Guenon estuda“Aperçus sur L’Initiation", de René Guénon Éditions Traditionnelles, Paris - 1946

"Considerações sobre a Iniciação"
Capítulos XVII, XVIII, XIX e XX

Tradução: Igor Silva

Capítulo XVII: Mitos, Mistérios e Símbolos

As considerações que acabamos de expor nos conduzem de maneira bastante natural a examinar outra questão conexa, a das relações do símbolo com aquilo que se chama «mito»; sobre este tema, devemos observar primeiro que nos ocorreu às vezes falar de certa degeneração do simbolismo como tendo dado nascimento à «mitologia», tomando esta última palavra no sentido que se lhe dá habitualmente, e que é efetivamente exato quando se trata da Antigüidade chamada «clássica», mas que talvez não se poderia aplicar validamente fora desse período das civilizações grega e latina. Assim, pensamos que, para todas as demais partes, convém evitar o emprego deste termo, que só pode dar lugar a equívocos fastidiosos e a assimilações injustificadas; mas, se o uso impuser esta restrição, é mister dizer, não obstante, que a palavra «mito», em si mesma e em sua significação original, não contém nada que marque tal degeneração, bastante tardia em suma, e devida unicamente a uma incompreensão mais ou menos completa do que subsistia de uma tradição muito anterior. Convém adicionar que, ao se falar de «mitos» no que concerne a esta própria tradição, a condição de restabelecer o verdadeiro sentido da palavra e de desprezar tudo o que se lhe adiciona freqüentemente de «pejorativo» na linguagem corrente, não haveria então, em todo caso, «mitologia», posto que esta, tal como a entendem os modernos, não é nada mais que um estudo empreendido «do exterior», e que implica por conseguinte, poder-se-ia dizer, uma incompreensão de segundo grau.

A distinção que se quis estabelecer, às vezes, entre «mitos» e «símbolos» não tem fundamento na realidade: para alguns, enquanto que o mito é um relato que apresenta um sentido diferente do qual expressam direta e literalmente as palavras que lhe compõem, o símbolo seria essencialmente uma representação figurativa de algumas idéias por um esquema geométrico ou por um desenho qualquer; assim, o símbolo seria propriamente um modo gráfico de expressão, e o mito um modo verbal. Segundo o que já explicamos precedentemente, há, no que concerne à significação dada ao símbolo, uma restrição completamente inaceitável, já que toda imagem que é tomada para representar uma idéia, para expressá-la ou sugeri-la de uma maneira qualquer, e em qualquer grau que seja, é por isso mesmo um signo ou, o que é equivalente, um símbolo desta idéia; importa pouco que se trate de uma imagem visual ou de qualquer outro tipo de imagem, já que isso não introduz aqui nenhuma diferença essencial e não muda em absolutamente nada o princípio do simbolismo. Este, em todos os casos, apóia-se sempre sobre uma relação de analogia ou de correspondência entre a idéia que se trata de expressar e a imagem, gráfica, verbal ou outra, pela qual é expressada; deste ponto de vista completamente geral, as próprias palavras, como já o dissemos, não são e não podem ser outra coisa que símbolos. Poder-se-ia, inclusive, em lugar de falar de uma idéia e de uma imagem como o acabamos de fazer, falar mais geralmente ainda de duas realidades quaisquer, de ordens diferentes, entre as quais existe uma correspondência que tem seu fundamento ao mesmo tempo na natureza de uma e de outra: nestas condições, uma realidade de certa ordem pode ser representada por uma realidade de uma ordem diferente, e esta é então um símbolo daquela.

Tendo recordado assim o princípio do simbolismo, vemos que este é evidentemente suscetível de uma multidão de modalidades diversas; o mito não é mais que um simples caso particular, que constitui uma dessas modalidades; pode-se dizer que o símbolo é o gênero, e que o mito é uma de suas espécies. Em outros termos, pode-se considerar um relato simbólico, tanto quanto um desenho simbólico, ou como muitas outras coisas ainda que têm o mesmo caráter e que têm o mesmo papel; os mitos são relatos simbólicos, da mesma forma que as «parábolas» que, no fundo, não diferem deles essencialmente (1); Nisso não nos parece que haja nada que possa dar lugar à menor dificuldade, desde que se tenha compreendido bem a noção geral e fundamental do simbolismo.

