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René Guénon

Os Estados Múltiplos do Ser

Tradução: Giuliano Morais
"Les États Multiples de l'Être" - Paris 1932. Maisnie-Trédaniel, 1984

RG EMS

Introdução

Em nosso precedente estudo sobre O Simbolismo da Cruz, expusemos, segundo os dados fornecidos pelas diferentes doutrinas tradicionais, uma representação geométrica do ser que está baseada inteiramente na teoria metafísica dos estados múltiplos. O presente volume será a este respeito como um complemento, já que as indicações que demos não bastam, talvez, para fazer sobressair todo o alcance desta teoria que devemos considerar como inteiramente fundamental; Devemos, com efeito, limitarmo-nos então ao que se referia mais diretamente à meta claramente definida a que nos propúnhamos. Por isso é que, deixando de lado agora a representação simbólica que descrevemos, ou ao menos não a recordando de certo modo mais que incidentalmente quando houver lugar para referirmo-nos a ela, consagraremos inteiramente este novo trabalho a um desenvolvimento mais amplo da teoria que lhe diz respeito, seja primeiramente em seu princípio mesmo, seja em algumas de suas aplicações, no que concerne mais particularmente ao ser, considerado sob seu aspecto humano.

Talvez não seja inútil recordar, no que concerne a este último ponto, a partir de agora que o fato de determo-nos nas considerações desta ordem não implica de modo algum que o estado humano ocupe uma fileira privilegiada no conjunto da Existência universal, ou que ele seja metafisicamente distinto, em relação a outros estados, pela posse de uma prerrogativa qualquer. Na realidade, este estado humano não é mais que um estado de manifestação como todos outros, e entre uma indefinidade de outros; ele se situa, na hierarquia dos graus da Existência, no lugar que lhe é atribuído por sua natureza mesma, quer dizer, pelo caráter limitativo das condições que o definem, e este lugar não lhe confere nem superioridade nem inferioridade absoluta. Se devemos, às vezes, considerar particularmente este estado, é, pois, unicamente porque, sendo o estado no qual nos encontramos de fato, por isso mesmo adquire para nós, mas para nós somente, uma importância especial; este não é mais que um ponto de vista totalmente relativo e contingente, o dos indivíduos que somos em nosso presente modo de manifestação. Por isso é que, particularmente, quando falamos de estados superiores e de estados inferiores, é sempre com relação ao estado humano tomado como termo de comparação que devemos operar esta repartição hierárquica, posto que não há nenhum outro que nos seja diretamente compreensível enquanto indivíduos; e é necessário não esquecer que toda expressão, sendo uma envoltura em uma forma, se efetua necessariamente de modo individual, de sorte que, quando queremos falar de algo, concernente às verdades de ordem puramente metafísica, não podemos fazê-lo mais que descendo a uma ordem totalmente diferente, essencialmente relativa e limitada, para as traduzir à linguagem que é a das individualidades humanas. Compreenderemos sem esforço todas as precauções e as reservas que impõe a inevitável imperfeição desta linguagem, tão manifestamente inadequada ao que deve expressar em tal caso; há aí uma desproporção evidente, e podemos ademais dizer o mesmo para toda representação formal, qualquer que seja, compreendidas aí as representações propriamente simbólicas, ainda que incomparavelmente menos estreitamente limitadas que a linguagem ordinária, e por conseqüência mais aptas para a comunicação das verdades transcendentes, daí o emprego que dela é feito constantemente em todo ensinamento possuidor de um caráter verdadeiramente «iniciático» e tradicional (1). Por isso é que, como fizemos observar já em várias ocasiões, convém, para não alterar a verdade por uma exposição parcial, restritiva ou sistematizada, reservar sempre a parte do inexpressável, quer dizer, aquilo que não saberia encerrar-se em nenhuma forma, e que, metafisicamente, é em realidade o que mais importa, podemos dizer, inclusive, todo o essencial.

