis. A civilização era, em suma, a própria Europa, era um diploma que se conferia o mundo europeu" (3). Eis exatamente o que pensamos. Insistimos em fazer esta citação, apesar de longa, para demonstrar que não somos o único a pensar deste modo.
Assim, estas duas idéias de "civilização" e de "progresso" estreitamente associadas, datam apenas da segunda metade do século XVIII,quer dizer , da época que, entre outras coisas, viu nascer o materialismo (4), tão especialmente propagadas e popularizadas pelos sonhadores socialistas do início do século XIX. Deve-se convir que a história das idéias permite às vezes que se façam constatações assaz surpreendentes, e que se reduzem certas concepções imaginárias a seu devido valor; ela o permitiria de modo especial se fosse feita e estudada como o deve ser, se não fosse, como acontece, aliás, com a história, falsificada por interpretações tendenciosas, ou limitada a obras de simples erudição, a pesquisas insignificantes sobre meros detalhes.
A verdadeira história pode ser perigosa para certos interesses políticos e cabe questionar se não será por esta razão que certos métodos, neste domínio, são oficialmente impostos com a exclusão de qualquer outro. Conscientemente, ou não, afasta-se a priori tudo o que permitiria uma visão clara sobre vários pontos, e é assim que se forma a "opinião pública". Voltemos, porém, às duas idéias de que há pouco falávamos e esclareçamos que, atribuindo-lhe uma origem tão próxima, temos em vista unicamente esta acepção absoluta, e para nós ilusória, que é a que se lhes é dada mais comumente hoje em dia. Já o sentido relativo que podem ter estas mesmas palavras é uma outra questão e, como este sentido é legítimo este sentido é legítimo, pode-se dizer que se trata, neste caso, de idéias que nasceram em um determinado momento. Pouco importa que tenham sido expressas desta ou daquela maneira e, se um termo é adequado, não será pelo fato de ter criação recente que vejamos inconveniente em seu emprego. Assim, sentimo-nos muito â vontade ao dizermos que existem múltiplas e diversas "civilizações". Seria muito difícil definir exatamente este conjunto de elementos de diferentes ordens que constituem o que se chama de uma civilização. No entanto, todos sabem muito bem o que se entende por isto. Não pensamos que seria necessário tentar encerrar em uma fórmula rígida as características gerais de todas as civilizações, ou então as características particulares de uma determinada civilização. Este é um processo um tanto artificial, e muito duvidamos desses enquadramentos estreitos que tanto agradam ao espírito sistemático. Assim como há "civilizações", há também, no decorrer do desenvolvimento de cada uma, ou de certos períodos mais ou menos restritos desse desenvolvimento, "progressos" relativos não ao todo indistintamente, mas a tal ou qual domínio definido. Esta é apenas, em suma, outra maneira de dizer que uma civilização se desenvolve em um certo sentido, em uma certa direção. Mas, assim como há progressos, há também regressões, e às vezes até acontecem ambos simultaneamente em domínios diferentes. Logo, insistimos, tudo isto é eminentemente relativo. Se as mesmas palavras forem tomadas em um sentido absoluto, deixam de corresponder a qualquer realidade, e é justamente então que representam estas idéias novas em curso há menos de dois séculos, e apenas no Ocidente. Claro está que "o Progresso” e “a Civilização", com letra maiúscula, fazem um efeito excelente em certas frases vazias e declamatórias, feitas para impressionar as multidões para quem as palavras servem menos para exprimir pensamentos do que para preencher sua ausência. Sob este aspecto, desempenham um papel dos mais importantes no arsenal das fórmulas de que se servem os "dirigentes" contemporâneos para desempenhar o trabalho singular de sugestão coletiva, sem o qual a mentalidade especificamente moderna não poderia subsistir por muito tempo. A este respeito acreditamos não se ter dado a devida atenção à analogia evidente entre a ação do orador, especialmente, e a do hipnotizador (a do domador também pertence a tal ordem). Fazemos menção e passamos este tópico de estudos à atenção dos psicólogos. Não há dúvida de que o poder das palavras já foi exercido em maior ou menor escala em outros tempos também. Mas algo de que não se tem exemplo é esta gigantesca alucinação coletiva através da qual uma parte da humanidade foi levada a tomar as mais vãs quimeras como realidades incontestáveis. E dentre estes ídolos do espírito moderno, aquelas que ora denunciamos são talvez as mais perniciosas de todas.
