Guenon Sorri

René Guénon

A reforma da mentalidade moderna

Publicado na revista Regnabit, junho de 1926.

A civilização moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: de todas que conhecemos, é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e também a única que não se apoia em qualquer princípio de ordem superior. Este desenvolvimento material, que vem já de vários séculos, e que se vai acelerando cada vez mais, tem sido acompanhado de uma regressão intelectual totalmente incapaz de ser compensada. Trata-se, aqui, bem entendido, da verdadeira e pura intelectualidade, que se poderia também denominar espiritualidade, qualificação esta que nos recusamos atribuir àquilo que os modernos têm-se aplicado de um modo particular: o cultivo das ciências experimentais, em vista das aplicações práticas que delas podem decorrer. Um único exemplo permitiria medir a extensão dessa regressão: a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino era, em seu tempo, um manual para uso dos estudantes; onde estão hoje os estudantes capazes de aprofundá-lo e assimilá-lo?

O declínio não ocorreu de modo súbito: poderíamos seguir suas etapas através da filosofia moderna. Foi a perda ou o esquecimento da verdadeira intelectualidade que tornou possível dois erros que se opõem apenas na aparência, mas que são, na realidade, correlativos e complementares: o racionalismo e o sentimentalismo. Desde que se passou a negar ou a ignorar todo conhecimento puramente intelectual, como se fez a partir de Descartes, devia-se chegar, de um lado, ao positivismo, ao agnosticismo e a todas as aberrações do "cientismo", e, de outro lado, a todas as teorias contemporâneas que, não se contentando com o que a razão pode dar, buscam outra coisa, mas pela veia do sentimento e do instinto, isto é, abaixo da razão e não acima, e chegam, como William James, por exemplo, a ver na subsconsciência o meio pelo qual o homem pode entrar em comunicação com o Divino. A noção da verdade, após ter sido rebaixada a nada mais que uma simples representação da realidade sensível, é por fim identificada, pelo pragmatismo, à utilidade, o que significa suprimi-la pura e simplesmente. Com efeito, que interesse poderia ter a verdade num mundo em que as aspirações são apenas materiais e sentimentais?

Não é possível desenvolver aqui todas as conseqüências desse estado de coisas. Vamos limitar-nos a indicar algumas, dentre as que se referem mais em particular ao ponto de vista religioso. É de notar, em primeiro lugar, que o desprezo e a repulsa que outros povos, os orientais em especial, experimentam em relação aos ocidentais, resultam em grande parte de que estes lhes parecem, em geral, como homens sem tradição, sem religião, o que é a seus olhos uma verdadeira monstruosidade. Um oriental não pode admitir uma organização social que não repouse sobre princípios tradicionais. Para um muçulmano, por exemplo, toda legislação nada mais é que uma simples dependência da religião. Em outros tempos acontecia o mesmo no Ocidente; que se reflita sobre o que foi a Cristandade na Idade Média. Hoje, porém, as relações estão invertidas. De fato, encara-se agora a religião como um simples fato social; em vez de a ordem social, como um todo, estar ligada à religião, esta, ao contrário, quando se consente ainda em lhe dar um lugar, é olhada tão-somente como um dentre os elementos que constituem a ordem social. E quantos católicos — pobres de nós! — aceitam esse modo de ver sem a menor dificuldade ! Já é tempo de reagir contra essa tendência, e, a esse respeito, a afirmação do Reino social de Cristo é uma manifestação particularmente oportuna; mas, para torná-la uma realidade, toda mentalidade atual precisa ser reformada.

Convém não dissimular que mesmo aqueles que crêem com sinceridade ser religiosos possam ter, na realidade, e na maioria dos casos, uma idéia eficaz da religião; esta quase não tem influência efetiva sobre o seu pensamento, nem sobre o seu modo de agir, estando como que separada do resto de sua existência. Praticamente, crentes e incrédulos comportam-se quase da mesma maneira. Para muitos católicos, a afirmação do sobrenatural tem só um valor teórico, e ficariam muito pouco à vontade se tivessem que constatar um fato milagroso. É o que se poderia chamar de materialismo prático, de materialismo de fato; não seria este mais perigoso ainda que o materialismo reconhecido, precisamente porque os atingidos por ele não têm mesmo consciência disso?