Agora, se quisermos, sempre naquilo que concerne à consideração do estado humano, religar o ponto de vista individual ao ponto de vista metafísico, como devemos fazer sempre que se trate da «ciência sagrada», e não somente do saber «profano», diremos isto: a realização do ser total pode se cumprir a partir de qualquer estado tomado como base e como ponto de partida, em razão mesma da equivalência de todos os modos de existência contingentes a respeito do Absoluto; ela pode portanto, se cumprir a partir do estado humano bem como a partir de todos os outros, e mesmo, como já o dissemos alhures, a partir de todas as modalidades deste estado, o que equivale a dizer que é particularmente possível para o homem corporal e terrestre, o que quer que disso pensem os ocidentais, induzidos ao erro, quanto à importância que convém atribuir à «corporeidade», pela extraordinária insuficiência de suas concepções concernentes à constituição do ser humano (2) . Posto que este é o estado no qual nos encontramos atualmente, é daí de onde devemos partir efetivamente se nos propomos alcançar a realização metafísica, em qualquer grau que seja, e essa é a razão essencial pela qual este caso deve ser considerado mais especialmente por nós; Tendo desenvolvido alhures essas considerações precedentemente, não insistiremos mais nisso, ainda mais por que nossa exposição mesma permitirá compreendê-las melhor (3).

Por outro lado, para descartar toda confusão possível, devemos recordar a partir de agora que, quando falamos dos estados múltiplos do ser, trata-se, não de uma simples multiplicidade numérica, ou inclusive mais geralmente quantitativa, mas sim de uma multiplicidade de ordem «transcendental» ou verdadeiramente universal, aplicável a todos os domínios que constituem os diferentes «mundos» ou graus da Existência, considerados separadamente ou em seu conjunto, e, portanto, exterior e transcendente ao domínio especial do número e inclusive da quantidade sob todos seus modos. Com efeito, a quantidade, e com maior razão o número que não é mais que um de seus modos, ou seja, a quantidade descontínua, é somente uma das condições determinantes de alguns estados, entre os quais está o nosso; por conseguinte, não poderia ser transposta a outros estados, e ainda menos aplicada ao conjunto dos estados, que escapam evidentemente a uma tal determinação. Por isso é que, quando falamos a esse respeito de uma multidão indefinida, sempre devemos tomar cuidado de observar que a indefinidade de que se trata ultrapassa todo número, e também tudo aquilo ao que a quantidade é mais ou menos diretamente aplicável, como a indefinidade espacial ou temporal, que não dependem igualmente mais que das condições próprias do nosso mundo(4) .

Impõe-se ainda outra observação, sobre o emprego que fazemos da palavra «ser», que, em todo rigor, já não pode aplicar-se em seu sentido próprio quando se trata de alguns estados de não-manifestação dos quais teremos que falar, e que estão além do grau do Ser puro. Somos, no entanto, obrigados em razão da constituição mesma da linguagem humana, e à falta de outro termo mais adequado, a conservar este mesmo termo em parecido caso, mas não lhe atribuindo então mais que um valor puramente analógico e simbólico, sem o qual nos seria completamente impossível falar de uma maneira qualquer daquilo do que se trata; e este é um exemplo muito claro dessas insuficiências de expressão às quais fazíamos alusão faz um momento. É assim que poderemos, como já o fizemos alhures, continuar falando do ser total como estando ao mesmo tempo manifestado em alguns de seus estados e não-manifestado em outros, sem que isso implique de modo algum que, para estes últimos, devamos nos deter na consideração do que corresponde ao grau que é propriamente o do Ser (5) .