Devemos voltar ainda à gênese da idéia de progresso, isto é, da idéia de progresso indefinido, excluindo progressos especiais e limitados, cuja existência de modo algum pretendemos contestar. É provavelmente em Pascal que podemos achar o primeiro traço desta idéia, aplicada, aliás, a um só ponto de vista: é bem conhecido o trecho (5) em que ele compara a humanidade a "um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente no decorrer dos séculos", e onde ele dá mostras desse espírito anti-tradicional que é uma das particularidades do Ocidente moderno, quando declara que "aqueles que chamamos antigos eram na verdade novos sob todos os aspectos(*****), e que assim suas opiniões têm muito pouco peso. A este respeito Pascal teve pelo menos um precursor, pois Bacon já havia dito com a mesma intenção: Antiquitas saeculi, juventus mundi(******). É fácil ver o sofisma inconsciente em que se baseia tal concepção: este sofisma consiste em supor que a humanidade como um todo segue um desenvolvimento contínuo e unilinear. Esta é uma visão eminentemente "simplista", que contradiz todos os fatos conhecidos. Com efeito, a história nos mostra, em todas as épocas, civilizações independentes umas das outras, muitas vezes até divergentes; enquanto umas nascem e se desenvolvem, outras entram em decadência e morrem, ou são aniquiladas bruscamente por algum cataclismo; e as civilizações novas nem sempre aproveitam a herança das antigas. Quem ousaria sustentar seriamente, por exemplo, que os ocidentais modernos fizeram uso, mesmo indiretamente, da maioria dos conhecimentos acumulados pelos caldeus ou pelos egípcios, sem falar nas civilizações das quais nem mesmo o nome chegou até nós? De resto, nem é necessário descer a um passado tão remoto, quando existem ciências que eram cultivadas na idade média européia e das quais não se tem mais hoje a menor idéia. Se se quer conservar a representação do "homem coletivo" que Pascal considera (e a quem chama com muita impropriedade de "homem universal"), será necessário, então, dizer que, se há períodos em que ele aprende, há outros em que ele esquece, ou então, que enquanto ele aprende certas coisas, esquece outras. Mas a realidade é ainda mais complexa, pois há simultaneamente, como sempre houve, civi1izações que não se penetram, que se ignoram mutuamente: tal é, hoje mais que nunca, a situação da civilização ocidental com relação às civilizações orientais. No fundo, a origem da ilusão expressa por Pascal é simplesmente a seguinte: os ocidentais, a partir do Renascimento, adquiriram o hábito de se considerarem os exclusivos herdeiros e continuadores da Antigüidade greco-romana, desconhecendo ou sistematicamente ignorando todo o resto. É o que chamamos de "preconceito clássico". A humanidade de que fala Pascal começa nos gregos e continua com os romanos. Depois sua existência passa por uma descontinuidade correspondente à idade média, na qual ele apenas pôde ver, como todos os do século XVII, um período de adormecimento. Vem, enfim, o Renascimento, isto é, o despertar dessa humanidade que, a partir desse momento, será composta pelo conjunto dos povos europeus. É um erro estapafúrdio e que denota um horizonte mental singularmente limitado, esse de tomar desta forma a parte pelo todo. Sua influência pode ser encontrada em mais de um domínio: os psicólogos, por exemplo, comumente limitam suas observações a um só tipo de humanidade - o ocidental moderno - e estendem abusivamente os resultados assim obtidos a ponto de pretenderem tomá-los, sem exceção, como características do homem em geral.
