Capa do livro

Prefácio e primeiro capítulo do livro
"Oriente e Ocidente"

René Guénon : "Orient et Occident", Editions Vêga, Paris, 1983.
Ao lado, capa da primeira edição francesa pela editora Payot, Paris, 1924.

Rudyard Kipling escreveu um dia estas palavras: “East is East and West is West, and never the twain shall meet” (“Oriente é Oriente e Ocidente é Ocidente e ambos jamais se encontrarão”). É verdade que na continuação do texto ele modifica esta afirmação, ao admitir que “a diferença desaparece no momento em que dois homens fortes se encontram face a face vindos da extremidade da terra”(1). No entanto, de fato, nem mesmo esta modificação deixa a frase satisfatória, pois é pouco provável que ele tenha imaginado tal “força” como sendo de ordem espiritual. De qualquer modo, costuma-se citar o primeiro verso isoladamente, como se tudo o que ficasse na mente do leitor fosse a idéia da diferença intransponível expressa nesses versos. Não duvidamos que esta idéia represente a opinião da maioria dos europeus e sentimos a transpassá-la todo o desprezo do conquistador que é obrigado a admitir que aqueles que acredita ter vencido e dominado tragam consigo alguma coisa cujo controle lhe escapa inteiramente. No entanto, qualquer que seja o sentimento que tenha originado tal opinião, o que nos interessa acima de tudo é saber se ela tem fundamento ou até que ponto o tem. É certo que a considerar o atual estado de coisas, encontramos numerosos indícios que parecem justificá-la. No entanto, se fôssemos compartilhar totalmente tal opinião, se pensássemos que nenhuma aproximação fosse jamais possível, não teríamos escrito este livro.

Temos consciência, talvez mais que qualquer outro, de toda a distância que separa o Oriente do Ocidente, sobretudo do Ocidente moderno; aliás, em nossa Introdução Geral aos Estudos das Doutrinas Hindus, insistimos particularmente sobre as diferenças, a tal ponto que alguns poderão ter acreditado em certo exagero de nossa parte. Não obstante, estamos persuadidos de que não dissemos nada que não fosse rigorosamente exato e ao mesmo tempo consideramos, em nossa conclusão, as condições para uma aproximação intelectual que, embora provavelmente bem longínqua, não nos parece impossível.Se então nos erguíamos contra as falsas assimilações tentadas por certos ocidentais é porque se encontram entre os grandes obstáculos que se opõem a esta aproximação; quando se parte de uma concepção errônea, muitas vezes os resultados se opõem ao objetivo proposto. A recusa em ver as coisas como elas são e em reconhecer certas diferenças atualmente irredutíveis condena o indivíduo a nada compreender da mentalidade oriental; deste modo ele só agrava e perpetua os mal-entendidos, enquanto que todos os esforços deveriam ser empreendidos no sentido de os dissipar. Enquanto os ocidentais imaginarem que existe apenas um tipo de humanidade, que somente há uma “civilização” em graus diversos de desenvolvimento, nenhum acordo será possível.

A verdade é que existem múltiplas civilizações a desenvolverem-se em rumos muito diversos e que a do ocidente moderno apresenta características que a tornam uma exceção muito particular. Não se deveria jamais falar em superioridade ou inferioridade de modo absoluto, sem precisar sob que aspectos estão sendo abordados os elementos que se quer comparar isto, claro, se admitirmos que eles sejam de fato comparáveis. Não existe uma civilização de sejam superior à outra sob todos os aspectos porque é impossível ao homem exercer suas atividade de modo igual e ao mesmo tempo em todas as direções – e também porque há desenvolvimentos que se apresentam como verdadeiramente incompatíveis. Pode-se apenas observar que há uma certa hierarquia a ser observada e que as coisas intelectuais valem mais que aquelas de ordem material; deste modo, uma civilização que se mostre inferior sob o primeiro aspecto mesmo sendo incontestavelmente superior sob o segundo, encontrar-se-á, no conjunto, em desvantagem, quaisquer que sejam as aparências exteriores. Tal é o caso da civilização ocidental numa comparação com as civilizações orientais. Bem sabemos que esta maneira de ver choca a grande maioria dos Ocidentais, por ser contrária a todos os seus preconceitos. No entanto considerações de superioridade à parte, que eles ao menos admitam que as coisas às quais atribuem a maior importância não interessam forçosamente a todos os homens no mesmo grau; que alguns podem até mesmo considerá-las perfeitamente supérfluas - e que se pode demonstrar inteligência de outros modos que não necessariamente a construção de máquinas. Seria já alguma coisa conquistada se os europeus conseguissem compreendê-lo e agissem de acordo; suas relações com os outros povos seriam a partir de então bastante modificadas - e de modo muito vantajoso para todo o mundo.

No entanto, este é o lado mais exterior da questão: se os ocidentais reconhecessem que nem tudo deve ser necessariamente desdenhado nas outras civilizações pela simples razão de diferirem da sua, nada mais os impediria de estudar estas civilizações tal como devem ser, sem a intenção prévia de as denegrir e sem hostilidade.Quem sabe então alguns dentre eles logo se apercebessem, através deste estudo, de tudo aquilo que lhes falta, sobretudo do ponto de vista puramente intelectual. Naturalmente, supomos, conseguiriam, pelo menos até certo ponto, chegar à compreensão verdadeira do espírito das diferentes civilizações, o que requer muito mais que um simples trabalho de erudição. Sem dúvida, nem todos são capazes de tal compreensão. Porém, se alguns o forem, como é provável apesar de tudo, já seria o bastante para que se produzissem, mais cedo ou mais tarde, resultados inestimáveis. Já fizemos alusão ao papel que poderia desempenhar uma elite intelectual, se chegasse a se constituir no mundo ocidental, onde agiria como um “fermento” para preparar e dirigir, no sentido mais favorável uma transformação mental que se tornaria inevitável mais dia menos dia, queiramo-lo ou não. Alguns, aliás, já começam a sentir um tanto confusamente que as coisas não podem continuar a caminhar indefinidamente no mesmo rumo e falam na possibilidade de uma “falência” da civilização ocidental, coisa que ninguém teria ousado fazer há poucos anos atrás. Mas as verdadeiras causas que podem provocar esta falência parece que ainda lhes escapam em grande parte. Como estas causas são também precisamente aquelas que impedem qualquer acordo entre Oriente e Ocidente, pode-se retirar de seu conhecimento duplo benefício: trabalhar no preparo deste acordo significa também se empenhar no sentido de afastar as catástrofes de que está ameaçado o Ocidente por causas de seus próprios erros; estas duas causas têm uma inter-relação muito mais próxima do que se poderia crer. Não se trata, portanto, apenas de uma crítica vã e puramente negativa a denúncia a que aqui basicamente nos propomos, relativa aos erros e às ilusões ocidentais. Existem razões profundas para esta atitude e não alimentamos nenhuma intenção “satírica” o que, aliás, seria muito pouco condizente com nosso caráter. Se existem alguns que acreditaram terem visto algo deste tipo em nós, se enganaram completamente. Muito preferiríamos, de nossa parte, não termos que nos lançar a este ingrato trabalho e poder nos contentar em expor certas verdades sem ter nunca que nos preocupar com as falsas interpretações que apenas complicam e embrulham as questões como de propósito e com prazer; no entanto, precisamos levar em conta estas contingência pois, se não começarmos pela limpeza do terreno, tudo o que possamos dizer corre o risco de permanecer incompreendido. De resto, mesmo ali onde possa parecer que estejamos só a afastar erros ou a responder a objeções, podemos ter a oportunidade de expor idéias de alcance verdadeiramente positivo e, por exemplo, mostrar por que certas tentativas de aproximação entre Oriente e Ocidente fracassaram não será já fazer entrever, por contraste, as condições que poderiam contribuir para o sucesso de tal empreendimento? Esperamos, então, que nossas intenções não sejam mal entendidas e, se não procuramos dissimular as dificuldades e os obstáculos e mesmo, ao contrário, insistimos sobre eles é porque, para aplainá-los ou ultrapassá-los é preciso antes de tudo conhecê-los. Não podemos nos deter em questões muito secundárias, nos perguntando o que poderá agradar ou não a cada um; a questão que abordamos é muito séria mesmo se nos limitarmos ao que podemos chamar de seus aspectos exteriores, quer dizer, ao que não concerne à intelectualidade pura.