A propósito disto recordaremos que o fato de deter-se no Ser e de não considerar nada além, como se o Ser fosse de certo modo o Princípio supremo, o mais universal de todos, é um dos traços característicos de algumas concepções ocidentais do início da Idade Média, que, embora continham incontestavelmente uma parte de metafísica que não se encontra já nas concepções modernas, permanecem enormemente incompletas sob este aspecto, e também pelo fato de que se apresentam como teorias estabelecidas para si mesmas, e não com vistas a uma realização efetiva correspondente. Isto não quer dizer, certamente, que não tenha havido então outra coisa no ocidente; nisso, falamos somente do que se conhece geralmente, e do que alguns, fazendo louváveis esforços para reagir contra a negação moderna, têm tendência de exagerar o valor e o alcance, por falta de se dar conta de que ai ainda não se trata mais que de pontos de vista em suma suficientemente exteriores, e de que, nas civilizações onde, como é o caso, uma sorte de ruptura se estabeleceu entre duas ordens de ensino que se sobrepõem sem opor-se jamais, o «exoterismo» apela ao «esoterismo» como seu complemento necessário. Quando este «esoterismo» é desconhecido, a civilização, que já não está vinculada diretamente aos princípios superiores por nenhum laço efetivo, não demora a perder todo caráter tradicional, já que os elementos desta ordem que subsistem ainda nela são comparáveis a um corpo abandonado pelo espírito, e, por conseguinte, impotentes daí em diante para constituir algo mais que uma sorte de formalismo vazio; é isso, muito exatamente, o que ocorreu no mundo moderno(6) .

Uma vez dadas estas poucas explicações, pensamos poder entrar em nosso tema mesmo sem nos deter mais em preliminares das quais todas as considerações que já expusemos alhures permitem nos dispensarmos em grande parte. Não nos é possível, com efeito, voltar indefinidamente sobre o que já foi dito em nossas obras precedentes, o que não seria mais que tempo perdido; e, se de fato algumas repetições forem inevitáveis, devemos nos esforçar em reduzi-las ao que é estritamente indispensável para a compreensão disso que nos propomos expor presentemente, sem prejuízo de remeter o leitor, cada vez seja necessário, a tal ou qual parte de nossos outros trabalhos, onde poderá encontrar indicações complementares ou desenvolvimentos mais amplos sobre as questões que sejamos levados a considerar de novo. O que constitui a dificuldade principal da exposição, é que todas estas questões estão ligadas, com efeito, mais ou menos estreitamente umas às outras, e que importa mostrar esta ligação tão freqüentemente como é possível, embora, de outra parte, não importa menos evitar toda aparência de «sistematização», quer dizer, de limitação incompatível com a natureza mesma da doutrina metafísica, que deve abrir pelo contrário, a quem é capaz de compreendê-la e de «assenti-la», possibilidades de concepção não só indefinidas, mas sim, podemos dizê-lo sem nenhum abuso de linguagem, realmente infinitas como a Verdade total mesma.

NOTAS:

(1) Faremos observar incidentalmente, a esse propósito, que o fato de que o ponto de vista filosófico não apele jamais a nenhum simbolismo, bastaria por si só para mostrar o caráter exclusivamente «profano» e completamente exterior deste ponto de vista especial e do modo de pensamento ao qual corresponde.

(2) Ver L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XXIII.

(3) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. XXVI a XXVIII.

(4) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. XV.

(5) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. I.

(6) Ver Orient et Occident e La Crise du Monde moderne.

Capítulo I - O Infinito e a Possibilidade

Para compreender bem a doutrina da multiplicidade dos estados do ser é necessário remontar, antes de toda outra consideração, até a noção mais primordial de todas: a do Infinito metafísico, considerado em relação com a Possibilidade universal. O Infinito é o que não tem limites, segundo a significação etimológica do termo que o designa; Para guardar para este termo o seu sentido próprio, é necessário reservar rigorosamente seu emprego para a designação do que não tem absolutamente nenhum limite, com a exclusão de tudo aquilo que está subtraído somente a algumas limitações particulares, embora permaneça submetido a outras em virtude de sua natureza mesma, natureza a que estas limitações particulares são essencialmente inerentes, como o são do ponto de vista lógico, que não faz em suma mais que traduzir a sua maneira o ponto de vista que se pode chamar «ontológico», os elementos que intervêm na definição mesma daquilo de que se trate.

