Guenon estuda“Aperçus sur L’Initiation", de René Guénon Éditions Traditionnelles, Paris - 1946

"Considerações sobre a Iniciação"
Capítulos XXV, XXVI, XXVII e XXVIII

Tradução: Igor Silva

Capítulo XXV: Das Provas Iniciáticas

Consideramos agora a questão do que se chamam «provas» iniciáticas, que não são, em suma, mais que um caso particular dos ritos desta ordem, mas um caso bastante importante para merecer ser tratado à parte, ainda mais quando dá lugar também a muitas concepções errôneas; a própria palavra «prova», que se emprega em múltiplos sentidos, tem possivelmente algo que ver com todos estes equívocos, a menos, não obstante, de que algumas das acepções que tomou correntemente não provenham já de confusões prévias, o que é igualmente muito possível. Não se vê muito bem, efetivamente, por que se qualifica usualmente de «prova» a todo acontecimento penoso, nem por que se diz que alguém que sofre está sendo «provado»; é difícil ver nisso outra coisa que um simples abuso de linguagem, cuja origem, além disso, poderia não carecer de interesse procurar. Seja como for, esta idéia vulgar das «provas da vida» existe, inclusive se não responder a nada claramente definido, e é sobretudo a que deu nascimento a falsas assimilações no que concerne às provas iniciáticas, até tal ponto que alguns chegaram a não ver nestas mais que uma espécie de imagem simbólica daquelas, o que, por uma estranha inversão das coisas, daria a suposição de que são os fatos da vida humana exterior que têm um valor efetivo e os que contam verdadeiramente do próprio ponto de vista iniciático. Seria verdadeiramente muito simples caso fosse dessa maneira, e então todos os homens seriam, sem o suspeitar, candidatos à iniciação; bastaria que cada um tivesse atravessado algumas circunstâncias difíceis, o que ocorre mais ou menos a todo mundo, para alcançar esta iniciação, da qual, por outra parte, seria muito difícil dizer por quem e no nome do que seria conferida. Pensamos já haver dito o bastante sobre a verdadeira natureza da iniciação para não ter que insistir sobre o absurdo de tais conseqüências; a verdade é que a «vida ordinária», tal como se entende hoje em dia, não tem absolutamente nada que ver com a ordem iniciática, posto que corresponde a uma concepção inteiramente profana; e, ao se considerar, pelo contrário, a vida humana segundo uma concepção tradicional e normal, poder-se-ia dizer que é ela a que pode ser tomada como um símbolo, e não o inverso.

Este último ponto merece que nos detenhamos nele um instante: sabe-se que o símbolo deve ser sempre de uma ordem inferior ao que é simbolizado (o que, recordamo-lo de passagem, basta para descartar todas as interpretações «naturalistas» imaginadas pelos modernos); posto que as realidades do domínio corporal são as da ordem mais baixa e mais estreitamente limitada, não poderiam ser simbolizadas por nada e, além do mais, não têm nenhuma necessidade disso, posto que são direta e imediatamente apreensíveis para todo mundo. Pelo contrário, todo acontecimento ou fenômeno, por insignificante que seja, poderá sempre, em razão da correspondência que existe entre todas as ordens de realidades, ser tomado como símbolo de uma realidade de ordem superior, realidade da qual é de certo modo uma expressão sensível, por isso mesmo que deriva dela como uma conseqüência deriva de seu princípio; e a este título, por desprovido de valor e de interesse que seja em si mesmo, poderá apresentar uma significação profunda para aquele que é capaz de ver além das aparências imediatas. Nisso há uma transposição cujo resultado, evidentemente, já não terá nada de comum com a «vida ordinária», e nem sequer com a vida exterior de qualquer maneira que a considere, posto que esta proporcionou simplesmente o ponto de apoio que permite, a um ser dotado de aptidões especiais, sair de suas próprias limitações; e este ponto de apoio, insistimos nisso, poderá ser qualquer, posto que aqui tudo depende da natureza própria do ser que se dele sirva. Por conseguinte, e isto nos leva de novo à idéia comum das «provas», não há nada impossível em que, em alguns casos particulares, o sofrimento seja a ocasião ou o ponto de partida de um desenvolvimento de possibilidades latentes, mas exatamente como qualquer outro acontecimento pode sê-lo em outros casos; a ocasião, dizemos, e nada mais; e isso não poderia autorizar a atribuir ao sofrimento em si mesmo nenhuma virtude especial e privilegiada, apesar de todas as declamações acostumadas sobre este ponto. Além do mais, destacamos que este papel completamente contingente e acidental do sofrimento, inclusive reduzido assim a suas justas proporções, é certamente muito mais restringido na ordem iniciática que em algumas outras «realizações» de um caráter mais exterior; é sobretudo nos místicos onde acontece, de certa forma, com mais habitualidade e parece adquirir uma importância de fato que pode ser causa de ilusão (e, bem entendido, nos próprios místicos primeiro), o que se explica sem dúvida, ao menos em parte, por considerações de natureza especificamente religiosa (1). É mister adicionar ainda que a psicologia profana contribuiu certamente numa boa parte a estender sobre tudo isso as idéias mais confusas e mais errôneas; mas, em todo caso, trate-se de simples psicologia ou de misticismo, todas estas coisas não têm absolutamente nada em comum com a iniciação.