Não pretendemos aqui fazer uma exposição doutrinal e o que diremos será, de modo geral, mais acessível do que os pontos de vista por nós tratados em nossa Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus. Por outro lado, esta obra não foi escrita para alguns “especialistas”; se alguns foram induzidos a este erro pelo do título é porque de fato estas questões têm sido habitualmente o apanágio dos eruditos, que as estudam com uma atitude de superioridade e, a nosso ver, sem interesse verdadeiro. Nossa postura é completamente diferente: trata-se essencialmente não de erudição, mas de compreensão, o que é totalmente diferente; não é de modo algum entre os “especialistas” que há maiores chances de uma compreensão extensa e profunda, longe disto e, salvo raríssimas exceções, não é com eles que se poderia contar para a formação dessa elite intelectual de que falamos há pouco. Talvez alguns condenem nosso ataque à erudição ou a seus perigos e abusos, se bem que tenhamos cuidadosamente evitado tudo que pudesse apresentar um caráter polêmico; mas uma das razões pelas quais o fizemos é precisamente porque esta erudição, com seus métodos especiais, tem o efeito de desviar de certos pontos aqueles mesmos que seriam os mais capazes de os compreender. Muitos, vendo que se trata das doutrinas hindus e pensando logo nos trabalhos de alguns orientalistas, acham que “isso não é para eles”. Ora alguns destes certamente cometem um grande erro ao pensarem assim e bastar-lhes-ia pouco esforço, talvez, para adquirirem conhecimentos que faltam e faltarão sempre a estes mesmos orientalistas: uma coisa é a erudição e outra o saber real e, se não são sempre incompatíveis, não são de todo necessariamente solidários. É certo que, se a erudição consentisse em permanecer no papel de auxiliar – o que lhe deveria caber em condições normais – não teríamos reparos a fazer, uma vez que com isto ela deixaria de ser perigosa, podendo até ser de alguma utilidade. Dentro destes limites, reconheceríamos de bom grado seu valor relativo. Há casos em que o “método histórico” é legítimo, mas o erro que combatemos é o de crer que seja aplicável a tudo e a querer tirar dele mais do que de fato possa produzir. Acreditamos já ter demonstrado (2) - e sem cairmos em contradição- que somos capazes, quando se fizer necessário, de aplicar este método tão bem quanto qualquer outro e isto deveria ser prova suficiente de que não temos qualquer preconceito. Cada assunto deve ser tratado de acordo com o método que convém à sua natureza. É um fenômeno singular essa confusão de diversas ordens e domínios cujo espetáculo nos proporciona habitualmente o Ocidente atual. Em suma, é preciso saber colocar cada coisa em seu devido lugar e jamais dissemos algo diferente disso; assim procedendo, percebe-se forçosamente que há coisas que não poder deixar de ser secundárias e subordinadas em relação às outras, a despeito das manias “igualitárias” de alguns de nossos contemporâneos. Assim é que a erudição, mesmo quando é valiosa, constituiria sempre para nós um meio não sendo jamais um fim em si própria.

Estas poucas explicações nos pareceram necessárias por várias razões: em primeiro lugar, pretendemos dizer o que pensamos de um modo tão claro quanto nos seja possível e cortar pela raiz todo mal-entendido que possa surgir apesar de nossas precauções, coisa que é mais ou menos inevitável.Ainda que reconhecendo em geral a clareza de nossas exposições, atribuíram-nos às vezes intenções que jamais tivemos; teremos aqui a oportunidade de dissipar alguns equívocos e de precisar certos pontos sobre os quais talvez não tenhamos nos explicado suficientemente. Por outro lado, a diversidade dos assuntos que tratamos em nossos estudos não impede a unidade de concepção de os preside e desejamos afirmar também expressamente esta unidade, que poderia não ser percebida pelas pessoas que consideram as coisas muito superficialmente. Estes estudos são mesmo de tal forma ligados entre si que, com relação a um grande número de pontos que aqui abordaremos, tivemos a necessidade, por motivo de maior precisão, de remeter a indicações complementares que se encontram em outros de nossos trabalhos; mas nós só o fizemos onde nos pareceu estritamente indispensável e, para todo o resto, contentar-nos-emos com esta advertência feita apenas uma vez e de maneira geral, a fm de não importunar o leitor com referências por demais numerosas; Dentro da mesma ordem de idéias devemos ainda observar que quando não julgamos pertinente dar à expressão de nosso pensamento uma feição propriamente doutrinal, não é porque tenhamos deixado de nos inspirar constantemente nas doutrinas cuja verdade compreendemos; é o estudo das doutrinas orientais que nos fez ver os erros do Ocidente e a falsidade de inúmeras idéias em curso no mundo moderno; é lá, e apenas lá que encontramos, como já tivemos oportunidade dizê-lo aquilo que o Ocidente jamais nos ofereceu o mais longínquo equivalente.