É essencial notar que Pascal ainda considerava apenas um progresso intelectual, dentro dos limites em que ele próprio e sua época concebiam a intelectualidade. Foi no fim do século XVIII que apareceu, com Turgot e Condorcet, a idéia de progresso estendida a todas as ordens de atividade, E esta idéia estava ainda tão longe de uma aceitação geral que Voltaire apressou-se a ridicularizá-la. Não podemos pretender fazer aqui a história completa das diversas modificações por que passou esta idéia no decorrer do século XIX, e das complicações pseudocientíficas a ela acrescentadas quando, sob o nome de "evolução", desejou-se aplicá-la não apenas à humanidade, mas a todo o conjunto dos seres vivos. 0 evolucionismo, apesar de muitas divergências mais ou menos importantes, tornou-se um dogma oficial: ensina-se como uma lei, a qual é proibido discutir, algo que na realidade não passa da mais gratuita e mais mal fundamentada de todas as hipóteses. Por motivos ainda mais fortes o mesmo se passa com a concepção do progresso humano, que dentro dela aparece como sendo um simples caso particular. Antes de se chegar a este ponto, porém, houve muitas vicissitudes. Entre os próprios partidários do progresso alguns houve que não puderam se furtar a formular reservas bastante sérias: Auguste Comte, que começara sendo um discípulo de Saint-Simon, admitia um progresso indefinido quanto à duração, mas não quanto à extensão. Para ele, a marcha da humanidade poderia ser representada por uma curva com uma assíntota da qual se aproxima indefinidamente sem jamais atingi-la. De modo que a amplitude do progresso possível, isto é, a distância entre o estado atual e o estado ideal, representada pela distância entre a curva e a assíntota, decresce sempre. Nada mais fácil do que demonstrar as confusões sobre as quais repousa a teoria fantasista que recebeu de Comte o nome de "lei dos três estados". A principal destas consiste em supor que o único objeto de todo conhecimento possível é a explicação dos fenômenos naturais. Como Bacon e Pascal, ele comparava os antigos a crianças, enquanto que outros, em época mais recente, preferiram assimilá-los aos selvagens, por eles denominados "primitivos". De nossa parte, porém, pelo contrário, é a eles próprios que. vemos como degenerados (6) . Por outro lado, alguns, não conseguindo deixar de constatar a existência de altos e baixos naquilo que conhecem como sendo a história da humanidade, chegaram a falar em um "ritmo do progresso". Talvez fosse mais simples e mais lógico, nessas condições, não falarem mais em progresso de modo algum. Porém, como é preciso salvaguardar a qualquer preço o dogma moderno, supõe-se que "o progresso" exista até mesmo como resultante final de todos os progressos parciais e de todas as regressões. Estas restrições e discordâncias deveriam dar o que pensar. Muito poucos, todavia, parecem disto se aperceber. As diferentes escolas não conseguem chegar a um acordo, mas todas entendem que se deve admitir o progresso e a evolução, sem o que provavelmente não se poderia ter direito à qualidade de "civilizado".
Existe ainda um outro ponto digno de nota. Ao pesquisarem-se, dentre as divisões do pretenso progresso, quais são as que estão hoje em dia mais em foco, aquelas a que todas as outras se reportam no pensamento de nossos contemporâneos, notar-se-á que se reduzem a apenas duas: o "progresso material" e o "progresso moral". São as únicas que Jacques Bainville mencionou como incluídas na idéia corrente de "civilização" - e com razão, aliás, a nosso ver. Sem dúvida alguns ainda falam bastante de "progresso intelectual" Para eles, porém, esta expressão ê essencialmente um sinônimo de "progresso científico", e aplica-se especialmente ao desenvolvimento das ciências experimentais e suas aplicações. Vê-se, pois aqui reaparecer essa degradação da inteligência que acaba por identificá-la com o mais restrito e inferior de seus empregos: a ação sobre a matéria visando unicamente a utilidade pratica. 0 chamado "progresso intelectual" definitivamente não é senão o próprio "progresso material" e, se a inteligência fosse apenas isto, seria preciso aceitar a definição que lhe dá Bergson. A bem da verdade, a maioria dos Ocidentais atuais não concebe a inteligência de outro modo. Para eles, reduz-se, nem mesmo à razão, no sentido cartesiano, senão à mais ínfima parte dessa razão, a suas mais elementares operações, àquilo que está sempre estreitamente ligado ao mundo sensível, do qual fizeram seu único e. exclusivo campo de atividade. Para aqueles que sabem que existe algo mais e que persistem em dar às palavras seu verdadeiro significado, não é de "progresso intelectual" que se pode tratar em nossa época, senão, ao contrário, de decadência, ou melhor dizendo, de declínio intelectual. E, como há rumos de desenvolvimento incompatíveis entre si, é este, precisamente, o inconveniente do "progresso material", o único a existir de fato no decorrer dos últimos séculos. Progresso científico, se assim o quiserem, mas com uma acepção extremamente limitada, e progresso industrial mais ainda que científico. Desenvolvimento material e intelectualidade pura estão, na verdade, em sentido inverso. Quem se aprofunda em um deles afasta-se necessariamente do outro. Note-se bem, aliás, que aqui dizemos intelectualidade, e não racionalidade, pois o domínio da razão é apenas intermediário, de algum modo, entre o domínio dos sentidos e o do intelecto superior. Se a razão recebe um reflexo deste último, até quando o está a negar e a julgar-se a mais alta faculdade do ser humano, é sempre dos dados sensíveis que são extraídas as noções que ela elabora. Queremos dizer que o geral, objeto próprio da razão e por conseguinte da ciência, que é obra desta última, mesmo se não pertence ã ordem sensível, procede do individual, que é percebido pelos sentidos. Pode-se dizer que o geral está além do sensível , e não acima deste. O transcendente é apenas o universal, objeto do intelecto puro, diante do qual mesmo o geral reduz-se pura e simplesmente ao individual. Eis a distinção fundamental entre conhecimento metafísico e conhecimento científico, assim como já a expusemos mais amplamente (7). Se a trazemos aqui de novo, é porque a ausência total do primeiro e a expansão desordenada do segundo constituem as características mais marcantes da civilização ocidental em seu estado atual.