Este último caso é particularmente, como já tivemos a oportunidade de indicá-lo em diversas ocasiões, o do número, do espaço e do tempo, inclusive nas concepções mais gerais e mais extensas que seja possível formar-se deles, e que superam em muito as noções que se têm ordinariamente a seu respeito (1); na realidade, tudo isso nunca pode ser mais que do domínio do indefinido. É a este indefinido ao que alguns, quando é de ordem quantitativa como nos exemplos que acabamos de recordar, dão abusivamente o nome de «infinito matemático», como se a adjunção de um epíteto ou de uma qualificação determinante à palavra «infinito» não implicasse já por si mesma uma contradição pura e simples (2). De fato, este indefinido, que procede do finito do qual não é mais que uma extensão ou um desenvolvimento, e, por conseguinte, sendo sempre redutível ao finito, não tem nenhuma medida comum com o verdadeiro Infinito, como tampouco a individualidade, humana ou outra, inclusive com a integralidade dos prolongamentos indefinidos dos quais é suscetível, poderia ter nenhuma medida comum com o ser total (3). Esta formação do indefinido a partir do finito, da qual se tem um exemplo muito claro na produção da série dos números, não é possível em efeito a não ser à condição de que o finito, já em potencial, contenha este indefinido, e, ainda que seus limites fossem retraídos até que os perdêssemos de vista de certo modo, quer dizer, até que escapem a nossos meios de medida ordinários, não são suprimidos de modo algum por isso; é bem evidente, em razão da natureza mesma da relação causal, que o «mais» não pode sair do «menos», nem o Infinito do finito.

Não pode ser de outro modo quando se trata, como no caso que consideramos, de algumas ordens de possibilidades particulares, que são manifestamente limitadas pela coexistência de outras ordens de possibilidades, e, por conseguinte, em virtude de sua natureza própria, que faz com que estejam ai tais possibilidades determinadas, e não todas as possibilidades sem nenhuma restrição. Se isso não fosse assim, esta coexistência de uma indefinidade de outras possibilidades, que não estão compreendidas nessas, e das quais cada uma é ademais semelhantemente suscetível de um desenvolvimento indefinido, seria uma impossibilidade, quer dizer, um absurdo no sentido lógico desta palavra (4). O Infinito, ao contrário, para ser verdadeiramente tal, não pode admitir nenhuma restrição, o que supõe que é absolutamente incondicionado e indeterminável, já que toda determinação, qualquer que seja, é forçosamente uma limitação, pelo próprio fato de deixar algo fora de si, ou seja, todas as demais determinações igualmente possíveis. Ademais, a limitação apresenta o caráter de uma verdadeira negação: pôr um limite é negar, para o que está encerrado dentro dele, tudo o que este limite exclui; portanto, a negação de um limite é propriamente a negação de uma negação, quer dizer, lógica e inclusive matematicamente, uma afirmação, de tal sorte que a negação de todo limite equivale em realidade à afirmação total e absoluta. O que não tem limites é aquilo do qual não se pode negar nada, e, portanto aquilo que contém tudo, aquilo fora do qual não há nada; e esta idéia do Infinito, que é assim a mais afirmativa de todas, posto que compreende ou envolve todas as afirmações particulares, quaisquer que possam ser, se exprime por um termo de forma negativa em razão mesma de sua indeterminação absoluta. Na linguagem, em efeito, toda afirmação direta é forçosamente uma afirmação particular e determinada, a afirmação de algo, enquanto que a afirmação total e absoluta não é nenhuma afirmação particular com a exclusão das demais, posto que as implica todas igualmente; e é fácil entender a partir de agora a relação muito estreita que isto apresenta com a Possibilidade universal, que compreende da mesma maneira todas as possibilidades particulares (5).