Neste trabalho, da mesma forma de nos outros, não temos de nenhum modo a pretensão de esgotar todas as questões que seremos levados a abordar; não podemos ao que nos parece, ser acusados de não colocar tudo em só livro o que, aliás nos seria inteiramente impossível. O que aqui apenas citaremos talvez possamos retomar e explicar mais completamente em outra parte, se nos permitirem as circunstâncias; se não, servirá ao menos para sugerir a outras reflexões que complementarão, de maneira para eles muito proveitosa, os desenvolvimentos que nós mesmos não tenhamos podido realizar. Às vezes há pontos a que é interessante se fazer referência, mesmo quando não é possível comentá-los mais extensamente e não pensamos que seja preferível relegá-los inteiramente ao silêncio; porém, conhecendo a mentalidade de certas pessoas, sentimo-nos do dever de advertir que nada se deve ver aí de extraordinário. Sabemos muito bem o que valem os ditos “mistérios” de que tanto se abusou em nossa época, e que somente o são devido ao fato de que aqueles que deles falam são os primeiras a disso nada compreenderem; o único mistério verdadeiro é aquele que é inexprimível por sua própria natureza. Não queremos pretender, entretanto, que toda verdade seja dita e que não haja casos em que uma certa reserva se imponha por uma questão de oportunidade, ou coisas cuja exposição ao público seria mais perigosa do que útil; no entanto, isto acontece somente em certas ordens de conhecimento, em suma bastante restritas e, aliás, se nos acontece às vezes fazer alusão a coisas deste gênero (3), não nos furtamos a declarar formalmente do que se trata, sem jamais usar a intervenção de qualquer destas proibições quiméricas que os escritores de algumas escolas colocam em evidência sob qualquer pretexto, seja para provocar a curiosidade se seus leitores, seja para ocultar seu próprio embaraço. Tais artifícios nos são inteiramente estranhos, assim como as ficções puramente literárias; nos propomos simplesmente a dizer tudo o que pensamos na medida em que o conhecemos e tal como o conhecemos.Não podemos dizer tudo o que pensamos, pois isto nos arrastaria muitas vezes longe de nosso assunto e também porque o pensamento ultrapassa sempre os limites da expressão em que o queremos encerrar; porém sempre dizemos apenas o que realmente pensamos. É por isso que não poderíamos admitir que distorçam nossas intenções, que nos façam dizer coisas diferentes do que dizemos, ou que busquem descobrir, por trás do que dizemos sabe-se lá que pensamento dissimulado ou disfarçado, o que é completamente imaginário.Em contrapartida, seremos sempre gratos àqueles que nos assinalarem os pontos sobre os quais lhes parece desejável obter esclarecimentos mais amplos e nós nos empenharemos em satisfaze-los em seguida; mas que aguardem que tenhamos a possibilidade de o fazer, que não se apressem a tirar conclusões de dados insuficientes e, sobretudo, que se abstenham de responsabilizar qualquer doutrina pelas imperfeições ou lacunas de nossa exposição.

Notas:

(1) Na primeira edição (1924, Payot, Paris), Guénon prosseguia o parágrafo nestes termos: “Podemos notar nesta simples frase todo desprezo do conquistador que se dá conta de que aqueles que acredita haver vencido e submetido trazem alguma coisa que lhe escapa ao controle. –Por quais circunstâncias o campeão do imperialismo britânico na Índia chegou a deixar escapar tal confissão de impotência e desencorajamento? Talvez seria preciso ver nisto o eco de alguma desventura pessoal, mas isto pouco nos importa e o que nos interessa bem mais é saber se ele disse a verdade. Seguramente, a considerar o estado atual das coisas, somos forçosamente tentados a lhe dar razão; no entanto, se fôssemos compartilhar totalmente tal opinião, se pensássemos que nenhuma aproximação fosse jamais possível, não teríamos escrito este livro”.
Guénon julgou melhor modificar este trecho nas edições posteriores; mais tarde (1948), acrescentou um adendo, com considerações atualizadas sobre o agravamento da situação mundial.

(2)“O Teosofismo, a estória de uma pseudo-religião”.

(3) Isto nos aconteceu, de fato, várias vezes em nossa obra sobre O Erro Espírita, a propósito de certas pesquisas experimentais cujo interesse não nos parece compensar seus inconvenientes – mas cuja possibilidade a preocupação com a verdade nos obrigava a indicar.

PRIMEIRA PARTE: ILUSÕES OCIDENTAIS

CAPÍTULO PRIMEIRO: CIVILIZAÇÃO E PROGRESSO

A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: dentre todas aquelas que conhecemos mais ou menos completamente, esta civilização e a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e este desenvolvimento monstruoso, cujo início coincide com o que se convencionou chamar Renascimento, foi acompanhado, como fatalmente o deveria ser, por uma correspondente regressão intelectual; não dizemos equivalente, pois se trata de duas ordens de coisas entre as quais não poderia haver qualquer medida em comum. Esta regressão chegou a tal ponto que os Ocidentais de hoje não sabem mais o que possa ser a intelectualidade pura, e nem mesmo suspeitam de que possa haver algo semelhante.

Resulta disto seu desprezo, não apenas pelas civilizações orientais, mas até pela idade média européia, cujo espírito igualmente lhes escapa por completo. Como explicar o interesse de um conhecimento totalmente especulativo a pessoas para as quais a inteligência é somente um meio de se agir sobre a matéria e de sujeitá-la com finalidades práticas, e para quem a ciência, no sentido restrito pelo qual a entendem, vale especialmente na medida em que conduz a aplicações industriais? Nada exageramos: basta um olhar a volta para compreendermos que ê esta a mentalidade da imensa maioria de nossos contemporâneos. E um exame da filosofia a partir de Bacon e Descartes iria apenas confirmar estas constatações. Lembraremos somente que Descartes limitou a inteligência à razão, que atribuiu um único papel aquilo que acreditava poder chamar de metafísica: o de servir de fundamento ã física, estando esta destinada, segundo seu pensamento, a preparar a constituição das ciências aplicadas - mecânica, medicina e moral - fim último do saber humano tal como ele o concebia. Não seriam já as tendências que ele assim afirmava as mesmas que caracterizam â primeira vista todo o desenvolvimento do mundo moderno? Negar ou ignorar todo conhecimento puro e supra-racional era abrir o caminho que dever ia conduzir logicamente, por um lado ao positivismo e ao agnosticisrno, que se fundamentam nas mais estreitas limitações da inteligência e de seu objeto e, por outro lado, a todas as teorias sentimentalistas e voluntaristas, que se empenham em procurar no infra-racional aquilo que a razão não lhes pode dar.