Por outro lado, para a maioria das pessoas, a religião é apenas um assunto de sentimento, sem qualquer alcance intelectual. Confunde-se a religião com uma vaga religiosidade, reduzindo-a a uma moral. Diminui-se o mais possível o lugar da doutrina, que é entretanto o essencial, e da qual todo o restante nada mais deve ser, logicamente, que uma conseqüência. Sob esse ponto de vista, o protestantismo, que acabou por se tornar um moralismo puro e simples, é muito representativo das tendências do espírito moderno. Cometeríamos, porém, grande injustiça se acreditássemos que o próprio catolicismo não tenha sido afetado por essas mesmas tendências, não em seus princípios, certamente, mas na forma pela qual é apresentado habitualmente. A pretexto de torná-lo aceitável à mentalidade atual, fizeram-se deploráveis concessões, encorajando-se, assim, o que, ao contrário, seria preciso combater com energia. Não vamos insistir sobre a cegueira daqueles que, a pretexto da "tolerância", tornaram-se cúmplices inconscientes de verdadeiras contrafacções da religião, cujas intenções ocultas estão longe de suspeitar. Assinalemos apenas de passagem, a esse respeito, o freqüente e deplorável abuso da própria palavra "religião", empregada a todo instante em expressões como "religião da pátria", "religião da ciência", "religião do dever". Não se trata de simples descuidos de linguagem, mas sim de sintomas da confusão que reina por toda parte do mundo moderno, pois a linguagem, em suma, representa fielmente o estado de espírito vigente, e tais expressões são incompatíveis com o verdadeiro sentido religioso.

Mas, chegando ao que há de mais essencial, falaremos do enfraquecimento do ensino doutrinário, quase por inteiro substituído por vagas considerações morais e sentimentais que, talvez,agradem muito a alguns, mas, ao mesmo tempo, repelem e afastam aqueles que têm aspirações de ordem intelectual, e que, apesar de tudo, ainda existem em nossa época. A prova disso é que um certo número de pessoas, muito maior do que se poderia pensar, deplora tal ausência de doutrina; e vemos como sinal favorável, apesar das aparências, o fato de que, de diversos lados, as pessoas parecem dar-se conta disso muito mais nos dias atuais do que há alguns anos. Não há razão para sustentar-se, como temos ouvido freqüentemente, que ninguém compreenderia uma exposição de doutrina pura; em primeiro lugar, por que motivo querer sempre se manter em nível inferior, a pretexto de que é o da maioria, como se fosse necessário considerar antes a quantidade que a qualidade? Não será isso uma conseqüência do espírito democrático, que é dos aspectos característicos da mentalidade moderna? Por outro lado, deve-se realmente acreditar que tantas pessoas seriam incapazes de compreender, caso tivessem sido habituadas a um ensinamento doutrinário? Não se deveria pensar tam disso, obter um certo benefício, talvez muito maior do que se possa supor?

Mas o que constitui, sem dúvida, o obstáculo mais grave é uma espécie de desconfiança que se manifesta em muitos meios católicos, e mesmo íclesiásticos, em relação à intelectualidade em geral; dizemos ser o mais grave, porque é um sinal de incompreensão até mesmo entre aqueles que têm por incumbência a tarefa do ensino. Foram de tal forma contagiados pelo espírito moderno a ponto de nâ"o mais saberem, do mesmo modo que os filósofos a que nos referimos há pouco, o que é a verdadeira intelectualidade, a ponto de confundirem, às vezes, intelectualismo com racionalismo, fazendo, assim, involuntariamente o jogo dos adversários. Pensamos, em especial, que o importante, antes de tudo, é restaurar a verdadeira intelectualidade e, com ela, o sentido da doutrina e da tradição. É tempo de mostrar que a religião não se reduz apenas a uma devoção sentimental, a preceitos morais ou a consolações para uso de espíritos enfraquecidos pelo sofrimento, mas que se pode nela encontrar o "alimento sólido" de que fala São Paulo na Epístola aos Hebreus.