Mas, dito isso, há lugar a precisar a significação própria da própria palavra «mito», que pode nos conduzir a algumas observações que não carecem de importância, e que se vinculam ao caráter e à função do simbolismo considerado no sentido mais determinado, onde se distingue da linguagem ordinária e onde se opõe a ela, inclusive, sob alguns aspectos. Esta palavra «mito» se considera usualmente como sinônima de «fábula», entendendo por isso simplesmente uma ficção qualquer, freqüentemente revestida de um caráter mais ou menos poético; isso é o efeito da degeneração da qual falávamos no começo, e os gregos, de cuja língua se tomou este termo, têm certamente sua parte de responsabilidade no que é, para falar a verdade, uma alteração profunda e uma separação de seu sentido primitivo. De fato, neles a fantasia individual começou bastante cedo a dar curso livre em todas as formas de arte que, por isso, em lugar de permanecer propriamente hierático e simbólico como nos egípcios e nos povos do oriente, tomou rapidamente uma direção muito diferente, que importava muito menos em instruir do que em agradar, e que desembocou em produções cuja maior parte está quase desprovida de toda significação real e profunda (salvo o que podia subsistir ainda nelas, embora fora inconscientemente, dos elementos que tinham pertencido à tradição anterior), e onde, em todo caso, já não se encontra nenhum rastro dessa ciência eminentemente «exata» que é o verdadeiro simbolismo; esse é, em suma, o começo do que se pode chamar a arte profana; e coincide sensivelmente com o [começo] desse pensamento igualmente profano que, devido ao exercício da mesma fantasia individual num domínio diferente, devia ser conhecido sob o nome de «filosofia». A fantasia de que se trata se exerceu em particular sobre os mitos preexistentes: os poetas, que desde então já não eram escritores sagrados como na origem e que já não possuíam a inspiração «supra-humana», ao desenvolvê-los e modificá-los ao capricho de sua imaginação, rodearam-nos de ornamentos supérfluos e vãos, obscureceram-nos e os desnaturalizaram, de sorte que aconteceu freqüentemente ser muito difícil recuperar seu sentido e tirar seus elementos essenciais, salvo possivelmente por comparação com os símbolos similares que se podem encontrar em outras partes e que não sofreram a mesma deformação; e se pode dizer que, finalmente, o mito já não foi, ao menos para a imensa maioria, mais que um símbolo incompreendido, o mesmo que seguiu sendo para os modernos. Mas nisso não há mais que abuso e, poderíamos dizer, «profanação» no sentido próprio da palavra; o que nos é mister considerar é que o mito, antes de toda deformação, era essencialmente um relato simbólico, como o dissemos mais atrás, e que essa era sua única razão de ser; e, sob este ponto de vista, «mito» não é inteiramente sinônimo de «fábula», já que esta última palavra (em latim fabula, de fari, falar) não designa etimologicamente mais que um relato qualquer, sem especificar de maneira nenhuma sua intenção ou seu caráter; aqui também, além do mais, o sentido de «ficção» só veio se lhe adicionar apenas ulteriormente. Há mais: estes dois termos, «mito» e «fábula», que foram tomados como equivalentes, derivam-se de raízes que têm em realidade uma significação completamente oposta, já que, enquanto que a raiz de «fábula» designa a palavra, a raiz de «mito», por estranho que isso possa parecer com primeira vista quando se trata de um relato, designa ao contrário o silêncio.

De fato, a palavra grega muthos, «mito», vem da raiz mu, e esta (que se encontra também no latim mutus, mudo) representa a boca fechada, e por conseguinte, o silêncio (2); este é o sentido do verbo muein, fechar a boca, calar-se (e, por extensão, chega a significar também fechar os olhos, em sentido próprio e figurado); o exame de alguns dos derivados deste verbo é particularmente instrutivo. Assim, de muô (em infinitivo muein) derivam-se imediatamente outros dois verbos que somente dele diferem um pouco por sua forma, muaô e mueô; O primeiro tem as mesmas acepções que muô, e é mister lhes adicionar outro derivado, mullô, que significa fechar os lábios, e também, murmurar sem abrir a boca (3). Quanto a mueô, e isto é o mais importante, significa iniciar (aos «mistérios», cujo nome originou também da mesma raiz, como se verá dentro de um momento, e precisamente pela intermediação de mueô e mustês), e, por conseguinte, de uma vez instruir (mas primeiro instruir sem palavras, assim como era efetivamente nos mistérios) e consagrar; deveríamos dizer inclusive em primeiro lugar consagrar, ao se entender por «consagração», como se deve fazer normalmente, a transmissão de uma influência espiritual, ou o rito pelo qual esta se transmite regularmente; e desta última acepção proveio mais tarde para a mesma palavra, na linguagem eclesiástica cristão, a de conferir a ordenação, que de fato é também uma «consagração» neste sentido, embora em uma ordem diferente da ordem iniciática.