Na realidade, aqueles que hoje em dia querem reagir contra o racionalismo também aceitam sua identificação da totalidade da inteligência com a razão, e crêem que ela ê apenas uma faculdade prática, incapaz de sair do domínio da matéria. Bergson escreveu textualmente o seguinte: "A inteligência, considerada no que parece ser seu procedimento original, é a faculdade de fabricar objetos artificiais, particularmente ferramentas de fazer ferramentas (sic) e de variar indefinidamente sua fabricação" (1) . E ainda: "A inteligência, mesmo quando não mais opera sobre a matéria bruta, segue os hábitos adquiridos nesta operação: aplica formas que são as mesmas da matéria inorganizada. Ela ê feita para este tipo de trabalho. Por si só, este tipo de trabalho lhe satisfaz plenamente. E é o que ela exprime dizendo que somente assim atinge a distinção e a clareza" (2)

Por estes últimos indícios pode-se reconhecer sem esforço que não é a inteligência mesmo que está em causa, porém apenas a concepção cartesiana de inteligência, o que ê bem diferente. E a superstição da razão , a "filosofia nova", no dizer dos que a ela aderiram, vai substituí-la por outra ainda mais grosseira, sob certos aspectos - a superstição da vida. 0 racionalismo, impotente para elevar-se até a verdade absoluta, ao menos deixava subsistir a verdade relativa. 0 intuicionismo contemporâneo rebaixa esta verdade a ponto de não ser senão uma representação da realidade sensível, em tudo o que ela tem de inconsistente e de incessantemente mutável. Enfim, o pragmatismo termina por fazer desaparecer a própria noção de verdade ao identificá-la à noção de utilidade, o que resulta em suprimi-la pura e simplesmente. Se esquematizamos um pouco as coisas, de modo algum as desfiguramos e, quaisquer que possam ter sido as fases intermediárias, as tendências fundamentais são exatamente aquelas que acabamos de descrever. Os pragmatistas, indo até o fim, mostram-se os mais autênticos representantes do pensamento ocidental moderno : o que importa a verdade em um mundo cujas aspirações, por serem unicamente materiais e sentimentais, e não intelectuais, encontram satisfação completa na indústria e na moral, domínios em que é bem possível abster-se de conceber a verdade? Sem dúvida não se chegou de uma só feita a tais extremos, e muitos europeus irão protestar que ainda não chegaram a tanto. Mas aqui pensamos especialmente nos americanos, que já se encontram em uma fase mais "avançada" , se é que podemos dizê-lo, da mesma civilização. Mentalmente, assim como geograficamente, a América atual é verdadeiramente o "Extremo Ocidente". E a Europa a seguirá, sem dúvida alguma, se nada vier a impedir o curso das conseqüências que acarretará o presente estado de coisas.

Mas o que há, talvez, de mais extraordinário, é a pretensão de fazer desta civi1ização anormal o modelo de todas as civilizações, de tomá-la como "a civilização" por excelência, até como a única merecedora de tal nome. É também, como complemento desta ilusão, a crença no "progresso", considerado de maneira igualmente absoluta, e identificado naturalmente, em sua essência, com o desenvolvimento material que absorve toda a atividade do ocidental moderno . £ curioso constatar como certas idéias- conseguem rapidamente disseminar-se e impor-se, mesmo correspondendo pouco, e evidente, às tendências gerais de um meio e de uma época. É o caso das idéias de "civilização" e de "progresso" , que tanta gente acredita serem universais e necessárias, quando, na realidade, foram de invenção bem recente, e quando ainda hoje pelo menos três quartas partes da humanidade persistem em ignora-las ou não as consideram em absoluto. Jacques Bamville (*) chama atenção para o fato de que "se o verbo civilizar pode já ser encontrado com o significado que hoje lhe atribuímos em bons autores do século XVIII','o substantivo civi1ização é encontrado apenas em textos dos economistas da época imediatamente precedente à Revolução. Littré (**) cita um exemplo tirado de Turgot (***) . Littre, que havia esmiuçado toda a nossa literatura, não conseguiu ir mais além. Assim, a palavra civilização não tem mais do que um século e meio de existência. Acabou entrando no dicionário da Academia em 1835, isto é, há pouco menos de cem anos... A Antigüidade, da qual ainda vivemos, também não possuía um termo para designar aquilo que chamamos civilização. Se esta palavra figurasse em uma versão para o latim, o jovem aluno se veria bem atrapalhado... A vida das palavras não é independente da vida das idéias. A palavra civilização, que a nossos'ancestrais não fazia falta, talvez porque possuíssem a própria coisa designada, disseminou-se no século XIX sob a influência de idéias novas. As descobertas científicas, o desenvolvimento da industria, do comércio, da prosperidade e do bem-estar criaram uma espécie de entusiasmo, e até de profetismo. A concepção do progresso indefinido, surgida na segunda metade do século XVIII, concorreu para convencer e espécie humana de que ela entrara em uma nova era, a da civilização absoluta. É devido a um prodigioso utopista, Fourier (****), hoje bastante esquecido, que se chama o período contemporâneo de civilização, e se confunde a civilização com a idade moderna... A civilização era, pois, o grau de desenvolvimento e de aperfeiçoamento a que chegaram as nações européias no século XIX. Este termo compreendido por todos, se bem que por ninguém definido, abarcava ao mesmo tempo o progresso material e o progresso moral, um trazendo o outro, ambos unidos e inseparáveis. A civilização era, em suma, a própria Europa, era um diploma que se conferia o mundo europeu" (3). Eis exatamente o que pensamos. Insistimos em fazer esta citação, apesar de longa, para demonstrar que não somos o único a pensar deste modo.

Assim, estas duas idéias de "civilização" e de "progresso" estreitamente associadas, datam apenas da segunda metade do século XVIII,quer dizer , da época que, entre outras coisas, viu nascer o materialismo (4), tão especialmente propagadas e popularizadas pelos sonhadores socialistas do início do século XIX. Deve-se convir que a história das idéias permite às vezes que se façam constatações assaz surpreendentes, e que se reduzem certas concepções imaginárias a seu devido valor; ela o permitiria de modo especial se fosse feita e estudada como o deve ser, se não fosse, como acontece, aliás, com a história, falsificada por interpretações tendenciosas, ou limitada a obras de simples erudição, a pesquisas insignificantes sobre meros detalhes.

