Consideramos agora a questão do que se chamam «provas» iniciáticas, que não são, em suma, mais que um caso particular dos ritos desta ordem, mas um caso bastante importante para merecer ser tratado à parte, ainda mais quando dá lugar também a muitas concepções errôneas; a própria palavra «prova», que se emprega em múltiplos sentidos, tem possivelmente algo que ver com todos estes equívocos, a menos, não obstante, de que algumas das acepções que tomou correntemente não provenham já de confusões prévias, o que é igualmente muito possível. Não se vê muito bem, efetivamente, por que se qualifica usualmente de «prova» a todo acontecimento penoso, nem por que se diz que alguém que sofre está sendo «provado»; é difícil ver nisso outra coisa que um simples abuso de linguagem, cuja origem, além disso, poderia não carecer de interesse procurar. Seja como for, esta idéia vulgar das «provas da vida» existe, inclusive se não responder a nada claramente definido, e é sobretudo a que deu nascimento a falsas assimilações no que concerne às provas iniciáticas, até tal ponto que alguns chegaram a não ver nestas mais que uma espécie de imagem simbólica daquelas, o que, por uma estranha inversão das coisas, daria a suposição de que são os fatos da vida humana exterior que têm um valor efetivo e os que contam verdadeiramente do próprio ponto de vista iniciático. Seria verdadeiramente muito simples caso fosse dessa maneira, e então todos os homens seriam, sem o suspeitar, candidatos à iniciação; bastaria que cada um tivesse atravessado algumas circunstâncias difíceis, o que ocorre mais ou menos a todo mundo, para alcançar esta iniciação, da qual, por outra parte, seria muito difícil dizer por quem e no nome do que seria conferida. Pensamos já haver dito o bastante sobre a verdadeira natureza da iniciação para não ter que insistir sobre o absurdo de tais conseqüências; a verdade é que a «vida ordinária», tal como se entende hoje em dia, não tem absolutamente nada que ver com a ordem iniciática, posto que corresponde a uma concepção inteiramente profana; e, ao se considerar, pelo contrário, a vida humana segundo uma concepção tradicional e normal, poder-se-ia dizer que é ela a que pode ser tomada como um símbolo, e não o inverso.
Este último ponto merece que nos detenhamos nele um instante: sabe-se que o símbolo deve ser sempre de uma ordem inferior ao que é simbolizado (o que, recordamo-lo de passagem, basta para descartar todas as interpretações «naturalistas» imaginadas pelos modernos); posto que as realidades do domínio corporal são as da ordem mais baixa e mais estreitamente limitada, não poderiam ser simbolizadas por nada e, além do mais, não têm nenhuma necessidade disso, posto que são direta e imediatamente apreensíveis para todo mundo. Pelo contrário, todo acontecimento ou fenômeno, por insignificante que seja, poderá sempre, em razão da correspondência que existe entre todas as ordens de realidades, ser tomado como símbolo de uma realidade de ordem superior, realidade da qual é de certo modo uma expressão sensível, por isso mesmo que deriva dela como uma conseqüência deriva de seu princípio; e a este título, por desprovido de valor e de interesse que seja em si mesmo, poderá apresentar uma significação profunda para aquele que é capaz de ver além das aparências imediatas. Nisso há uma transposição cujo resultado, evidentemente, já não terá nada de comum com a «vida ordinária», e nem sequer com a vida exterior de qualquer maneira que a considere, posto que esta proporcionou simplesmente o ponto de apoio que permite, a um ser dotado de aptidões especiais, sair de suas próprias limitações; e este ponto de apoio, insistimos nisso, poderá ser qualquer, posto que aqui tudo depende da natureza própria do ser que se dele sirva. Por conseguinte, e isto nos leva de novo à idéia comum das «provas», não há nada impossível em que, em alguns casos particulares, o sofrimento seja a ocasião ou o ponto de partida de um desenvolvimento de possibilidades latentes, mas exatamente como qualquer outro acontecimento pode sê-lo em outros casos; a ocasião, dizemos, e nada mais; e isso não poderia autorizar a atribuir ao sofrimento em si mesmo nenhuma virtude especial e privilegiada, apesar de todas as declamações acostumadas sobre este ponto. Além do mais, destacamos que este papel completamente contingente e acidental do sofrimento, inclusive reduzido assim a suas justas proporções, é certamente muito mais restringido na ordem iniciática que em algumas outras «realizações» de um caráter mais exterior; é sobretudo nos místicos onde acontece, de certa forma, com mais habitualidade e parece adquirir uma importância de fato que pode ser causa de ilusão (e, bem entendido, nos próprios místicos primeiro), o que se explica sem dúvida, ao menos em parte, por considerações de natureza especificamente religiosa (1). É mister adicionar ainda que a psicologia profana contribuiu certamente numa boa parte a estender sobre tudo isso as idéias mais confusas e mais errôneas; mas, em todo caso, trate-se de simples psicologia ou de misticismo, todas estas coisas não têm absolutamente nada em comum com a iniciação.