Esclarecido isso, é-nos necessário indicar também a explicação de um fato que poderia parecer, aos olhos de alguns, suscetível de dar lugar a uma objeção: embora as circunstâncias difíceis ou penosas sejam certamente, como o dizíamos faz um momento, comuns à vida de todos os homens, ocorre bastante freqüentemente que aqueles que seguem uma via iniciática as vêem multiplicar-se de uma maneira desacostumada. Este fato se deve simplesmente a uma espécie de hostilidade inconsciente do meio, hostilidade à qual já tivemos a ocasião de fazer alusão precedentemente: parece que este mundo, quer dizer, o conjunto dos seres e das coisas mesmas que constituem o domínio da existência individual, esforça-se por todos os meios em reter o que está próximo de escapar; tais reações não têm em suma nada que não seja perfeitamente normal e compreensível e, por desagradáveis que possam ser, não há certamente nada do qual se surpreender. Assim, tratam-se de obstáculos suscitados por forças adversas, e não, como às vezes imagina-se erroneamente, de «provas» queridas e impostas pelos poderes que presidem a iniciação; é necessário acabar de uma vez por todas com essas fábulas, certamente muito mais próximas dos delírios ocultistas que das realidades iniciáticas.

O que se chama as provas iniciáticas é algo completamente diferente, e nos bastará agora uma palavra para resolver definitivamente todo equívoco: são essencialmente ritos, o que as pretendidas «provas da vida» não são evidentemente de maneira nenhuma; e não poderiam existir sem este caráter ritual, nem serem substituídas por nada que não possuísse este mesmo caráter. Com isto, pode-se ver em seguida que os aspectos sobre os que mais se insiste geralmente são na realidade completamente secundários: se estas provas estivessem destinadas verdadeiramente, segundo a noção mais «simplista», a mostrar se um candidato à iniciação possui as qualidades requeridas, é mister convir que seriam muito ineficazes, e se compreende que aqueles que se atem a esta maneira de ver estejam tentados em considerá-las como sem valor; mas, normalmente, aquele que é admitido sofrê-las já deve ter sido reconhecido, por outros meios mais adequados, como «bem e devidamente qualificado»; é mister porque se trata de algo muito diferente. Dir-se-ia, então, que estas provas constituem um ensino que se dá sob uma forma simbólica, e que está destinada a ser meditada ulteriormente; isso é muito certo, mas se pode dizer outro tanto de qualquer outro rito, já que todos, como o dissemos precedentemente, têm igualmente um caráter simbólico e, por conseguinte, uma significação que se incumbe de aprofundar cada um, segundo a medida de suas próprias capacidades. A razão de ser essencial do rito é, assim como o explicamos em primeiro lugar, a eficácia que lhe é inerente; além do mais, não será necessário dizer, esta eficácia está em estreita relação com o sentido simbólico, inclusive em sua forma, mas ainda assim não é menos independente de uma compreensão atual deste sentido naqueles que tomam parte no rito. Por conseguinte, é neste ponto de vista da eficácia direta do rito onde convém colocar-se acima de tudo; o restante, qualquer que seja sua importância, não poderia vir mais que em segundo plano, e tudo o que dissemos até aqui é suficientemente explícito a este respeito para nos dispensar de nos deter mais nisso.

Para mais precisão, diremos que as provas são ritos preliminares ou preparatórios à iniciação propriamente dita; constituem seu preâmbulo necessário, de tal sorte que a própria iniciação é como sua conclusão imediata. Terá de se destacar que se revestem freqüentemente na forma de «viagens» simbólicas; além disso, anotamos este ponto só de passagem, já que não podemos pensar em nos estendermos aqui sobre o simbolismo da viagem em geral, e diremos somente que, sob este aspecto, apresentam-se como uma «busca» (ou melhor uma «gesta», como se dizia na língua da idade Média) que conduz ao ser das «trevas» do mundo profano à «luz» iniciática; mas ainda esta forma, que se compreende assim por si mesma, é de certo modo apenas acessória, por muito apropriada que seja aquilo do que se trata. No fundo, as provas são essencialmente ritos de purificação; e é isso o que dá a explicação verdadeira desta palavra «prova», que tem aqui um sentido claramente «alquímico», e não o sentido vulgar que deu lugar aos enganos que assinalamos. Agora, o que importa para conhecer o princípio fundamental do rito é considerar que a purificação se opera pelos «elementos», no sentido cosmológico deste termo, e a razão disso pode se expressar muito facilmente em algumas palavras: quem diz elemento diz simples, e quem diz simples diz incorruptível. Por conseguinte, a purificação ritual terá sempre como «suporte» material os corpos que simbolizam os elementos e que levam suas designações (já que se deve entender bem que os elementos mesmos não são, de modo algum, corpos pretendidos «simples», que, além do mais, seria uma contradição, mas sim isso a partir do qual se formam todos os corpos), ou ao menos um destes corpos; e isto se aplica igualmente na ordem tradicional exotérica, concretamente no que concerne aos ritos religiosos, onde este modo de purificação se usa não só para os seres humanos, mas também para outros seres vivos, para objetos inanimados e para lugares ou edifícios. Se a água parece ter aqui um papel preponderante em relação aos outros corpos representativos de elementos, é mister dizer, não obstante, que este papel não é exclusivo; possivelmente se poderia explicar esta preponderância destacando que a água, em todas as tradições, é, ainda mais particularmente, o símbolo da «substância universal». Seja como for, logo que há necessidade de dizer que os ritos dos quais se tratam, lustrações, abluções ou outros (compreendido aqui o rito cristão do batismo, que já indicamos entrar também nesta categoria), não têm, como tampouco o têm, além de tudo, os jejuns de caráter igualmente ritual ou a proibição de alguns mantimentos, absolutamente nada que ver com prescrições de higiene ou de limpeza corporal, segundo a concepção estúpida de alguns modernos, que, ao querer reduzir expressamente todas as coisas a uma explicação puramente humana, parecem sentir prazer em escolher sempre a interpretação mais grosseira que seja possível imaginar. É verdade que as pretendidas explicações «psicológicas», embora sejam de aparência mais sutil, não valem mais no fundo; todas desdenham igualmente considerar a única coisa que conta em realidade, ou seja, que a ação efetiva dos ritos não é uma «crença», nem uma questão teórica, mas sim um fato positivo.