A verdadeira história pode ser perigosa para certos interesses políticos e cabe questionar se não será por esta razão que certos métodos, neste domínio, são oficialmente impostos com a exclusão de qualquer outro. Conscientemente, ou não, afasta-se a priori tudo o que permitiria uma visão clara sobre vários pontos, e é assim que se forma a "opinião pública". Voltemos, porém, às duas idéias de que há pouco falávamos e esclareçamos que, atribuindo-lhe uma origem tão próxima, temos em vista unicamente esta acepção absoluta, e para nós ilusória, que é a que se lhes é dada mais comumente hoje em dia. Já o sentido relativo que podem ter estas mesmas palavras é uma outra questão e, como este sentido é legítimo este sentido é legítimo, pode-se dizer que se trata, neste caso, de idéias que nasceram em um determinado momento. Pouco importa que tenham sido expressas desta ou daquela maneira e, se um termo é adequado, não será pelo fato de ter criação recente que vejamos inconveniente em seu emprego. Assim, sentimo-nos muito â vontade ao dizermos que existem múltiplas e diversas "civilizações". Seria muito difícil definir exatamente este conjunto de elementos de diferentes ordens que constituem o que se chama de uma civilização. No entanto, todos sabem muito bem o que se entende por isto. Não pensamos que seria necessário tentar encerrar em uma fórmula rígida as características gerais de todas as civilizações, ou então as características particulares de uma determinada civilização. Este é um processo um tanto artificial, e muito duvidamos desses enquadramentos estreitos que tanto agradam ao espírito sistemático. Assim como há "civilizações", há também, no decorrer do desenvolvimento de cada uma, ou de certos períodos mais ou menos restritos desse desenvolvimento, "progressos" relativos não ao todo indistintamente, mas a tal ou qual domínio definido. Esta é apenas, em suma, outra maneira de dizer que uma civilização se desenvolve em um certo sentido, em uma certa direção. Mas, assim como há progressos, há também regressões, e às vezes até acontecem ambos simultaneamente em domínios diferentes. Logo, insistimos, tudo isto é eminentemente relativo. Se as mesmas palavras forem tomadas em um sentido absoluto, deixam de corresponder a qualquer realidade, e é justamente então que representam estas idéias novas em curso há menos de dois séculos, e apenas no Ocidente. Claro está que "o Progresso” e “a Civilização", com letra maiúscula, fazem um efeito excelente em certas frases vazias e declamatórias, feitas para impressionar as multidões para quem as palavras servem menos para exprimir pensamentos do que para preencher sua ausência. Sob este aspecto, desempenham um papel dos mais importantes no arsenal das fórmulas de que se servem os "dirigentes" contemporâneos para desempenhar o trabalho singular de sugestão coletiva, sem o qual a mentalidade especificamente moderna não poderia subsistir por muito tempo. A este respeito acreditamos não se ter dado a devida atenção à analogia evidente entre a ação do orador, especialmente, e a do hipnotizador (a do domador também pertence a tal ordem). Fazemos menção e passamos este tópico de estudos à atenção dos psicólogos. Não há dúvida de que o poder das palavras já foi exercido em maior ou menor escala em outros tempos também. Mas algo de que não se tem exemplo é esta gigantesca alucinação coletiva através da qual uma parte da humanidade foi levada a tomar as mais vãs quimeras como realidades incontestáveis. E dentre estes ídolos do espírito moderno, aquelas que ora denunciamos são talvez as mais perniciosas de todas.

Devemos voltar ainda à gênese da idéia de progresso, isto é, da idéia de progresso indefinido, excluindo progressos especiais e limitados, cuja existência de modo algum pretendemos contestar. É provavelmente em Pascal que podemos achar o primeiro traço desta idéia, aplicada, aliás, a um só ponto de vista: é bem conhecido o trecho (5) em que ele compara a humanidade a "um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente no decorrer dos séculos", e onde ele dá mostras desse espírito anti-tradicional que é uma das particularidades do Ocidente moderno, quando declara que "aqueles que chamamos antigos eram na verdade novos sob todos os aspectos(*****), e que assim suas opiniões têm muito pouco peso. A este respeito Pascal teve pelo menos um precursor, pois Bacon já havia dito com a mesma intenção: Antiquitas saeculi, juventus mundi(******). É fácil ver o sofisma inconsciente em que se baseia tal concepção: este sofisma consiste em supor que a humanidade como um todo segue um desenvolvimento contínuo e unilinear. Esta é uma visão eminentemente "simplista", que contradiz todos os fatos conhecidos. Com efeito, a história nos mostra, em todas as épocas, civilizações independentes umas das outras, muitas vezes até divergentes; enquanto umas nascem e se desenvolvem, outras entram em decadência e morrem, ou são aniquiladas bruscamente por algum cataclismo; e as civilizações novas nem sempre aproveitam a herança das antigas. Quem ousaria sustentar seriamente, por exemplo, que os ocidentais modernos fizeram uso, mesmo indiretamente, da maioria dos conhecimentos acumulados pelos caldeus ou pelos egípcios, sem falar nas civilizações das quais nem mesmo o nome chegou até nós? De resto, nem é necessário descer a um passado tão remoto, quando existem ciências que eram cultivadas na idade média européia e das quais não se tem mais hoje a menor idéia. Se se quer conservar a representação do "homem coletivo" que Pascal considera (e a quem chama com muita impropriedade de "homem universal"), será necessário, então, dizer que, se há períodos em que ele aprende, há outros em que ele esquece, ou então, que enquanto ele aprende certas coisas, esquece outras. Mas a realidade é ainda mais complexa, pois há simultaneamente, como sempre houve, civi1izações que não se penetram, que se ignoram mutuamente: tal é, hoje mais que nunca, a situação da civilização ocidental com relação às civilizações orientais. No fundo, a origem da ilusão expressa por Pascal é simplesmente a seguinte: os ocidentais, a partir do Renascimento, adquiriram o hábito de se considerarem os exclusivos herdeiros e continuadores da Antigüidade greco-romana, desconhecendo ou sistematicamente ignorando todo o resto. É o que chamamos de "preconceito clássico". A humanidade de que fala Pascal começa nos gregos e continua com os romanos. Depois sua existência passa por uma descontinuidade correspondente à idade média, na qual ele apenas pôde ver, como todos os do século XVII, um período de adormecimento. Vem, enfim, o Renascimento, isto é, o despertar dessa humanidade que, a partir desse momento, será composta pelo conjunto dos povos europeus. É um erro estapafúrdio e que denota um horizonte mental singularmente limitado, esse de tomar desta forma a parte pelo todo. Sua influência pode ser encontrada em mais de um domínio: os psicólogos, por exemplo, comumente limitam suas observações a um só tipo de humanidade - o ocidental moderno - e estendem abusivamente os resultados assim obtidos a ponto de pretenderem tomá-los, sem exceção, como características do homem em geral.