A idéia do Infinito, tal qual acabamos de precisar aqui (6), do ponto de vista puramente metafísico, não é de modo algum discutível nem contestável, já que não pode encerrar em si nenhuma contradição, pelo próprio fato de que não há nela nada de negativo; ela é, além disso, necessária, no sentido lógico desta palavra (7), já que é a negação a que seria contraditória (8). Em efeito, se consideramos o «Todo», no sentido universal absoluto, é evidente que este não pode ser limitado de maneira nenhuma, já que não poderia sê-lo mais que por algo que fosse exterior, e, se houvesse algo que fosse exterior a ele, já não seria o «Todo». Importa destacar, ademais, que o «Todo», neste sentido, não deve ser assimilado de modo algum a um todo particular e determinado, quer dizer, a um conjunto composto de partes que estariam com ele em uma relação definida; falando propriamente, o «Todo» é «sem partes», posto que, estas partes, devendo ser necessariamente relativas e finitas, não poderiam ter com ele nenhuma medida em comum, nem, por conseguinte, nenhuma relação, o que equivale a dizer que, para ele, elas não existem (9); e isto basta para mostrar que não se deve procurar formar-se dele nenhuma concepção particular (10).

O que viemos a dizer sobre o Todo universal, em sua indeterminação mais absoluta, aplica-se também a ele quando o consideramos sob o ponto de vista da Possibilidade; e, para falar a verdade, nisso não há nenhuma determinação, ou ao menos é o mínimo de determinação que se requer para fazê-lo atualmente concebível, e, sobre tudo, exprimível em algum grau. Como tivemos a ocasião de indicá-lo alhures (11), uma limitação da Possibilidade total é, no sentido próprio da palavra, uma impossibilidade, posto que, devendo compreender a Possibilidade para limitá-la, não poderia estar compreendida nela, e o que está fora do possível não poderia ser nada mais que impossível; mas uma impossibilidade, não sendo nada mais que uma negação pura e simples, um verdadeiro nada, não pode limitar evidentemente o que quer que seja, do que resulta imediatamente que a Possibilidade universal é necessariamente ilimitada. É necessário entender bem, ademais, que isto não é naturalmente aplicável mais que à Possibilidade universal e total, que não é, dessa maneira, nada mais do que o que podemos chamar de um aspecto do Infinito, do qual não é distinta de nenhuma maneira nem em medida alguma; não pode haver nada que esteja fora do Infinito, posto que isso seria uma limitação, e posto que então já não seria o Infinito. A concepção de uma «pluralidade de infinitos» é um absurdo, posto que se limitariam reciprocamente, de sorte que, em realidade, nenhum deles seria infinito (12); por conseguinte, quando dizemos que a Possibilidade universal é infinita ou ilimitada, é necessário entender que ela não é outra coisa que o Infinito mesmo, considerado sob um certo aspecto, na medida em que é permissível dizer que há aspectos do Infinito. Posto que o Infinito é verdadeiramente «sem partes», em todo rigor, não poderia ser sujeito tampouco a uma multiplicidade de aspectos existentes real e «distintamente» nele; para falar a verdade, somos nós que concebemos o Infinito sob tal ou qual aspecto, porque não nos é possível fazê-lo de outro modo, e, inclusive se nossa concepção não fosse essencialmente limitada, como o é enquanto estamos em um estado individual, deveria limitar-se necessariamente para se tornar exprimível, posto que para isso lhe é necessário revestir-se de uma forma determinada. O que importa, somente, é que compreendamos bem de onde vem a limitação e onde se encontra, a fim de não atribuí-la mais do que a nossa própria imperfeição, ou melhor, a dos instrumentos interiores e exteriores de que dispomos atualmente enquanto seres individuais, não possuindo efetivamente como tais mais que uma existência definida e condicionada, e a fim de não transportar esta imperfeição, puramente contingente e transitória assim como as condições às quais se refere e das quais resulta, ao domínio ilimitado da Possibilidade universal mesma.