Porém, dir-se-á, se a palavra «mito» tiver tido semelhante origem, como é possível que tenha podido servir para designar um relato de certo gênero? É que esta idéia de «silêncio» deve ser referente aqui às coisas que, em razão de sua própria natureza, são inexprimíveis, ao menos diretamente e pela linguagem ordinária; uma das funções gerais do simbolismo é efetivamente sugerir o inexpressável, fazê-lo pressentir, ou melhor «assentir», pelas transposições que permite efetuar de uma ordem a outra, do inferior ao superior, pelo que é mais imediatamente apreensível ao que é muito mais dificilmente; e tal é precisamente o primeiro destino dos mitos. Além do mais, é desta forma que, inclusive na época «clássica», Platão recorreu também ao emprego dos mitos, quando quis expor concepções que transcendem o alcance de seus meios dialéticos habituais; e estes mitos, que certamente não foram «inventados», mas tão somente «adaptados», já que levam a marca incontestável de um ensino tradicional (como a levam, também, alguns procedimentos dos quais faz uso para a interpretação das palavras, e que são comparáveis aos de nirukta na tradição hindu) (4), estes mitos, dizemos, estão muito longe de serem apenas ornamentos literários mais ou menos desdenháveis que vêem neles, muito freqüentemente, os comentadores e os «críticos» modernos, para quem é certamente muito mais cômodo desprezá-los assim sem mais exame que dar deles uma explicação ao menos aproximada; antes pelo contrário, os mitos respondem do que há de mais profundo no pensamento de Platão, mais desligado das contingências individuais, e que ele não pode expressar mais que simbolicamente por causa desta própria profundidade; a dialética nele contém freqüentemente certa parte de «jogo», o que é muito conforme a mentalidade grega, mas, quando a abandona pelo mito, pode-se estar seguro de que o jogo terminou e de que se tratam de coisas que têm de algum modo um caráter «sagrado».

Desta forma, no mito, o que se diz é outra coisa que o que quer dizer; podemos destacar de passagem que isso é também o que significa etimologicamente a palavra «alegoria» (de allo agoreuein, literalmente «dizer outra coisa»), que nos dá ainda outro exemplo das separações de sentido devidas ao uso corrente, já que, de fato, atualmente já não designa mais que uma representação convencional e «literária», de intenção unicamente moral ou psicológica, e que, o mais freqüentemente, entra na categoria do que se chamam usualmente as «abstrações personificadas»; quase não há necessidade de dizer que nada poderia estar mais afastado do verdadeiro simbolismo. Mas, para voltar de novo para mito, se não diz o que quer dizer, sugere-o através desta correspondência analógica que é o fundamento e a essência mesma de todo simbolismo; assim, poder-se-ia dizer, guarda-se o silêncio ao falar, e é daí de onde o mito recebeu sua designação (5).

Convém atrair a atenção sobre o parentesco das palavras «mito» e «mistério», saídas da mesma raiz: a palavra grega mustêrion, «mistério», vincula-se diretamente, ela também, à idéia do «silêncio»; e isto, além de tudo, pode se interpretar em vários sentidos diferentes, mas ligados uns aos outros, e cada um dos quais tem sua razão de ser de certo ponto de vista. Destacamos primeiro que, segundo a derivação que indicamos precedentemente (de mueô), o sentido principal da palavra é o que se refere à iniciação, e é assim, efetivamente, como é mister entender o que se chamavam «mistérios» na Antigüidade grega. Por outra parte, o que mostra ainda o destino verdadeiramente singular de algumas palavras, é que outro termo estreitamente aparentado aos que acabamos de mencionar é, como já o indicamos, o de «místico» que, etimologicamente, aplica-se a tudo o que concerne aos mistérios: mustikos, efetivamente, é o adjetivo de mustês, iniciado; assim, originariamente equivale a «iniciático» e designa tudo o que se refere à iniciação, a sua doutrina e a seu objeto mesmo (mas neste sentido antigo, não pode aplicar-se nunca a pessoas); de fato, nos modernos, esta mesma palavra «místico», a única entre todos estes termos de cepa comum, chegou a designar exclusivamente algo que, como o vimos, não tem absolutamente nada em comum com a iniciação, e que tem inclusive caracteres opostos sob alguns aspectos.