É essencial notar que Pascal ainda considerava apenas um progresso intelectual, dentro dos limites em que ele próprio e sua época concebiam a intelectualidade. Foi no fim do século XVIII que apareceu, com Turgot e Condorcet, a idéia de progresso estendida a todas as ordens de atividade, E esta idéia estava ainda tão longe de uma aceitação geral que Voltaire apressou-se a ridicularizá-la. Não podemos pretender fazer aqui a história completa das diversas modificações por que passou esta idéia no decorrer do século XIX, e das complicações pseudocientíficas a ela acrescentadas quando, sob o nome de "evolução", desejou-se aplicá-la não apenas à humanidade, mas a todo o conjunto dos seres vivos. 0 evolucionismo, apesar de muitas divergências mais ou menos importantes, tornou-se um dogma oficial: ensina-se como uma lei, a qual é proibido discutir, algo que na realidade não passa da mais gratuita e mais mal fundamentada de todas as hipóteses. Por motivos ainda mais fortes o mesmo se passa com a concepção do progresso humano, que dentro dela aparece como sendo um simples caso particular. Antes de se chegar a este ponto, porém, houve muitas vicissitudes. Entre os próprios partidários do progresso alguns houve que não puderam se furtar a formular reservas bastante sérias: Auguste Comte, que começara sendo um discípulo de Saint-Simon, admitia um progresso indefinido quanto à duração, mas não quanto à extensão. Para ele, a marcha da humanidade poderia ser representada por uma curva com uma assíntota da qual se aproxima indefinidamente sem jamais atingi-la. De modo que a amplitude do progresso possível, isto é, a distância entre o estado atual e o estado ideal, representada pela distância entre a curva e a assíntota, decresce sempre. Nada mais fácil do que demonstrar as confusões sobre as quais repousa a teoria fantasista que recebeu de Comte o nome de "lei dos três estados". A principal destas consiste em supor que o único objeto de todo conhecimento possível é a explicação dos fenômenos naturais. Como Bacon e Pascal, ele comparava os antigos a crianças, enquanto que outros, em época mais recente, preferiram assimilá-los aos selvagens, por eles denominados "primitivos". De nossa parte, porém, pelo contrário, é a eles próprios que. vemos como degenerados (6) . Por outro lado, alguns, não conseguindo deixar de constatar a existência de altos e baixos naquilo que conhecem como sendo a história da humanidade, chegaram a falar em um "ritmo do progresso". Talvez fosse mais simples e mais lógico, nessas condições, não falarem mais em progresso de modo algum. Porém, como é preciso salvaguardar a qualquer preço o dogma moderno, supõe-se que "o progresso" exista até mesmo como resultante final de todos os progressos parciais e de todas as regressões. Estas restrições e discordâncias deveriam dar o que pensar. Muito poucos, todavia, parecem disto se aperceber. As diferentes escolas não conseguem chegar a um acordo, mas todas entendem que se deve admitir o progresso e a evolução, sem o que provavelmente não se poderia ter direito à qualidade de "civilizado".

Existe ainda um outro ponto digno de nota. Ao pesquisarem-se, dentre as divisões do pretenso progresso, quais são as que estão hoje em dia mais em foco, aquelas a que todas as outras se reportam no pensamento de nossos contemporâneos, notar-se-á que se reduzem a apenas duas: o "progresso material" e o "progresso moral". São as únicas que Jacques Bainville mencionou como incluídas na idéia corrente de "civilização" - e com razão, aliás, a nosso ver. Sem dúvida alguns ainda falam bastante de "progresso intelectual" Para eles, porém, esta expressão ê essencialmente um sinônimo de "progresso científico", e aplica-se especialmente ao desenvolvimento das ciências experimentais e suas aplicações. Vê-se, pois aqui reaparecer essa degradação da inteligência que acaba por identificá-la com o mais restrito e inferior de seus empregos: a ação sobre a matéria visando unicamente a utilidade pratica. 0 chamado "progresso intelectual" definitivamente não é senão o próprio "progresso material" e, se a inteligência fosse apenas isto, seria preciso aceitar a definição que lhe dá Bergson. A bem da verdade, a maioria dos Ocidentais atuais não concebe a inteligência de outro modo. Para eles, reduz-se, nem mesmo à razão, no sentido cartesiano, senão à mais ínfima parte dessa razão, a suas mais elementares operações, àquilo que está sempre estreitamente ligado ao mundo sensível, do qual fizeram seu único e. exclusivo campo de atividade. Para aqueles que sabem que existe algo mais e que persistem em dar às palavras seu verdadeiro significado, não é de "progresso intelectual" que se pode tratar em nossa época, senão, ao contrário, de decadência, ou melhor dizendo, de declínio intelectual. E, como há rumos de desenvolvimento incompatíveis entre si, é este, precisamente, o inconveniente do "progresso material", o único a existir de fato no decorrer dos últimos séculos. Progresso científico, se assim o quiserem, mas com uma acepção extremamente limitada, e progresso industrial mais ainda que científico. Desenvolvimento material e intelectualidade pura estão, na verdade, em sentido inverso. Quem se aprofunda em um deles afasta-se necessariamente do outro. Note-se bem, aliás, que aqui dizemos intelectualidade, e não racionalidade, pois o domínio da razão é apenas intermediário, de algum modo, entre o domínio dos sentidos e o do intelecto superior. Se a razão recebe um reflexo deste último, até quando o está a negar e a julgar-se a mais alta faculdade do ser humano, é sempre dos dados sensíveis que são extraídas as noções que ela elabora. Queremos dizer que o geral, objeto próprio da razão e por conseguinte da ciência, que é obra desta última, mesmo se não pertence ã ordem sensível, procede do individual, que é percebido pelos sentidos. Pode-se dizer que o geral está além do sensível , e não acima deste. O transcendente é apenas o universal, objeto do intelecto puro, diante do qual mesmo o geral reduz-se pura e simplesmente ao individual. Eis a distinção fundamental entre conhecimento metafísico e conhecimento científico, assim como já a expusemos mais amplamente (7). Se a trazemos aqui de novo, é porque a ausência total do primeiro e a expansão desordenada do segundo constituem as características mais marcantes da civilização ocidental em seu estado atual.