Acrescentaremos ainda uma última precisão: quando se fala correlativamente do Infinito e da Possibilidade, não é para estabelecer entre estes dois termos uma distinção que não poderia existir realmente; é porque o Infinito é considerado mais especialmente sob seu aspecto ativo, enquanto que a Possibilidade é seu aspecto passivo (13) ; mas, seja considerado por nós como ativo ou como passivo, é sempre o Infinito, o que não poderia ser afetado por estes pontos de vista contingentes, e as determinações, qualquer que seja o princípio pelo qual se efetuem, não existem aqui a não ser em relação a nossa concepção. Assim, em suma, é a mesma coisa que o que chamamos alhures, segundo a terminologia da doutrina extremo-oriental, de «perfeição ativa» (Khien), e de «perfeição passiva» (Khouen), sendo a Perfeição, no sentido absoluto, idêntica ao Infinito entendido em toda sua indeterminação; e, como o dissemos então, também é análogo, porém em um grau diferente e sob um ponto de vista muito mais universal, ao que são, no Ser, a «essência» e a «substância» (14) . Deve compreender-se bem, a partir de agora, que o Ser não encerra toda a Possibilidade, e que, por conseguinte, não pode ser idêntico ao Infinito de modo algum; é por isso que dizemos que o ponto de vista no qual nos colocamos aqui é muito mais universal que aquele onde não temos que considerar mais que o Ser; isto é indicado somente para evitar toda confusão, já que, no que segue, teremos a ocasião de nos explicar mais amplamente sobre isso.

NOTAS:

(1) É necessário ter o cuidado de observar que dizemos «gerais» e não «universais», já que aqui não se trata mais que das condições especiais de alguns estados de existência e nada mais, só isso deve bastar para fazer compreender que não poderia ser questão de infinitude em parecido caso, posto que estas condições são evidentemente limitadas como os estados mesmos aos quais se aplicam e que concorrem para definir.

(2) Se às vezes nos ocorreu dizer «Infinito metafísico», foi precisamente para marcar de uma maneira mais explícita que não se trata de modo algum do pretendido «infinito matemático» ou de outras «deformações do Infinito», se for permissível falar assim, tal expressão não cai de modo algum sob a objeção que formulamos aqui, porque a ordem metafísica é realmente ilimitada, de sorte que não há aí nenhuma determinação, enquanto que quem diz «matemático» restringe por isso mesmo a concepção a um domínio especial e limitado, ou seja, o da quantidade.

(3) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. XXVI e XXX.

(4) O absurdo, no sentido lógico e matemático, é o que implica contradição; confunde-se às vezes com o impossível, já que é a ausência de contradição interna a que, tanto lógica como ontologicamente, define a possibilidade.

(5) Sobre o emprego dos termos de forma negativa, mas cuja significação real é essencialmente afirmativa, ver Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, VIII, e L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XV.

(6) Não dizemos defini-la, já que seria evidentemente contraditório pretender dar uma definição do Infinito; e mostramos em outra parte que o ponto de vista metafísico mesmo, em razão de seu caráter universal e ilimitado, tampouco é suscetível de ser definido (Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. V).

(7) É preciso distinguir esta necessidade lógica, que é a impossibilidade de que uma coisa não seja o que é ou que seja outra coisa diferente do que é, e isso independentemente de toda condição particular, quer dizer, da necessidade dita «física», ou necessidade de fato, que é simplesmente a impossibilidade para as coisas ou os seres de não se conformar às leis do mundo ao que pertencem, e que, por conseguinte, está subordinada às condições pelas quais esse mundo está definido e não vale mais que no interior desse domínio especial.