Pode-se compreender agora porque, quando as provas se revestem da forma de «viagens» sucessivas, estas ficam respectivamente em relação com os diferentes elementos; e só resta indicar em que sentido deve ser entendido, do ponto de vista iniciático, o próprio termo «purificação». Trata-se de conduzir o ser a um estado de simplicidade indiferenciada, comparável, como já o dissemos precedentemente, ao da materia prima (entendida naturalmente aqui em um sentido relativo), a fim de que seja apto para receber a vibração do Fiat Lux iniciático; é mister que a influência espiritual cuja transmissão vai dar esta «primeira iluminação não encontre nele nenhum obstáculo devido a «pré-formações» inarmônicas provenientes do mundo profano (2); e por isso deve ser reduzido primeiro a este estado de matéria prima, o que, em se querendo refletir nisso um instante, mostra bastante claramente que o processo iniciático e a «Grande Obra» hermética não são na realidade mais que uma só e mesma coisa: a conquista da Luz divina, que é a única essência de toda espiritualidade

Notas:

(1) Além disso, haveria lugar para se perguntar se esta exaltação do sofrimento é verdadeiramente inerente à forma especial da tradição cristã, ou se não lhe foi «sobreposta» de certo modo pelas tendências naturais do temperamento ocidental.

(2) Por conseguinte, a purificação é também, a este respeito, o que se chamaria na linguagem cabalística uma «dissolução das cascas»; em conexão com este ponto, assinalamos igualmente em outra parte a significação simbólica do «despojamento dos metais». Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, capítulo XXII.

Capítulo XXVI: Da morte Iniciática

Outra questão que parece tão pouco compreendida quanto a das provas pela maior parte de nossos contemporâneos que têm a pretensão de tratar destas coisas, é a do que se chama a «morte iniciática»; assim, ocorreu-nos encontrar freqüentemente a este propósito, uma expressão como a de «morte fictícia», que dá testemunho da mais completa incompreensão das realidades desta ordem. Aqueles que se expressam assim não vêem evidentemente mais que a exterioridade do rito, e não têm nenhuma idéia dos efeitos que deve produzir sobre aqueles que estão qualificados verdadeiramente; de outro modo, dar-se-iam conta de que esta «morte», muito longe de ser «fictícia», é, pelo contrário, num sentido, mais real inclusive que a morte entendida no sentido ordinário da palavra, já que é evidente que o profano que morre não se faz iniciado só por isso, e que a distinção da ordem profana (que compreende aqui não só o que está desprovido do caráter tradicional, mas também todo o exoterismo) e da ordem iniciática é, para falar a verdade, a única que transpõe as contingências inerentes aos estados particulares do ser e a única que tem, por conseguinte, um valor profundo e permanente do ponto de vista universal. Contentar-nos-emos recordando, a este respeito, que todas as tradições insistem sobre a diferença essencial que existe nos estados póstumos do ser humano conforme se trate do profano ou do iniciado; se as conseqüências da morte, tomada em sua acepção habitual, estão condicionadas assim por esta distinção, é porque a mudança que dá acesso à ordem iniciática corresponde a um grau superior de realidade.

Entenda-se bem que a palavra «morte» deve se tomar aqui em seu sentido mais geral, segundo o qual podemos dizer que toda mudança de estado, qualquer que seja, é simultaneamente uma morte e um nascimento, conforme se considere por um lado ou por outro: morte em relação ao estado antecedente, nascimento em relação ao estado conseqüente. A iniciação se descreve geralmente como um «segundo nascimento», o que é efetivamente; mas este «segundo nascimento» implica necessariamente a morte ao mundo profano e a segue em certo modo imediatamente, posto que nisso não há, falando propriamente, mais que as duas caras de uma mesma mudança de estado. Quanto ao simbolismo do rito, apoiar-se-á naturalmente na analogia que existe entre todas as mudanças de estado; em razão desta analogia, a morte e o nascimento no sentido ordinário simbolizam, eles mesmos, a morte e o nascimento iniciáticos, posto que as imagens que se tiram deles são transpostas, pelo rito, à outra ordem de realidade. Há lugar para se destacar concretamente, sobre este ponto, que toda mudança de estado deve ser considerada como acontecendo nas trevas, o que dá a explicação do simbolismo da cor negra em relação com aquilo do que se trata (1): o candidato à iniciação deve passar pela escuridão antes de acessar à «verdadeira luz». É nesta fase de escuridão onde se efetua o que se designa como a «descida aos Infernos», da qual já falamos mais amplamente em outra parte (2): poder-se-ia dizer que é uma espécie de «recapitulação» dos estados antecedentes, através do que as possibilidades que se referem ao estado profano serão definitivamente esgotadas, a fim de que o ser possa desenvolver após, livremente, as possibilidades de ordem superior que leva nele, e cuja realização pertence propriamente ao domínio iniciático.