A concepção de "progresso moral", por sua vez, representa o outro elemento predominante da mentalidade moderna. Referimo-nos à sentimenta1idade. E a presença deste elemento de modo algum nos fará modificar o julgamento por nós formulado ao dizermos que a civilização ocidental é totalmente material. Bem sabemos que alguns querem opor o domínio do sentimento ao da matéria, tornando o desenvolvimento de um deles numa espécie de contrapeso a invasão do outro e tomar por ideal o equilíbrio mais estável que for possível entre esses dois elementos complementares. Talvez seja este, no fundo, c pensamento dos intuicionistas que, ao associarem indissoluvelmente inteligência e matéria, tentam uma saída com o auxílio de um instinto muito mal definido . Com mais certeza ainda, é este o pensamento dos pragmatistas, para quem a noção de utilidade, destinada a substituir a noção de verdade, apresenta-se ao mesmo tempo sob o aspecto material e sob o aspecto moral. Vemos ainda aqui até que ponto o pragmatismo exprime as tendências especiais do mundo moderno, especialmente do mundo anglo-saxão, que é sua fração mais típica. De fato , materialidade e sentimentalidade, longe de se oporem, não podem existir uma sem a outra, e ambas alcançam juntas seu desenvolvimento mais extremo. Disto, temos prova na América, onde, conforme tivemos oportunidade de assinalar em nossos estudos sobre o teosofismo e o espiritismo, as piores extravagâncias "pseudo-místicas" nascem e disseminam-se com incrível facilidade, ao mesmo tempo que o industrialismo e a paixão pelos "negócios" são levados a um grau que chega às raias da loucura. Neste estado de coisas, não é mais um equilíbrio que se estabelece entre as duas tendências. São dois desequilíbrios que se acrescentam e, ao invés de se compensarem, agravam-se mutuamente. A razão deste fenômeno é fácil de perceber: quando a intelectualidade reduz-se a um mínimo, é apenas natural que a sentimenta1idade tome a dianteira. Esta, alias, por sua própria natureza, está bem próxima à ordem material: não há nada em todo o domínio psicológico, que esteja mais estreitamente dependente do organismo e, apesar de Bergson, é o sentimento, e não a inteligência, que se nos apresenta como ligado à matéria. Bem sabemos a resposta que podem dar os intuicionistas: a inteligência, tal como a concebem, está ligada à matéria inorgânica (é sempre o mecanicismo cartesiano e seus derivados que eles tem em mente) e o sentimento à matéria viva, que lhes parece ocupar um lugar mais elevado na escala das existências. Inorgânica ou viva, porém, é sempre matéria, - e pertencente às coisas sensíveis. É decididamente impossível à mentalidade moderna e às filosofias que a representam superar esta limitação. A rigor, se sustentam que haja uma dualidade de tendências, será necessário relacionar uma delas à matéria e a outra à vida, distinção que de fato pode servir para classificar de maneira bem satisfatória as grandes superstições de nossa época. Entretanto, reafirmamos, são ambas pertencentes à mesma ordem e não se podem realmente dissociar; estão situadas em um mesmo plano, e não superpostas hierarquicamente. Assim, o "moralismo" de nossos contemporâneos é apenas o complemento necessário de seu materialismo prático . Seria perfeitamente ilusório querer exaltar um em detrimento do outro uma vez que, sendo necessariamente solidários, desenvolvem-se ambos simultaneamente e no mesmo sentido, que é aquele a que se convencionou chamar "civilização".

Acabamos de ver por que as concepções de "progresso material" e de "progresso moral" são inseparáveis, e por que a segunda ocupa, de maneira quase tão constante quanto a primeira, um espaço tão considerável nas preocupações de nossos contemporâneos. De modo algum contestamos a existência do "progresso material", apenas sua importância. Sustentamos que ele não vale as perdas que causa ao lado intelectual e que, por ser de outra opinião, obriga a ignorar totalmente a verdadeira intelectualidade. E o que se deve pensar, então, da realidade do "progresso moral"? Eis um ponto que não se pode discutir a sério, pois nesse domínio sentimental tudo não passa de uma questão de avaliação e de preferências individuais. Cada pessoa chamará de "proqresso" o que estiver em conformidade com suas próprias disposições e, em sumo, não há como dar razão a um ou a outro. Aqueles cujas tendências estão em harmonia com as de sua época só podem ficar satisfeitos com o presente estado de coisas. E é o que eles comunicam ã sua maneira quando dizem que esta época apresenta progresso com relação as precedentes. Muitas vezes, porém, esta satisfação de suas aspirações é apenas relativa, pois os acontecimentos não se desenrolam sempre ao sabor de seus desejos. £ por isto que supõem que o progresso continuara através das épocas futuras. Às vezes os fatos vêm trazer um desmentido aqueles que estão persuadidos da atual realidade do "progresso moral", segundo as concepções mais freqüentes que dele se fazem. Estes, porem, estão prontos a modificar suas idéias a esse respeito, ou então a remeter a um futuro mais ou menos longínquo a realização de seu ideal; poderiam resolver o problema, também, referindo-se a um "ritmo do progresso". Além disto, o que é ainda mais simples, eles geralmente se apressam a esquecer a lição da experiência. São assim esses sonhadores incorrigíveis que, a cada nova guerra, não deixam de profetizar que será a última. No fundo, a crença no progresso indefinido e apenas a mais ingênua e. a mais grosseira de todas as formas de "otimismo". Quaisquer que sejam suas modalidades é ela sempre sentimental em sua essência, mesmo quando se trata do "progresso material". Aqueles que objetarem termos nós mesmos reconhecido a existência deste último, responderemos que a reconhecemos apenas dentro dos limites em que os fatos no-la demonstram, e isto não significa que concordamos, de alguma forma , em que ele deva, ou mesmo possa prosseguir indefinidamente. De resto, como de todo não nos parece ser o que há de melhor no mundo, em vez de o chamar progresso, preferimos chamá-lo simplesmente desenvolvimento. O que incomoda nesta palavra progresso é a idéia de "valor" que ela traz quase que invariavelmente. Esta observação lembra outra: da mesma forma existe uma realidade que se dissimula sob o pretenso "progresso moral", ou, se preferirem, que alimenta essa ilusão. Esta realidade é o desenvolvimento da sentimentalidade que, questões de avaliação à parte, existe de fato no mundo moderno, tão incontestavelmente quanto o desenvolvimento da indústria e do comércio (e já dissemos por que um não existe sem o outro). Este desenvolvimento, a nosso ver excessivo e anormal, não pode deixar de aparecer como um progresso para os que colocam a sentimentalidade acima de tudo. E talvez digam que, falando em simples preferências como há pouco o fazíamos, tiramo-nos já o direito de apontar-lhes o erro. Mas não é nada disto: o que então dizíamos aplica-se ao sentimento, em suas variações de indivíduo para indivíduo. Quando se trata de colocar o sentimento, considerado genericamente, em seu devido lugar relação a inteligência já é algo bem diverso, pois há uma hierarquia a se observar. O mundo moderno exatamente inverteu as relações naturais entre as diversas ordens. Mais uma vez, apequenamento da ordem, intelectual (até mesmo ausência da intelectualidade pura), exagero da ordem material e da ordem sentimental , tudo está interligado, e é tudo isto que faz da civilização ocidental atual uma anomalia, para não dizer uma monstruosidade.

