"Du Tao aux dix-mille êtres" in Études Traditionnelles, nº 491, Jan/Feb/Mars, 1986 .
(in memoriam) Pierre Grison
Como introdução a este estudo, é indispensáve1 - afim de dar um esboço da cosmogonia chinesa tradicional - apresentar as passagens mais características do Tao-te-king, de Tchouang-tseu e de Lie-tseu. Para tanto, nós reproduzimos abaixo seis extratos importantes destes três "clássicos" do taoísmo.
(texto 1)
"Havia algo de indiviso antes
da formação do céu e da terra...
Não conhecendo seu nome (ming)
eu o chamo 'Tao'."
(cap.XXV)
(texto 2)
"Os dez mil seres dou mundo (t'ien hia wan wou)
são engendrados (cheng) a partir do Ser (yeou);
Ser é engendrado a partir do Não-Ser (wou)."
(cap.XL)
(texto 3)
"O Tao engendra o Um (yi),
o Um engendra o Dois (eul),
o Dois engendra o Três (san),
o Três engendra os Dez mil seres (wan wou)."
(cap.XLII)
(texto 4)
"O Tao...não atua (wou wei) e não tem forma
(wou wing)... Ele tem existido sempre, antes
mesmo da criação do céu e da terra. . .
Ele engendrou o céu e a terra. Além da cumeeira
suprema (t'ai tsi) do universo, não há mais altura...
Nada se sabe do seu começo (che) e do seu fim (tsong)"
(cap.VI)
(texto 5)
No grande começo (t'ai tch'ou) havia
o Não-Ser (wou).
Não havia o Ser e não havia nome .
A partir disso se manifesta (ts'i) o Um (yi).
E houve o Um mas sem forma [material] (wou hsing)
Os Seres (wou) dele nasceram :
é o que se denomina sua eficiência."
(cap.XII)
(texto 6)
"Mestre Lie-tseu disse: Os artigos cheng-jen
(homens sábios) viam na luz e trevas - yang e yin-
os princípios reguladores do mundo.
Ora , tudo o que tem um corpo nasce do incorporal ;
assim, de onde teria nascido o mundo?
É por que eu digo: houve uma grande Mutação (t'ai yi),
um grande Começo (t'ai tch'ou), uma grande Gênese (t'ai che),
uma grande Criação (t'ai sou) ...
O estado no qual força, forma e matéria
não eram ainda separadas é denominado Caos (houen louen).
Chama-se Caos ao estado no qual os
dez mi1 seres estavam confundidos e ainda não separados. . .
O puro (ts'ing) e leve (tsing) sobe e se torna o céu (t'ien).
O turvo (tchoug) e pesado (tchong) descende e torna-se a terra (ti).
Os sopros intermediários se combinando harmoniosamente
produziram o homem (jen).
Assim o céu e a terra contém os germes (tsing), os dez mi1 seres deles
nasceram por mutação ( houa cheng ) ."
(Livro 1,cap.III)
O essencial da cosmogonia pode se resumir da seguinte maneira:
Do Tao, da "via sem qualificativos"(l) provêm o Um (yi) [cf. texto 3J , o Principio ou o Ser do mundo [ cf. texto 2] .
Identificado ao Não-Ser (wou) [ cf. texto 5] , o Tao é o arquétipo supra-essencial. Além de toda causalidade [ cf. texto 4] , sem nome (wou ming) e sem forma (wou hsing) [cf. texto 4] (2), somente o vazio (3) pode lhe dar uma "figuração" adequada.
No mundo dos números, o zero torna-se naturalmente o equivalente desse vazio porque Ele é precisamente "o ponto de partida de toda numeração anterior à unidade e símbolo da possibilidade universal"(4).
Deixando o mundo dos arquétipos e das Essências imutáveis, nós abordaremos aquele da ontologia, passando do Tao ao Um (5), ou seja, chegando ao Ser a partir do Não-Ser. Em termos de cosmogonia, esse caminho em direção ao Ser se realiza passando do Sem-Cumeeira (vou tsi) à Suprema Cumeeira (t'ai tsi).