Por outra parte, posto que considerações semelhantes são aplicáveis a toda mudança de estado, e posto que os graus ulteriores e sucessivos da iniciação correspondem naturalmente também a mudanças de estado, pode-se dizer que haverá ainda, para acessar cada um deles, morte e nascimento, embora a «ruptura», por assim dizer, seja menos clara e de uma importância menos fundamental que para a primeira iniciação, quer dizer, para a passagem da ordem profana à ordem iniciática. Além do mais, não é necessário dizer que as mudanças sofridas pelo ser no curso de seu desenvolvimento são realmente em multidão indefinida; por conseguinte, os graus iniciáticos conferidos ritualmente, em qualquer forma tradicional que seja, não podem corresponder mais que a uma espécie de classificação geral das principais etapas a percorrer, e cada um deles pode resumir em si mesmo todo um conjunto de etapas secundárias e intermediárias. Mas, neste processo, há um ponto mais particularmente importante, onde o simbolismo da morte deve aparecer de novo da maneira mais explícita; e isto requer ainda algumas explicações.

O «segundo nascimento», entendido como correspondente à primeira iniciação, é propriamente, como já o dissemos, o que se pode chamar de regeneração psíquica; e é efetivamente na ordem psíquica, quer dizer, na ordem onde se situam as modalidades sutis do estado humano, onde devem se efetuar as primeiras fases do desenvolvimento iniciático; mas estas não constituem uma meta em si mesmas, e não são mais que preparatórias em relação à realização de possibilidades de uma ordem mais elevada, ou seja, da ordem espiritual no verdadeiro sentido desta palavra. Por conseguinte, o ponto do processo iniciático ao qual acabamos de fazer alusão é o que marcará a passagem da ordem psíquica à ordem espiritual; e esta passagem poderia ser considerada mais especialmente como constituindo uma «segunda morte» e um «terceiro nascimento» (3). Convém adicionar que este «terceiro nascimento» será representado mais como uma «ressurreição» que como um nascimento ordinário, porque aqui já não se trata de um começo no mesmo sentido que a primeira iniciação; as possibilidades já desenvolvidas, e adquiridas de uma vez por todas, deverão voltar a se encontrar depois desta passagem, mas «transformadas», de uma maneira análoga àquela em que o «corpo glorioso» ou «corpo de ressurreição» representa a «transformação» das possibilidades humanas, além das condições limitantes que definem o modo de existência da individualidade como tal.

A questão, levada assim ao essencial, é em suma bastante simples; o que a complica, são, como ocorre quase sempre, as confusões que se cometem ao lhe mesclar considerações que se referem na realidade a algo completamente diferente. É o que se produz concretamente sobre o tema da «segunda morte», à qual muitos pretendem dar um significado particularmente irritante, porque não sabem fazer algumas distinções essenciais entre os diversos casos onde pode empregar-se esta expressão. A «segunda morte», segundo o que acabamos de dizer, não é outra coisa que a «morte psíquica»; pode-se considerar este fato como suscetível de se produzir a, mais ou menos, longo prazo depois da morte corporal, para o homem ordinário, fora de todo processo iniciático; mas então esta «segunda morte» não dará acesso ao domínio espiritual, e o ser, ao sair do estado humano, passará simplesmente a outro estado individual de manifestação. Nisso há uma eventualidade temível para o profano, para quem são, em tudo, vantagens manter-se no que chamamos os «prolongamentos» do estado humano, o que, além do mais, é em todas as tradições, a principal razão de ser dos ritos funerários. Mas é muito diferente para o iniciado, posto que este não realiza as próprias possibilidades do estado humano senão para chegar a transpô-las, e posto que deve sair necessariamente deste estado, sem ter necessidade de esperar para isso à dissolução da aparência corporal, para passar aos estados superiores.

Adicionaremos ainda, para não omitir nenhuma possibilidade, que há outro aspecto desfavorável da «segunda morte», que se refere propriamente à «contra-iniciação»; esta, efetivamente, imita em suas fases à iniciação verdadeira, mas seus resultados são, de certa forma, o contrário desta e, evidentemente, não pode conduzir em nenhum caso ao domínio espiritual, posto que, ao contrário, não faz mais que afastar-se dele cada vez mais. Quando o indivíduo que segue esta via chega à «morte psíquica», não se encontra em uma situação exatamente semelhante à do profano puro e simples, senão muito pior ainda, em razão do desenvolvimento que deu às possibilidades mais inferiores da ordem sutil; mas não insistiremos mais nisso, e nos contentaremos remetendo às alusões que fizemos a respeito em outras ocasiões (4), já que, para falar a verdade, esse é um caso que não pode apresentar interesse mais que sob um ponto de vista muito especial, e que não tem absolutamente nada que ver com a verdadeira iniciação. A sorte dos «magos negros», como se diz usualmente, não concerne mais que a eles mesmos, e seria no mínimo inútil proporcionar um alimento às divagações um pouco fantásticas às quais este tema dá lugar muito freqüentemente; não convém ocupar-se deles mais que para denunciar seus desmandos quando as circunstâncias o exigem, e para se opor a eles na medida do possível; e, infelizmente, em uma época como a nossa, esses desmandos são singularmente mais extensos do que poderiam imaginar aqueles que não tiveram a ocasião de dar-se conta disso diretamente.

Notas:

(1) Esta explicação convém igualmente no que concerne às fases da «Grande Obra» hermética, que, como já o indicamos, correspondem estritamente às da iniciação.

(2) Ver O Esoterismo de Dante.

(3) No simbolismo maçônico, corresponde à exaltação ao grau de Mestre.

(4) Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, capítulos XXXV e XXXVIII.