Eis como se mostram as coisas quando se as considera sem opiniões preconcebidas. E é desta forma que as vêem os representantes mais qualificados das civilizações orientais, sem qualquer preconceito, pois o preconceito é sempre uma coisa sentimental, não intelectual, enquanto que seu ponto de vista é puramente intelectual. 5e os ocidentais têm certa dificuldade de compreender esta atitude, é porque são inelutavelmente levados a julgar os outros de acordo com suas próprias características, atribuindo-lhes suas próprias preocupações como lhes atribuem suas maneiras de pensar, sem se darem conta de que possam sequer existir outras, tamanha e a estreiteza de seu horizonte mental. Dai vem sua completa incompreensão de todas as concepções orientais. A recíproca não é verdadeira: os orientais,quando têm a oportunidade e quando querem se dar esse trabalho, não têm a menor dificuldade em penetrar e compreender os conhecimentos especiais do Ocidente, por serem habituados a especulações muito mais vastas e profundas, e quem ê capaz de muito também é capaz de pouco. Porém, de maneira geral, eles não têm a menor tentação de se entregarem a esse tipo de trabalho, que poderia fazê-los perder de vista ou pelo menos se descuidar, em nome de coisas que lhes são insignificantes, do que é para eles o essencial. A ciência ocidental é análise e dispersão; o conhecimento oriental é síntese e concentração. Mas teremos a oportunidade de voltar a este assunto.

0 que quer que seja, o que os ocidentais chamam de civilização seria pelos outros chamado de barbárie, porque lhe falta precisamente o essencial, que é um princípio de ordem superior. Com que direito os ocidentais pretenderiam impor a todos sua própria escala de valores? E não deveriam esquecer, também, que são apenas uma minoria no conjunto da humanidade terrestre. E evidente que esta consideração numérica nada prova a nossos olhos, mas deveria causar certa impressão nas pessoas que inventaram o "sufrágio universal" e que crêem nos seus benefícios. Se eles ao menos se satisfizessem. em afirmar a superioridade imaginária que se atribuem, esta ilusão prejudicaria apenas a eles próprios. Mas o que é mais terrível é seu furor de proselitismo: neles o espírito de conquista se disfarça sob pretextos "moralistas", e ê em nome da "liberdade" que desejam constranger o mundo inteiro a imita-los! 0 mais espantoso é que, em sua arrogância, imaginam sinceramente que gozam de "prestígio" junto a todos os outros povos. Por serem temidos, como a uma força brutal, crêem ser admirados; um homem sob a ameaça de ser esmagado por uma avalanche torna-se por isto cheio de respeito e admiração? A impressão causada sobre os orientais em geral pelas invenções mecânicas, por exemplo, é uma impressão de profunda repulsa. Tudo isto lhes parece certamente mais prejudicial que vantajoso, e se eles se vêem obrigados a aceitar certas necessidades da época atual é porque têm a esperança de se livrarem delas algum dia; isto não lhes ' interessa e na verdade jamais lhes interessará. 0 que os ocidentais chamam de progresso, para os orientais é apenas mudança e instabilidade; e a necessidade de mudança, tão característica da época moderna, é para eles um sinal de inferioridade manifesta: aquele que alcançou um estado de equilíbrio não sente mais esta necessidade, da mesma forma que aquele que sabe não procura mais. Nestas condições um entendimento é com certeza bem difícil, pois os mesmos fatos recebem, de cada uma das partes, interpretações diametralmente opostas. O que aconteceria se os orientais também quisessem , a exemplo dos ocidentais, e através dos mesmos meios por eles usados, impor seus pontos de vista? Tranqui1izem-se, porém: nada é mais contrário a sua natureza que a propaganda, e estas preocupações lhes são perfeitamente estranhas. Sem pregar a "liberdade", deixam os outros pensarem o que quiserem, e mesmo o que deles se pensa lhes é totalmente indiferente. Tudo o que pedem , no fundo, é que os deixem tranqüilos. Mas é isto que se recusam a admitir os ocidentais, que foram até lá onde eles se encontram - é preciso não esquecer - e se comportaram de uma maneira tal que confere até aos homens mais pacíficos o pleno direito de se exasperarem. Encontramo-nos, assim, diante de uma situação de fato, que não poderia durar indefinidamente. Existe apenas um meio para os ocidentais se tornarem suportáveis: na linguagem habitual da política colonial, devem renunciar a "assimilação" e praticar a "associação", e isto em todos os domínios. Só isto já exige uma certa modificação de sua mentalidade, assim como a compreensão de pelo menos algumas das idéias que aqui expomos.

Notas:

(1) L'Evolution créatrice, p. 151.

(2) Ib. Pág. 174

(*) Littré, Haximilien Paul Emile (1801-1881) Lexicógrafo (N.T.).

(**) Turgot, Anne Robert Jacques, barão de Laune (1727-1781) Economista (N.T.).

(***) (1839-1336) - Historiador e jornalista (N.T.).

(****) Fourier, Jean Baptiste Joseph (1768-1830) Matemático (N.T,).

(3) L'Avenir de Ia Civilisation: Revue Universe!le 19 de março de 1922, pp. 586-587.

(4) O termo "materialismo" foi imaginado por Berkeley, que o usava apenas para designar a crença na realidade da matéria; o materia1ismo no sentido atual, isto é, a teoria segundo a qual nada existe senão a matéria, remonta apenas a LaMettrie e a d'Holbach; não deve ser confundido com o mecanismo, de que se encontram alguns exemplos na Antigüidade.

(5) Fragmento de Un Traité du Vide (Um Tratado sobre o Vazio).
***** Anciens significa tanto "antigos" quanto "anciães". (N.T.)
****** A antigüidade do século é a juventude do mundo. (N.T.)

(6) Apesar da influência da "escola sociológica", existem, até nos meios "oficiais", alguns sábios que pensam como nós a este respeito, notadamente o Sr. Georges Foucart que, na introdução de sua obra intitulada Histoire des religions et Méthode comparative (História das religiões e Método comparativo), defende a tese da “degenerescência” e menciona vários que dela compartilham. O Sr. Foucart faz a propósito uma excelente crítica da "escola sociológica" e de seus métodos. Declara, em seus próprios ternos, que "é preciso não confundir o totemismo ou a sociologia com a etnologia séria".

(7) Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus – 2ª parte, cap. V.

Capa Livro Curiosa contra-capa da primeira edição de "Oriente e Ocidente", onde o editor a aproveitou para divulgação de seus lançamentos para 1924.