Sabemos que isso encontra a oposição de certos hábitos adquiridos e de difícil abandono; contudo, não se trata de inovar, longe disso, mas, sim, ao contrário, de retornar à tradição de que nos afastamos e reencontrar o que deixamos se perder. Não seria isso preferível a fazer as mais injustificáveis concessões ao espírito moderno, como, por exemplo, as que encontramos em tantos tratados de apologética, que se esforçam em conciliar o dogma com tudo o que há de mais hipotético e de menos fundamentado na ciência atual, sob o risco de ter de recolocar tudo em questão a cada vez que tais teorias, auto-intituladas científicas, vierem a ser substituídas por outras? Seria, no entanto, muito fácil mostrar que a religião e a ciência não podem realmente entrar em conflito, pela simples razão de que não se aplicam ao mesmo domínio. Como não ver o perigo que há em se buscar, para a doutrina das verdades imutáveis e eternas, um ponto de apoio no que há de mais cambiante e incerto? E o que não pensarmos então de certos teólogos católicos afetados pelo espírito do "cientismo" a ponto de se acreditarem obrigados a levar em conta, num grau mais ou menos extenso, os resultados da exegese moderna e da "crítica de textos", quando seria tão fácil, sob a condição de se ter uma base doutrinária bastante segura, evidenciar a inutilidade daqueles resultados? Como não se perceber que a pretensa "ciência das religiões", tal como é ensinada nos meios universitários, apenas tem sido, na realidade, uma máquina de guerra dirigida contra a religião e, de modo encontra sob a mira daqueles que dirigem o mundo moderno num sentido que só pode terminar em catástrofe?

Haveria muito o que dizer sobre isso tudo, mas quisemos apenas indicar sumariamente alguns dos pontos nos quais uma reforma se faz necessária e urgente.

Gostaríamos de concluir lançando uma questão que nos interessa muito em especial: por que há tanta hostilidade, mais ou menos declarada, em relação ao simbolismo? Seguramente, porque há nele um modo de expressão que se tornou inteiramente estranho à mentalidade moderna, e porque o homem está acostumado a suspeitar do que não compreende. O simbolismo é o meio melhor adaptado ao ensino das verdades de ordem superior, religiosas e metafísicas, ou seja, de tudo o que é repelido ou descuidado pelo espírito moderno. O simbolismo é inteiramente o oposto do que convém ao racionalismo, e todos os seus adversários comportam-se, por certo sem o saber, como verdadeiros racionaüstas. De nossa parte, pensamos que, se o simbolismo é hoje incompreendido, esta é uma razão a mais para insistirmos sobre ele, expondo, de modo tão completo quanto possível, o significado real dos símbolos tradicionais, restituindo-lhes todo seu alcance intelectual, ao invés de fazê-lo um simples tema de algumas exortações sentimentais, caso em que, no entanto, o uso do simboilismo é coisa inteiramente inútil.

A reforma da mentalidade moderna, com tudo o que ela implica — restauração da verdadeira intelectualidade e da tradição doutrinária, que para nós não estão separadas —, é por certo uma tarefa considerável. Mas seria isso uma razão para não empreendê-la? Parece-nos, ao contrário, que tal tarefa se constitui numa das mais elevadas e importantes que se poderiam propor à atividade de uma sociedade como a da Irradiação Intelectual do Sagrado Coração, ainda mais porque todos os esforços realizados nesse sentido serio necessariamente orientados para o Coração do Verbo encarnado, Sol Espiritual e Centro do Mundo, "no qual estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e da ciência", não dessa vã ciência profana, que é a única conhecida da maioria de nossos contemporâneos, mas da verdadeira ciência sagrada, que abre, a todos aqueles que a estudam convenientemente, horizontes insuspeitados e verdadeiramente ilimitados.