Este encaminhamento do yeou (Ser) a partir do wou (Não-Ser) se efetua in divinis graças ao wou wei (não-ação) do Tao.
Num estado "ulterior" (6) o Supremo Um se "cinde" em duas polarizações criadoras (leang yi) : polarização Yang (yang yi) e polarização Yin (yin yi). A primeira , identificada ao Céu (t'ien) é o polo essencial da Criação; a segunda, identificada a' Terra (ti) é o polo substancial da Criação.
Os dois pólos , situados a meio caminho entre o Ser e o mundo criado, vão engendrar , fundindo-se, o terceiro termo da tríade Céu, Terra , Homem (7). Intermediário entre o Céu e a Terra, o Homem torna-se de fato o fecho de abóbada da manifestação universal (8).
Sua função de mediador cósmico aparece claramente no traçado do caractere wang, termo que designa a função real na China antiga. Etimologicamente (9), os traços horizontais do caractere simbolizam o Céu (traço superior), o Homem (traço médio) e a Terra (traço inferior).
Segundo a Tradição, o papel do rei é de unir religar : é este o sentido que se prende ao traço vertical que une as "três potências" (l0).
Esta breve abordagem da cosmogonia tradicional permite melhor captar o sentido simbólico dos números utilizados nos textos taoístas, De fato, quando os autores taoistas falam do Vazio (zero), do UM, do Dois, ... a propósito das diferentes etapas do engendramento do mundo é sempre a Essência de cada número que eles têm em vista. E assim que, pela meditação, o zero pode tornar-se símbolo do "total dos Possíveis'. Neste estado, o zero nada tem a ver com os números porque ele lhes é anterior. Supremo vazio, ele pode ser identificado ao Tao, ou seja , ao Infinito. O Um é bem mais que a primeira das cifras : ele é o Ser e o Principio do mundo, ele é aquele por intermédio do qual todos os seres nascem. No outro extremo da cadeia cósmica, o dez mi1 dos "Dez mi1 seres " se identifica â totalidade da Criação.
Notas :
(1) Gilles, Andrés, Principes de la médecine selon la tradition, p.38 (Paris- 1980)
(2) "o que está além da forma é denominado Via..." (Yi king Hi Ts'eu)
(3) Em relação com a definição de Não-Ser dada mais acima, deve-se compreender claramente que o vazio não tem nenhum ponto em comum com o "nada" .
(4) Luc Benoist, Signes. symboles et e mythes. p.73. O mesmo autor em um artigo "O apelo do Vazio" (in Hermes, ibid, p.79) observa que " de fato toda a matemática infinitesimal esta situada entre o zero e a unidade. A seqüência dos números inteiros é definida por Russel como a posteridade do zero. Gerador dos números, ele é anterior a estes e é com razão que Leibniz o identifica ao infinito" . Sobre a significação precisa do zero : cf. René Guénon, Les Principes du calcul infinitésimal, cap.XV
(5) Igualmente denominado "Supremo Um" (t'ai yi)...Esse Supremo Um" é a determinação primeira do Tao.
(6) Nós empregamos este adjetivo ulterior por não dispormos de outro mais adequado. Contudo, desnecessário dizer que esse estado do processo cosmogônico não é posterior aos "precedentes" porque a perspectiva é sempre In principio. [N.E: "Seqüência" lógica e não cronológica.]
(7) Em chinês - t'ien, ti, jen- quer dizer, as "três potências" .
(8) Ou seja, os Dez mi1 seres (wan wou).
(9) Cf. Chouo-wen , primeira seção.
(l0) "Os Filhos do Céu formam com o céu e a terra como uma sociedade a três. Eles unem sua ação àquela do céu e da terra e estendem seus benefícios a todos os seres".(Li-ki, XXIII), Tradução 5. Couvreur (Las Belles Lettres).
(Reportar-se, a este respeito, ao cap. XVIII da obra de René Guénon : A Grande Tríade .(clique aqui)