Capítulo XXVII: Nomes Profanos e Nomes Iniciáticos

Ao falar anteriormente dos diversos gêneros de segredos de ordem mais ou menos exterior que podem existir em algumas organizações, iniciáticas ou não, mencionamos entre outros o segredo que recai sobre os nomes de seus membros; e, a primeira vista, pode parecer que este seja dos que terá que se colocar entre as simples medidas de precaução destinadas a defender-se contra os perigos que podem provir de inimigos quaisquer, sem que haja lugar a procurar nisso uma razão mais profunda. De fato, a coisa é certamente assim em muitos dos casos, e ao menos naqueles onde se trata de organizações secretas puramente profanas; mas, não obstante, quando se trata de organizações iniciáticas, pode ser que haja nisso outra coisa, e que este segredo, como todo o resto, revista um caráter verdadeiramente simbólico. Há tanto interesse em deter-se um pouco sobre este ponto, quanto que a curiosidade pelos nomes é uma das manifestações mais ordinárias do «individualismo» moderno, e quanto que, quando pretende se aplicar ao domínio iniciático, dá testemunho ainda de um grave desconhecimento das realidades desta ordem, e de uma irritante tendência a querer reduzi-las ao nível das contingências profanas.

O «historicismo» de nossos contemporâneos apenas estará satisfeito se puser nomes próprios a todas as coisas, quer dizer, se as atribui a individualidades humanas determinadas, segundo a concepção mais restringida que alguém possa fazer delas, quer dizer, essa concepção que tem curso na vida profana e que não tem em conta mais que a modalidade corporal unicamente. Não obstante, o fato de que a origem das organizações iniciáticas não possa ser atribuída nunca a tais individualidades já deveria dar o que refletir a este respeito; e, quando se trata das de ordem mais profunda, seus próprios membros não podem ser identificados, não porque dissimulem, o que, por muito cuidado que ponham nisso, não poderia ser sempre eficaz, mas sim porque, em todo rigor, não são «personagens» no sentido em que o quereriam os historiadores, de sorte que, por isso mesmo, qualquer pessoa que creia poder nomeá-los estará inevitavelmente no engano (1). Antes de entrar em explicações mais amplas sobre esta questão, diremos que algo análogo se encontra, guardadas todas as proporções, em todos os graus da escala iniciática, inclusive nos mais elementares, de sorte que, se uma organização iniciática for realmente o que deve ser, a designação de qualquer um de seus membros por um nome profano, inclusive se for exata «materialmente», estará sempre afetada pela falsidade, quase como o estaria a confusão entre um ator e um personagem cujo papel representa, e ao que alguém se obstinasse em lhe aplicar seu nome em todas as circunstâncias de sua existência.

Já insistimos sobre a concepção da iniciação como um «segundo nascimento»; é precisamente por uma conseqüência lógica imediata desta concepção que, em numerosas organizações, o iniciado recebe um nome novo, diferente de seu nome profano; e não há nisso uma simples formalidade, já que este nome deve corresponder a uma modalidade igualmente diferente de seu ser, essa cuja realização se faz possível pela ação da influência espiritual transmitida pela iniciação; além do mais, pode-se destacar que, inclusive do ponto de vista exotérico, a mesma prática existe, com uma razão análoga, em algumas ordens religiosas. Por conseguinte, teremos para o mesmo ser duas modalidades diferentes, uma que se manifesta no mundo profano, e a outra no interior da organização iniciática (2); e, normalmente, cada uma delas deve ter seu próprio nome, dado que o de uma não convém à outra, posto que se situam em duas ordens realmente diferentes.

Pode-se chegar mais longe: a todo grau de iniciação efetiva corresponde também outra modalidade diferente do ser; assim, este deveria receber um nome novo para cada um destes graus e, inclusive se este nome não se lhe dá de fato, não por isso exista menos, pode-se dizer, como expressão característica desta modalidade, pois um nome não é outra coisa que isso na realidade. Agora, como estas modalidades estão hierarquizadas no ser, ocorre igualmente com os nomes que as representem respectivamente; assim, um nome será tão mais verdadeiro quanto mais profundo seja a ordem da modalidade à qual corresponda, posto que, por isso mesmo, expressará algo que estará mais próximo à verdadeira essência do ser. De modo que, contrariamente à opinião vulgar, é o nome profano o que, ao estar vinculado à modalidade mais exterior e à manifestação mais superficial, é o menos verdadeiro de todos; e a coisa é sobretudo assim em uma civilização que perdeu todo caráter tradicional, e onde tal nome não expressa quase nada da natureza do ser. Quanto ao que se pode chamar o verdadeiro nome do ser humano, o mais verdadeiro de todos, nome que, além do mais, é propriamente um «número», no sentido pitagórico e cabalístico desta palavra, é o que corresponde à modalidade central de sua individualidade, quer dizer, à sua restauração ao «estado primitivo», já que é esse o que constitui a expressão integral de sua essência individual.