(8) Certos filósofos, que argumentaram muito justamente contra o pretendido «infinito matemático», e que mostraram todas as contradições que implica esta idéia (contradições que desaparecem desde que alguém se dá conta de que não se trata mais que do indefinido), acreditam ter provado por isso mesmo, e ao mesmo tempo, a impossibilidade do Infinito metafísico; tudo o que provam em realidade, com esta confusão, é que ignoram completamente aquilo do que se trata neste último caso.

(9) Em outros termos, o finito, inclusive se for suscetível de uma extensão indefinida, é sempre rigorosamente nulo com respeito ao Infinito; por conseqüência, nada ou nenhum ser pode ser considerado como uma «parte do Infinito», o que é uma das concepções errôneas pertencentes em propriedade ao «panteísmo», já que o emprego mesmo da palavra «parte» supõe a existência de uma relação definida com o «todo».

(10) O que é necessário evitar, sobretudo, é conceber o Todo universal à maneira de uma soma aritmética, obtida pela adição de suas partes tomadas uma a uma e sucessivamente. No mais, inclusive quando se trata de um todo particular, há que se distinguir dois casos: um todo verdadeiro é logicamente anterior às suas partes e é independente delas; um todo concebido como logicamente posterior a suas partes, das quais não é mais que a soma, não constitui em realidade mais que o que os filósofos escolásticos chamavam um ens rationis, cuja existência, enquanto «todo», está subordinada à condição de ser efetivamente pensada como tal; o primeiro tem em si mesmo um princípio de unidade real, superior à multiplicidade de suas partes, enquanto que o segundo não tem outra unidade que a que nós lhe atribuímos pelo pensamento.

(11) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. XIV

(12) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. XXIV.

(13) Correspondente a Brahma e sua Shakti na doutrina hindu (ver O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta, cap. V e X)

(14) Ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIV

A distinção entre o possível e o real, sobre a qual insistiram muitos filósofos, não tem, por conseguinte, nenhum valor metafísico: todo possível é real à sua maneira, e segundo o modo que comporta sua natureza (7); de outro modo, haveria possíveis que não seriam nada, e dizer que um possível não é nada é uma contradição pura e simples; é o impossível, e só o impossível, o que, como já o dissemos, é um puro nada. Negar que haja possibilidades de não manifestação, é querer limitar a possibilidade universal; por outra parte, negar que, entre as possibilidades de manifestação existem diferentes ordens, é querer limitá-la mais estreitamente ainda.

Antes de ir mais longe, faremos observar que, em lugar de considerar o conjunto das condições que determinam um mundo, como temos feito no que precede, poderíamos também, do mesmo ponto de vista, considerar isoladamente uma destas condições: por exemplo, entre as condições do mundo corporal, o espaço, considerado como o continente das possibilidades espaciais (8). É bem evidente que, por definição mesma, só há as possibilidades espaciais que possam realizar-se no espaço, mas não é menos evidente que isso não impede às possibilidades não espaciais de realizarem-se igualmente (e aqui, nos limitando à consideração das possibilidades de manifestação, «realizar-se» deve ser tomado como sinônimo de «manifestar-se»), fora desta condição particular de existência que é o espaço. Entretanto, se o espaço fosse infinito como alguns o pretendem, não haveria lugar no Universo para nenhuma possibilidade não espacial, e, logicamente, o pensamento mesmo, para tomar o exemplo mais ordinário e mais conhecido de todos, não poderia então ser admitido na existência a não ser à condição de ser concebido como extenso, concepção cuja falsidade reconhece a psicologia «profana» mesma sem nenhuma vacilação; mas, bem longe de ser infinito, o espaço não é mais que um dos modos possíveis da manifestação, a manifestação mesma não sendo infinita de modo algum, inclusive na integralidade de sua extensão, com a indefinidade dos modos que implica, cada um dos quais é ele mesmo indefinido (9) . Observações similares se aplicariam igualmente a não importa qual outra condição especial de existência; e o que é verdadeiro para cada uma destas condições tomadas separadamente o é também para o conjunto de várias dentre elas, cuja reunião ou cuja combinação determina um mundo. Ademais, não é necessário dizer que é importante que as diferentes condições assim reunidas sejam compatíveis entre si, e sua compatibilidade contém evidentemente a dos possíveis que elas compreendem respectivamente, com a restrição de que os possíveis que estão submetidos ao conjunto das condições consideradas podem não constituir mais do que uma parte daqueles que estão compreendidos em cada uma das mesmas condições consideradas isoladamente das outras, de onde resulta que estas condições, em sua integralidade, implicarão, além de sua parte comum, prolongamentos em diversos sentidos, pertencentes também ao mesmo grau da Existência universal. Estes prolongamentos, de extensão indefinida, correspondem, na ordem geral e cósmica, ao que são, para um ser particular, os prolongamentos de um de seus estados, por exemplo, de um estado individual considerado integralmente, além de uma certa modalidade definida deste mesmo estado, tal como a modalidade corporal em nossa individualidade humana (10).