A concepção de "progresso moral", por sua vez, representa o outro elemento predominante da mentalidade moderna. Referimo-nos à sentimenta1idade. E a presença deste elemento de modo algum nos fará modificar o julgamento por nós formulado ao dizermos que a civilização ocidental é totalmente material. Bem sabemos que alguns querem opor o domínio do sentimento ao da matéria, tornando o desenvolvimento de um deles numa espécie de contrapeso a invasão do outro e tomar por ideal o equilíbrio mais estável que for possível entre esses dois elementos complementares. Talvez seja este, no fundo, c pensamento dos intuicionistas que, ao associarem indissoluvelmente inteligência e matéria, tentam uma saída com o auxílio de um instinto muito mal definido . Com mais certeza ainda, é este o pensamento dos pragmatistas, para quem a noção de utilidade, destinada a substituir a noção de verdade, apresenta-se ao mesmo tempo sob o aspecto material e sob o aspecto moral. Vemos ainda aqui até que ponto o pragmatismo exprime as tendências especiais do mundo moderno, especialmente do mundo anglo-saxão, que é sua fração mais típica. De fato , materialidade e sentimentalidade, longe de se oporem, não podem existir uma sem a outra, e ambas alcançam juntas seu desenvolvimento mais extremo. Disto, temos prova na América, onde, conforme tivemos oportunidade de assinalar em nossos estudos sobre o teosofismo e o espiritismo, as piores extravagâncias "pseudo-místicas" nascem e disseminam-se com incrível facilidade, ao mesmo tempo que o industrialismo e a paixão pelos "negócios" são levados a um grau que chega às raias da loucura. Neste estado de coisas, não é mais um equilíbrio que se estabelece entre as duas tendências. São dois desequilíbrios que se acrescentam e, ao invés de se compensarem, agravam-se mutuamente. A razão deste fenômeno é fácil de perceber: quando a intelectualidade reduz-se a um mínimo, é apenas natural que a sentimenta1idade tome a dianteira. Esta, alias, por sua própria natureza, está bem próxima à ordem material: não há nada em todo o domínio psicológico, que esteja mais estreitamente dependente do organismo e, apesar de Bergson, é o sentimento, e não a inteligência, que se nos apresenta como ligado à matéria. Bem sabemos a resposta que podem dar os intuicionistas: a inteligência, tal como a concebem, está ligada à matéria inorgânica (é sempre o mecanicismo cartesiano e seus derivados que eles tem em mente) e o sentimento à matéria viva, que lhes parece ocupar um lugar mais elevado na escala das existências. Inorgânica ou viva, porém, é sempre matéria, - e pertencente às coisas sensíveis. É decididamente impossível à mentalidade moderna e às filosofias que a representam superar esta limitação. A rigor, se sustentam que haja uma dualidade de tendências, será necessário relacionar uma delas à matéria e a outra à vida, distinção que de fato pode servir para classificar de maneira bem satisfatória as grandes superstições de nossa época. Entretanto, reafirmamos, são ambas pertencentes à mesma ordem e não se podem realmente dissociar; estão situadas em um mesmo plano, e não superpostas hierarquicamente. Assim, o "moralismo" de nossos contemporâneos é apenas o complemento necessário de seu materialismo prático . Seria perfeitamente ilusório querer exaltar um em detrimento do outro uma vez que, sendo necessariamente solidários, desenvolvem-se ambos simultaneamente e no mesmo sentido, que é aquele a que se convencionou chamar "civilização".