Esclarecido isso, é-nos necessário indicar também a explicação de um fato que poderia parecer, aos olhos de alguns, suscetível de dar lugar a uma objeção: embora as circunstâncias difíceis ou penosas sejam certamente, como o dizíamos faz um momento, comuns à vida de todos os homens, ocorre bastante freqüentemente que aqueles que seguem uma via iniciática as vêem multiplicar-se de uma maneira desacostumada. Este fato se deve simplesmente a uma espécie de hostilidade inconsciente do meio, hostilidade à qual já tivemos a ocasião de fazer alusão precedentemente: parece que este mundo, quer dizer, o conjunto dos seres e das coisas mesmas que constituem o domínio da existência individual, esforça-se por todos os meios em reter o que está próximo de escapar; tais reações não têm em suma nada que não seja perfeitamente normal e compreensível e, por desagradáveis que possam ser, não há certamente nada do qual se surpreender. Assim, tratam-se de obstáculos suscitados por forças adversas, e não, como às vezes imagina-se erroneamente, de «provas» queridas e impostas pelos poderes que presidem a iniciação; é necessário acabar de uma vez por todas com essas fábulas, certamente muito mais próximas dos delírios ocultistas que das realidades iniciáticas.
O que se chama as provas iniciáticas é algo completamente diferente, e nos bastará agora uma palavra para resolver definitivamente todo equívoco: são essencialmente ritos, o que as pretendidas «provas da vida» não são evidentemente de maneira nenhuma; e não poderiam existir sem este caráter ritual, nem serem substituídas por nada que não possuísse este mesmo caráter. Com isto, pode-se ver em seguida que os aspectos sobre os que mais se insiste geralmente são na realidade completamente secundários: se estas provas estivessem destinadas verdadeiramente, segundo a noção mais «simplista», a mostrar se um candidato à iniciação possui as qualidades requeridas, é mister convir que seriam muito ineficazes, e se compreende que aqueles que se atem a esta maneira de ver estejam tentados em considerá-las como sem valor; mas, normalmente, aquele que é admitido sofrê-las já deve ter sido reconhecido, por outros meios mais adequados, como «bem e devidamente qualificado»; é mister porque se trata de algo muito diferente. Dir-se-ia, então, que estas provas constituem um ensino que se dá sob uma forma simbólica, e que está destinada a ser meditada ulteriormente; isso é muito certo, mas se pode dizer outro tanto de qualquer outro rito, já que todos, como o dissemos precedentemente, têm igualmente um caráter simbólico e, por conseguinte, uma significação que se incumbe de aprofundar cada um, segundo a medida de suas próprias capacidades. A razão de ser essencial do rito é, assim como o explicamos em primeiro lugar, a eficácia que lhe é inerente; além do mais, não será necessário dizer, esta eficácia está em estreita relação com o sentido simbólico, inclusive em sua forma, mas ainda assim não é menos independente de uma compreensão atual deste sentido naqueles que tomam parte no rito. Por conseguinte, é neste ponto de vista da eficácia direta do rito onde convém colocar-se acima de tudo; o restante, qualquer que seja sua importância, não poderia vir mais que em segundo plano, e tudo o que dissemos até aqui é suficientemente explícito a este respeito para nos dispensar de nos deter mais nisso.