Destas considerações resulta que um nome iniciático não tem que ser conhecido no mundo profano, posto que representa uma modalidade do ser que não poderia manifestar-se neste, de sorte que seu conhecimento cairia de certo modo no vazio, ao não encontrar nada ao que possa aplicar-se realmente. Inversamente, o nome profano representa uma modalidade da qual o ser deve despojar-se quando entra no domínio iniciático, e que, para ele, já não é então mais que um simples papel que representa no exterior; assim, este nome não poderia valer nesse domínio, em relação ao qual, o que expressa, é de certo modo inexistente. Além do mais, não é necessário dizer que estas razões profundas da distinção, e, por assim dizer, da separação do nome iniciático e do nome profano, como designando «entidades» efetivamente diferentes, podem não ser conscientes por toda parte onde a mudança de nome se pratica de fato; pode ocorrer que, à conseqüência de uma degeneração de algumas organizações iniciáticas, chegue-se nelas para tentar explicá-lo por motivos completamente exteriores, apresentando-o, por exemplo, como uma simples medida de prudência, o que, em suma, vale quase tão pouco quanto as interpretações do ritual e do simbolismo num sentido moral ou político, o que não impede de modo algum que tenha havido algo muito diferente na origem. Pelo contrário, quando não se tratar mais que de organizações profanas, estes mesmos motivos exteriores são os motivos realmente válidos, e não poderia haver nada mais, a menos, não obstante, de que não haja também, em alguns casos, como já o dissemos a propósito dos ritos, o desejo de imitar os usos das organizações iniciáticas, mas, naturalmente, sem que isso possa responder então à menor realidade; e isto mostra ainda uma vez mais que, de fato, aparências semelhantes podem recobrir as coisas mais diferentes.

Agora, tudo o que dissemos até aqui desta multiplicidade de nomes, que representam outras tantas modalidades do ser, refere-se unicamente a extensões da individualidade humana, compreendidas em sua realização integral, ou seja, iniciaticamente, ao domínio dos «mistérios menores», assim como o explicaremos a seguir de uma maneira mais precisa. Quando o ser passa aos «mistérios maiores», quer dizer, à realização dos estados supra-individuais, passa por isso mesmo além do nome e da forma, posto que, como o ensina a doutrina hindu, estes (nâma-rûpa) são as expressões respectivas da essência e da substância da individualidade. Por conseguinte, tal ser, verdadeiramente, já não tem nome, posto que o nome é uma limitação da qual, daqui para frente, está liberado; se houver lugar para isso, poderá tomar qualquer nome para manifestar-se no domínio individual, mas esse nome não lhe afetará de maneira nenhuma e lhe será tão «acidental» como uma simples vestimenta que se pode tirar ou trocar à vontade. Nisso está a explicação do que dizíamos mais atrás: quando se trata de organizações desta ordem, seus membros não têm nome, e, além do mais, elas mesmas tampouco o têm; nestas condições, o que há ainda que possa ser presa da curiosidade profana? Inclusive se ocorrer desta chegar a descobrir alguns nomes, não terão mais que um valor completamente convencional; e isso se pode produzir, muito freqüentemente, em organizações de ordem inferior a essa, nas que se empregam, por exemplo, «assinaturas coletivas», para representar, seja a estas mesmas organizações em seu conjunto, ou a funções consideradas independentemente das individualidades que as desempenham. Tudo isso, repetimo-lo, resulta da própria natureza das coisas da ordem iniciática, onde as considerações individuais não contam para nada, e não tem como objetivo desviar algumas investigações, embora, essa seja uma conseqüência de fato; mas, como poderiam supor os profanos que haja nisso outra coisa que intenções tais como as que eles mesmos podem ter?

Daí vem também, em muitos casos, a dificuldade ou inclusive a impossibilidade de identificar os autores de obras que têm um caráter iniciático (3): ou são inteiramente anônimas, ou, o que equivale ao mesmo, não têm como assinatura mais que uma marca simbólica ou um nome convencional; além do mais, não há nenhuma razão para que seus autores tenham exercido no mundo profano um papel aparente qualquer. Quando tais obras, ao contrário, levam o nome de um indivíduo do qual se sabe que já viveu efetivamente, possivelmente não estejamos muito mais avançados, já que não é por causa disso que se saberá exatamente de que se trata: esse indivíduo pode ter sido apenas um porta-voz, inclusive uma máscara; em caso semelhante, sua pretendida obra poderá implicar conhecimentos que ele não terá tido nunca realmente; pode não ser mais que um iniciado de um grau inferior, ou inclusive um simples profano que terá sido escolhido por razões contingentes quaisquer (4), e então, evidentemente, não é o autor o que importa, mas sim unicamente a organização que lhe inspirou.

Além do mais, inclusive na ordem profana, alguém pode estranhar a importância atribuída em nossos dias à individualidade de um autor e a tudo o que se lhe relaciona de perto ou de longe; depende de algum jeito dessas coisas o valor da obra? Por outro lado, é fácil constatar que a preocupação de dar seu nome a uma obra qualquer se encontra menor em uma civilização quanto mais estreitamente ligada ela está aos princípios tradicionais, dos quais, efetivamente, o «individualismo», sob todas suas formas, é verdadeiramente a própria negação. Pode-se compreender sem esforço que tudo isto encaixa, e não queremos insistir mais nisso, ainda mais quando se tratam de coisas sobre as quais já nos explicamos freqüentemente em outras partes; mas não seria inútil sublinhar ainda, nesta ocasião, o papel do espírito anti-tradicional, característico da época moderna, como causa principal da incompreensão das realidades iniciáticas e da tendência geral de às reduzir aos pontos de vista profanos. É este espírito o que, sob nomes tais como os de «humanismo» e «racionalismo», esforça-se constantemente, há vários séculos, em reduzir tudo às proporções da individualidade humana vulgar, queremos dizer da porção restringida que conhecem dela os profanos, e em negar tudo o que transpõe este domínio estreitamente limitado e, por conseguinte, em particular, tudo o que depende da iniciação, em qualquer grau que seja. Há pouca necessidade de se destacar que as considerações que acabamos de expor aqui se apóiam essencialmente sobre a doutrina metafísica dos estados múltiplos do ser, da qual são uma aplicação direta ; como poderia ser compreendida esta doutrina por aqueles que pretendem fazer do homem individual, e inclusive unicamente de sua modalidade corporal, um todo completo e fechado, um ser que se basta a si mesmo, em lugar de ver nisso apenas o que é na realidade, a manifestação contingente e transitória de um ser num domínio muito particular entre a multidão indefinida dos domínios cujo conjunto constitui a Existência universal, e aos quais correspondem, para este mesmo ser, outras tantas modalidades e estados diferentes, dos quais lhe será possível tomar consciência seguindo precisamente a via que se lhe abre pela iniciação?