Acabamos de ver por que as concepções de "progresso material" e de "progresso moral" são inseparáveis, e por que a segunda ocupa, de maneira quase tão constante quanto a primeira, um espaço tão considerável nas preocupações de nossos contemporâneos. De modo algum contestamos a existência do "progresso material", apenas sua importância. Sustentamos que ele não vale as perdas que causa ao lado intelectual e que, por ser de outra opinião, obriga a ignorar totalmente a verdadeira intelectualidade. E o que se deve pensar, então, da realidade do "progresso moral"? Eis um ponto que não se pode discutir a sério, pois nesse domínio sentimental tudo não passa de uma questão de avaliação e de preferências individuais. Cada pessoa chamará de "proqresso" o que estiver em conformidade com suas próprias disposições e, em sumo, não há como dar razão a um ou a outro. Aqueles cujas tendências estão em harmonia com as de sua época só podem ficar satisfeitos com o presente estado de coisas. E é o que eles comunicam ã sua maneira quando dizem que esta época apresenta progresso com relação as precedentes. Muitas vezes, porém, esta satisfação de suas aspirações é apenas relativa, pois os acontecimentos não se desenrolam sempre ao sabor de seus desejos. £ por isto que supõem que o progresso continuara através das épocas futuras. Às vezes os fatos vêm trazer um desmentido aqueles que estão persuadidos da atual realidade do "progresso moral", segundo as concepções mais freqüentes que dele se fazem. Estes, porem, estão prontos a modificar suas idéias a esse respeito, ou então a remeter a um futuro mais ou menos longínquo a realização de seu ideal; poderiam resolver o problema, também, referindo-se a um "ritmo do progresso". Além disto, o que é ainda mais simples, eles geralmente se apressam a esquecer a lição da experiência. São assim esses sonhadores incorrigíveis que, a cada nova guerra, não deixam de profetizar que será a última. No fundo, a crença no progresso indefinido e apenas a mais ingênua e. a mais grosseira de todas as formas de "otimismo". Quaisquer que sejam suas modalidades é ela sempre sentimental em sua essência, mesmo quando se trata do "progresso material". Aqueles que objetarem termos nós mesmos reconhecido a existência deste último, responderemos que a reconhecemos apenas dentro dos limites em que os fatos no-la demonstram, e isto não significa que concordamos, de alguma forma , em que ele deva, ou mesmo possa prosseguir indefinidamente. De resto, como de todo não nos parece ser o que há de melhor no mundo, em vez de o chamar progresso, preferimos chamá-lo simplesmente desenvolvimento. O que incomoda nesta palavra progresso é a idéia de "valor" que ela traz quase que invariavelmente. Esta observação lembra outra: da mesma forma existe uma realidade que se dissimula sob o pretenso "progresso moral", ou, se preferirem, que alimenta essa ilusão. Esta realidade é o desenvolvimento da sentimentalidade que, questões de avaliação à parte, existe de fato no mundo moderno, tão incontestavelmente quanto o desenvolvimento da indústria e do comércio (e já dissemos por que um não existe sem o outro). Este desenvolvimento, a nosso ver excessivo e anormal, não pode deixar de aparecer como um progresso para os que colocam a sentimentalidade acima de tudo. E talvez digam que, falando em simples preferências como há pouco o fazíamos, tiramo-nos já o direito de apontar-lhes o erro. Mas não é nada disto: o que então dizíamos aplica-se ao sentimento, em suas variações de indivíduo para indivíduo. Quando se trata de colocar o sentimento, considerado genericamente, em seu devido lugar relação a inteligência já é algo bem diverso, pois há uma hierarquia a se observar. O mundo moderno exatamente inverteu as relações naturais entre as diversas ordens. Mais uma vez, apequenamento da ordem, intelectual (até mesmo ausência da intelectualidade pura), exagero da ordem material e da ordem sentimental , tudo está interligado, e é tudo isto que faz da civilização ocidental atual uma anomalia, para não dizer uma monstruosidade.