NOTAS:

(1) Há que se destacar em efeito que todo sistema filosófico se apresenta como sendo essencialmente a obra de um indivíduo, contrariamente ao que tem lugar nas doutrinas Tradicionais, a respeito das quais as individualidades nada contam.

(2) Ver Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII; L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. I; Le Symbolisme da Croix, cap. I e XV.

(3) Da mesma maneira, para tomar um exemplo de uma ordem mais extensa, as diversas geometrias euclidianas e não euclidianas não podem aplicar-se evidentemente a um mesmo espaço; mas isso não poderia impedir, às diferentes modalidades de espaço às que se correspondem, coexistir na integralidade da possibilidade espacial, onde cada uma delas deve realizar-se a sua maneira, segundo o que vamos explicar sobre a identidade efetiva do possível e do real.

(4) Deve entender-se bem que aqui não tomamos a palavra «existência» em seu sentido rigoroso e conforme a sua derivação etimológica, sentido que não se aplica estritamente mais que ao ser condicionado e contingente, quer dizer, à manifestação; não empregamos esta palavra, como o temos feito também às vezes com a palavra «ser» mesma, assim como dissemos no começo, mais que de uma maneira puramente analógica e simbólica, porque nos ajuda em certa medida a fazer compreender do que se trata, embora, em realidade, seja-lhe extremamente inadequado (ver Symbolisme de la Croix, cap. I e II).

(5) É então a «existência» no sentido próprio e rigoroso da palavra.

(6) Uma idéia como tal é metafisicamente injustificável, e não pode provir mais que de uma intrusão do ponto de vista «moral» em um domínio onde este não cabe; O «princípio do melhor», ao qual faz chamada Leibnitz nesta ocasião, é propriamente antimetafísico, assim como fizemos observar incidentalmente em outra parte (Le Symbolisme de la Croix, cap. II).

(7) O que queremos dizer com isto, é que não há lugar, metafisicamente, para considerar o real como constituindo uma ordem diferente do possível; mas é necessário perceber, que esta palavra «real» é por si mesma bastante vaga, se não equívoca, ao menos no uso que se faz dela na linguagem ordinária e inclusive pela maioria dos filósofos; fomos levados a empregá-la aqui porque era necessário descartar a distinção vulgar do possível e do real; entretanto, continuando, chegaremos a lhe dar uma significação muito mais precisa.

(8) É importante notar que a condição espacial não basta, por si só, para definir um corpo como tal; todo corpo é necessariamente extenso, quer dizer, está submetido ao espaço (de onde resulta concretamente sua divisibilidade indefinida, que leva ao absurdo a concepção atomista), mas, contrariamente ao que pretenderam Descartes e outros partidários de uma física «mecanicista», a extensão não constitui de modo algum toda a natureza ou a essência dos corpos.

(9) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. XXX.

(10) Ver Le Symbolisme de la Croix, cap. XI; cf. L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. II, e também cap. XII e XIII.