Notas:

1. Este caso é concretamente, no ocidente, o dos verdadeiros rosa-cruzes.

2. Além do mais, a primeira deve se considerar como tendo apenas uma existência ilusória em relação à segunda, não só em razão da diferença dos graus de realidade aos quais se referem respectivamente, mas senão também porque, como o explicamos anteriormente, o «segundo nascimento» implica necessariamente a «morte» da individualidade profana, que assim só pode subsistir a título de simples aparência exterior.

3 Além de tudo, isto é suscetível de uma aplicação muito geral em todas as civilizações tradicionais, pelo fato de que o caráter iniciático está vinculado nelas aos próprios ofícios, de sorte que toda obra de arte (ou o que os modernos chamariam assim), de qualquer gênero que seja, participa dele necessariamente em certa medida. Sobre esta questão, que é a do sentido superior e tradicional do «anonimato», ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, capítulo IX.

4 Por exemplo, parece que a coisa tenha sido assim, ao menos em parte, para as novelas do Santo Graal; é também a uma questão deste gênero à qual se remetem, no fundo, todas as discussões às quais deu lugar à «personalidade» de Shakespeare, embora, de fato, aqueles que se ocuparam delas não tenham sabido levar nunca esta questão a seu verdadeiro terreno, de sorte que somente a têm feito embrulhar de uma maneira quase inextricável.

Capítulo XXVIII: O Simbolismo do Teatro

Comparamos faz um momento a confusão de um ser com sua manifestação exterior e profana, à qual se cometeria ao querer identificar um ator com um personagem cujo papel representa; para fazer compreender até que ponto esta comparação é exata, algumas considerações gerais sobre o simbolismo do teatro não estarão aqui fora de propósito, embora não se apliquem de uma maneira exclusiva ao que concerne propriamente ao domínio iniciático. Bem entendido, este simbolismo pode ser vinculado ao primeiro caráter das artes e dos ofícios, que possuíam todos um valor desta ordem pelo fato de que estavam vinculados a um princípio superior, do qual derivavam a título de aplicações contingentes, e que não se tornaram profanos, como o explicamos muito freqüentemente, mais que pela conseqüência da degeneração espiritual da humanidade no curso da marcha descendente de seu ciclo histórico.

De uma maneira geral, pode se dizer que o teatro é um símbolo da manifestação, cujo caráter ilusório expressa tão perfeitamente quanto é possível (1); e este simbolismo pode ser considerado, seja do ponto de vista do ator, quanto do próprio teatro. O ator é um símbolo do «Si mesmo» ou da personalidade que se manifesta por uma série indefinida de estados e de modalidades, que podem ser considerados como outros tantos papéis diferentes; e é necessário notar a importância que tinha o uso antigo da máscara para a perfeita exatidão deste simbolismo (2). Sob a máscara, efetivamente, o ator permanece ele mesmo em todos seus papéis, como a personalidade é «não afetada» por todas suas manifestações; a supressão da máscara, ao contrário, obriga ao ator a modificar sua própria fisionomia e assim parece alterar de algum jeito sua identidade essencial. Não obstante, em todos os casos, o ator permanece no fundo outra coisa que o que parece ser, do mesmo modo que a personalidade é outra coisa que os múltiplos estados manifestados, que não são mais que as aparências exteriores e mutáveis das quais se reveste para realizar, segundo os modos diversos que convêm a sua natureza, as possibilidades indefinidas que contém em si mesmo na permanente atualidade da não manifestação.

Se passarmos a outro ponto de vista, podemos dizer que o teatro é uma imagem do mundo: um e outro são propriamente uma «representação», já que o mundo mesmo, que não existe mais que como uma conseqüência e uma expressão do Princípio, de que depende essencialmente em tudo o que é, pode ser considerado como simbolizando, a sua maneira, a ordem primordial, e este caráter simbólico lhe confere, além do mais, um valor superior ao que é em si mesmo, posto que é por isso que participa de um grau de realidade mais alto (3). Em árabe, o teatro é designado pela palavra tamthîl, que, como todas aquelas que derivam da mesma raiz mathl, tem propriamente os sentidos de semelhança, comparação, imagem ou figura; e alguns teólogos muçulmanos empregam a expressão alam tamthîl, que se poderia traduzir por «mundo figurado» ou por «mundo de representação», para designar tudo o que, nas Escrituras sagradas, descreve-se em termos simbólicos e que não deve ser tomado em sentido literal. É destacável que alguns aplicam concretamente esta expressão ao que concerne aos anjos e aos demônios, que «representam» efetivamente os estados superiores e inferiores do ser, e que, além do mais, evidentemente só podem ser descritos simbolicamente com termos tomados ao mundo sensível; e, por uma coincidência ao menos singular, sabe-se, por outra parte, o papel considerável que tinham precisamente estes anjos e estes demônios no teatro religioso da idade Média ocidental.