Eis como se mostram as coisas quando se as considera sem opiniões preconcebidas. E é desta forma que as vêem os representantes mais qualificados das civilizações orientais, sem qualquer preconceito, pois o preconceito é sempre uma coisa sentimental, não intelectual, enquanto que seu ponto de vista é puramente intelectual. 5e os ocidentais têm certa dificuldade de compreender esta atitude, é porque são inelutavelmente levados a julgar os outros de acordo com suas próprias características, atribuindo-lhes suas próprias preocupações como lhes atribuem suas maneiras de pensar, sem se darem conta de que possam sequer existir outras, tamanha e a estreiteza de seu horizonte mental. Dai vem sua completa incompreensão de todas as concepções orientais. A recíproca não é verdadeira: os orientais,quando têm a oportunidade e quando querem se dar esse trabalho, não têm a menor dificuldade em penetrar e compreender os conhecimentos especiais do Ocidente, por serem habituados a especulações muito mais vastas e profundas, e quem ê capaz de muito também é capaz de pouco. Porém, de maneira geral, eles não têm a menor tentação de se entregarem a esse tipo de trabalho, que poderia fazê-los perder de vista ou pelo menos se descuidar, em nome de coisas que lhes são insignificantes, do que é para eles o essencial. A ciência ocidental é análise e dispersão; o conhecimento oriental é síntese e concentração. Mas teremos a oportunidade de voltar a este assunto.
0 que quer que seja, o que os ocidentais chamam de civilização seria pelos outros chamado de barbárie, porque lhe falta precisamente o essencial, que é um princípio de ordem superior. Com que direito os ocidentais pretenderiam impor a todos sua própria escala de valores? E não deveriam esquecer, também, que são apenas uma minoria no conjunto da humanidade terrestre. E evidente que esta consideração numérica nada prova a nossos olhos, mas deveria causar certa impressão nas pessoas que inventaram o "sufrágio universal" e que crêem nos seus benefícios. Se eles ao menos se satisfizessem. em afirmar a superioridade imaginária que se atribuem, esta ilusão prejudicaria apenas a eles próprios. Mas o que é mais terrível é seu furor de proselitismo: neles o espírito de conquista se disfarça sob pretextos "moralistas", e ê em nome da "liberdade" que desejam constranger o mundo inteiro a imita-los! 0 mais espantoso é que, em sua arrogância, imaginam sinceramente que gozam de "prestígio" junto a todos os outros povos. Por serem temidos, como a uma força brutal, crêem ser admirados; um homem sob a ameaça de ser esmagado por uma avalanche torna-se por isto cheio de respeito e admiração? A impressão causada sobre os orientais em geral pelas invenções mecânicas, por exemplo, é uma impressão de profunda repulsa. Tudo isto lhes parece certamente mais prejudicial que vantajoso, e se eles se vêem obrigados a aceitar certas necessidades da época atual é porque têm a esperança de se livrarem delas algum dia; isto não lhes ' interessa e na verdade jamais lhes interessará. 0 que os ocidentais chamam de progresso, para os orientais é apenas mudança e instabilidade; e a necessidade de mudança, tão característica da época moderna, é para eles um sinal de inferioridade manifesta: aquele que alcançou um estado de equilíbrio não sente mais esta necessidade, da mesma forma que aquele que sabe não procura mais. Nestas condições um entendimento é com certeza bem difícil, pois os mesmos fatos recebem, de cada uma das partes, interpretações diametralmente opostas. O que aconteceria se os orientais também quisessem , a exemplo dos ocidentais, e através dos mesmos meios por eles usados, impor seus pontos de vista? Tranqui1izem-se, porém: nada é mais contrário a sua natureza que a propaganda, e estas preocupações lhes são perfeitamente estranhas. Sem pregar a "liberdade", deixam os outros pensarem o que quiserem, e mesmo o que deles se pensa lhes é totalmente indiferente. Tudo o que pedem , no fundo, é que os deixem tranqüilos. Mas é isto que se recusam a admitir os ocidentais, que foram até lá onde eles se encontram - é preciso não esquecer - e se comportaram de uma maneira tal que confere até aos homens mais pacíficos o pleno direito de se exasperarem. Encontramo-nos, assim, diante de uma situação de fato, que não poderia durar indefinidamente. Existe apenas um meio para os ocidentais se tornarem suportáveis: na linguagem habitual da política colonial, devem renunciar a "assimilação" e praticar a "associação", e isto em todos os domínios. Só isto já exige uma certa modificação de sua mentalidade, assim como a compreensão de pelo menos algumas das idéias que aqui expomos.