Para mais precisão, diremos que as provas são ritos preliminares ou preparatórios à iniciação propriamente dita; constituem seu preâmbulo necessário, de tal sorte que a própria iniciação é como sua conclusão imediata. Terá de se destacar que se revestem freqüentemente na forma de «viagens» simbólicas; além disso, anotamos este ponto só de passagem, já que não podemos pensar em nos estendermos aqui sobre o simbolismo da viagem em geral, e diremos somente que, sob este aspecto, apresentam-se como uma «busca» (ou melhor uma «gesta», como se dizia na língua da idade Média) que conduz ao ser das «trevas» do mundo profano à «luz» iniciática; mas ainda esta forma, que se compreende assim por si mesma, é de certo modo apenas acessória, por muito apropriada que seja aquilo do que se trata. No fundo, as provas são essencialmente ritos de purificação; e é isso o que dá a explicação verdadeira desta palavra «prova», que tem aqui um sentido claramente «alquímico», e não o sentido vulgar que deu lugar aos enganos que assinalamos. Agora, o que importa para conhecer o princípio fundamental do rito é considerar que a purificação se opera pelos «elementos», no sentido cosmológico deste termo, e a razão disso pode se expressar muito facilmente em algumas palavras: quem diz elemento diz simples, e quem diz simples diz incorruptível. Por conseguinte, a purificação ritual terá sempre como «suporte» material os corpos que simbolizam os elementos e que levam suas designações (já que se deve entender bem que os elementos mesmos não são, de modo algum, corpos pretendidos «simples», que, além do mais, seria uma contradição, mas sim isso a partir do qual se formam todos os corpos), ou ao menos um destes corpos; e isto se aplica igualmente na ordem tradicional exotérica, concretamente no que concerne aos ritos religiosos, onde este modo de purificação se usa não só para os seres humanos, mas também para outros seres vivos, para objetos inanimados e para lugares ou edifícios. Se a água parece ter aqui um papel preponderante em relação aos outros corpos representativos de elementos, é mister dizer, não obstante, que este papel não é exclusivo; possivelmente se poderia explicar esta preponderância destacando que a água, em todas as tradições, é, ainda mais particularmente, o símbolo da «substância universal». Seja como for, logo que há necessidade de dizer que os ritos dos quais se tratam, lustrações, abluções ou outros (compreendido aqui o rito cristão do batismo, que já indicamos entrar também nesta categoria), não têm, como tampouco o têm, além de tudo, os jejuns de caráter igualmente ritual ou a proibição de alguns mantimentos, absolutamente nada que ver com prescrições de higiene ou de limpeza corporal, segundo a concepção estúpida de alguns modernos, que, ao querer reduzir expressamente todas as coisas a uma explicação puramente humana, parecem sentir prazer em escolher sempre a interpretação mais grosseira que seja possível imaginar. É verdade que as pretendidas explicações «psicológicas», embora sejam de aparência mais sutil, não valem mais no fundo; todas desdenham igualmente considerar a única coisa que conta em realidade, ou seja, que a ação efetiva dos ritos não é uma «crença», nem uma questão teórica, mas sim um fato positivo.
Pode-se compreender agora porque, quando as provas se revestem da forma de «viagens» sucessivas, estas ficam respectivamente em relação com os diferentes elementos; e só resta indicar em que sentido deve ser entendido, do ponto de vista iniciático, o próprio termo «purificação». Trata-se de conduzir o ser a um estado de simplicidade indiferenciada, comparável, como já o dissemos precedentemente, ao da materia prima (entendida naturalmente aqui em um sentido relativo), a fim de que seja apto para receber a vibração do Fiat Lux iniciático; é mister que a influência espiritual cuja transmissão vai dar esta «primeira iluminação não encontre nele nenhum obstáculo devido a «pré-formações» inarmônicas provenientes do mundo profano (2); e por isso deve ser reduzido primeiro a este estado de matéria prima, o que, em se querendo refletir nisso um instante, mostra bastante claramente que o processo iniciático e a «Grande Obra» hermética não são na realidade mais que uma só e mesma coisa: a conquista da Luz divina, que é a única essência de toda espiritualidade