O teatro, efetivamente, não está forçosamente limitado a representar o mundo humano, quer dizer, um só estado de manifestação; pode representar também ao mesmo tempo os mundos superiores e inferiores. Por esta razão, nos «mistérios» da idade Média, a cena estava dividida em vários andares que correspondiam aos diferentes mundos, geralmente repartidos segundo a divisão ternária: céu, terra, inferno; e ao se representar a ação simultaneamente nestas diferentes divisões, representava efetivamente a simultaneidade essencial dos estados do ser. Os modernos, que já não compreendem nada deste simbolismo, chegaram a considerar como uma «ingenuidade», por não dizer como uma estupidez, o que constituía aqui, precisamente, seu sentido mais profundo; e o que é surpreendente, é a rapidez com a que se desenvolveu esta incompreensão, tão chamativa já nos escritores do século XVII; esta ruptura radical entre a mentalidade da idade Média e a dos tempos modernos não é certamente um dos menores enigmas da história.

Posto que acabamos de falar dos «mistérios», não acreditamos inútil assinalar a singularidade desta denominação com duplo sentido: com todo o rigor etimológico, dever-se-ia escrever «ministérios», já que esta palavra deriva do latim ministerium, que significa «ofício» ou «função», o que indica claramente até que ponto, na origem, as representações teatrais deste tipo eram consideradas como se integrassem a celebração das festas religiosas (4). Mas, o que é estranho, este nome se contraiu e foi abreviado para se tornar exatamente homônimo de «mistérios», e de ser confundido finalmente com esta outra palavra, de origem grega e de derivação completamente diferente; é só por alusão aos «mistérios» da religião, postos em cena nas peças assim designadas, que esta assimilação pôde produzir-se? Isto pode ser sem dúvida uma razão bastante plausível; mas por outro lado, ao se pensar que representações simbólicas análogas tiveram lugar nos «mistérios» da Antigüidade, na Grécia e provavelmente também no Egito (5), pode-se estar tentado ver nisso algo que se remonta muito mais longe, e como um indício da continuidade de certa tradição esotérica e iniciática, que se afirmava ao exterior, a intervalos mais ou menos espaçados, por manifestações semelhantes, com a adaptação requerida pela diversidade das circunstâncias dos tempos e os lugares (6).

Além do mais, bastante freqüentemente, em outras ocasiões, já tivemos que mostrar a importância, como procedimento da linguagem simbólica, das semelhanças fonéticas entre termos filologicamente distintos; trata-se de algo que, na verdade, não tem nada de arbitrário, pensem o que quiserem disso a maior parte de nossos contemporâneos, e que se parece bastante diretamente aos modos de interpretação que dependem do nirukta hindu: mas os segredos da constituição íntima da linguagem estão tão completamente perdidos hoje em dia que quase não é possível fazer alusão a eles sem que cada qual se imagine que se tratam de «falsas etimologias», inclusive de vulgares «jogos de palavras»; e Platão mesmo, que às vezes recorreu a este gênero de interpretação, como o observamos incidentalmente a propósito dos «mitos», não encontra graça diante da «crítica» pseudocientífica dos espíritos limitados pelos preconceitos modernos.

Para terminar estas poucas considerações, indicaremos ainda, no simbolismo do teatro, outro ponto de vista, que se refere ao autor dramático: posto que os diferentes personagens são como produções mentais deste, podem se considerar como representando modificações secundárias e, de certo modo, como prolongamentos de si mesmo, quase da mesma maneira que as formas sutis produzidas no estado de sonho . Além do mais, a mesma consideração se aplicaria evidentemente à produção de toda obra de imaginação, de qualquer gênero que seja; mas, no caso particular do teatro, há isto de especial, ou seja, que esta produção se realiza de uma maneira sensível, que dá a própria imagem da vida, assim como tem lugar igualmente no sonho. Por conseguinte, o autor tem a este respeito, uma função verdadeiramente «demiúrgica», posto que produz um mundo que extrai totalmente de si mesmo; trata-se do símbolo mesmo do Ser produzindo a manifestação universal. Neste caso tanto como no do sonho, a unidade essencial do produtor das «formas ilusórias» não é afetada por essa multiplicidade de modificações acidentais, como tampouco a unidade do Ser é afetada pela multiplicidade da manifestação. Assim, desde qualquer ponto de vista onde alguém se coloque, encontra-se sempre no teatro esse caráter que é sua razão profunda, por desconhecida que possa ser para aqueles que têm feito dele algo puramente profano, razão que é constituir, por sua natureza mesma, um dos símbolos mais perfeitos da manifestação universal.

Notas:

1. Não dizemos irreal; entenda-se bem que a «ilusão» só deve ser considerada como uma realidade menor.

2. Além do mais, há lugar para destacar que esta máscara se chamava em latim persona; a personalidade é, literalmente, o que se oculta sob a máscara da individualidade.

3. É também a consideração do mundo, seja referente ao Princípio, seja unicamente no que é em si mesmo, o que diferencia fundamentalmente o ponto de vista das ciências tradicionais e o das ciências profanas.

4. É igualmente de ministerium, no sentido de função, de onde deriva por outra parte a palavra metier (ofício), assim como já o assinalamos em outra parte (O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, capítulo VIII).

5. Além do mais, a estas representações simbólicas se pode vincular diretamente o «pôr em ação» ritual das «lendas» iniciáticas das quais falamos mais atrás.

6. A «exteriorização» em modo religioso, na idade Média, pode ter sido a conseqüência de tal adaptação; por conseguinte, isso não constitui uma objeção contra o caráter esotérico desta tradição em si mesma.