Voltemos de novo agora aos diversos sentidos da palavra «mistério»: no sentido mais imediato, e diríamos de boa vontade o mais grosseiro ou ao menos o mais exterior, o mistério é aquilo do que não se deve falar, aquilo sobre o qual convém guardar silêncio, ou aquilo que está proibido fazer conhecer exteriormente; é assim como se entende mais usualmente, inclusive quando se trata de mistérios antigos; e, na acepção mais corrente que recebeu ulteriormente, a palavra guardou apenas esse sentido. Entretanto, esta proibição de revelar certos ritos e certos ensinos, sem esquecer a parte das considerações de oportunidade que certamente puderam às vezes ter um papel, mas que têm apenas um caráter puramente contingente, pode ser considerada na realidade, sobretudo, como tendo, ela também, um valor simbólico; já nos explicamos sobre este ponto ao falar da verdadeira natureza do segredo iniciático. Como dissemos a este propósito, o que se chamou a «disciplina do segredo», que era rigorosa tanto na primitiva Igreja cristã como nos antigos mistérios (e os adversários religiosos do esoterismo deveriam lembrar-se disso), está muito longe de nos parecer unicamente como uma simples precaução contra a hostilidade, além do mais muito real e freqüentemente perigosa, devida à incompreensão do mundo profano; vemos nela outras razões de uma ordem muito mais profunda, e que podem ser indicadas pelos outros sentidos contidos na palavra «mistério». Além do mais, podemos adicionar que não é uma simples coincidência o fato de que haja uma estreita similaridade entre as palavras «sagrado» (sacratum) e «secreto» (secretum): em um e outro caso, trata-se do que está posto à parte (secernere, pôr à parte, de onde o particípio secretum), reservado, separado do domínio profano; do mesmo modo, o lugar consagrado é chamado templum, cuja raiz tem (que se encontra no grego temnô, cortar, recortar, separar, de onde temenos, recinto sagrado) expressa também a mesma idéia; e a «contemplação», cujo nome provém da mesma raiz, vincula-se também a esta idéia por seu caráter estritamente «interior»(6).

De acordo com o segundo sentido da palavra «mistério», que já é menos exterior, designa o que se deve receber em silêncio (7), aquilo sobre o qual não convém discutir; sob este ponto de vista, todas as doutrinas tradicionais, compreendidos aí os dogmas religiosos que constituem um caso particular delas, podem ser chamadas «mistérios» (estendendo-se então a acepção desta palavra a domínios diferentes do domínio iniciático, mas nos quais se exerce igualmente uma influência «não humana»), porque são verdades que, por sua natureza essencialmente supra-individual e supra-racional, estão acima de toda discussão (8). Desta forma, para ligar este sentido ao primeiro, pode-se dizer que difundir sem o respeito devido entre os profanos os mistérios assim entendidos, é indevidamente liberá-los à discussão, procedimento profano por excelência, com todos os inconvenientes que podem resultar disso e que resume perfeitamente esta palavra de «profanação» que já empregamos precedentemente sobre outro ponto, e que aqui deve ser tomada em sua acepção ao mesmo tempo mais literal e mais completa; o trabalho destrutivo da «crítica» moderna, a respeito de toda tradição, é um exemplo muito eloqüente do que queremos dizer, não sendo necessário insistir mais nisso (9).

Finalmente, há um terceiro sentido, o mais profundo de todos, segundo o qual o mistério é propriamente o inexpressável, o que apenas se pode contemplar em silêncio (e convém recordar aqui o que dizíamos faz um momento da origem da palavra «contemplação»); e, como o inexpressável é ao mesmo tempo e por isso mesmo o incomunicável, a proibição de revelar o ensino sagrado simboliza, deste novo ponto de vista, a impossibilidade de expressar com palavras o verdadeiro mistério do qual este ensino não é, por assim dizer, mais que a vestimenta, que o manifesta e o vela a um só tempo (10). Deste modo, o ensino que concerne ao inexpressável não pode, evidentemente, mais que ser sugerido com a ajuda de imagens apropriadas, que serão como os suportes da contemplação; segundo o que explicamos, isto equivale a dizer que tal ensino toma necessariamente a forma simbólica. Tal foi sempre, e em todos os povos, um dos caracteres essenciais da iniciação aos mistérios, por qualquer nome que, além do mais, a tenha designado; assim, pode-se dizer que os símbolos, e em particular os mitos -quando este ensino se traduziu em palavras, constituem verdadeiramente, em seu primeiro destino, a própria linguagem desta iniciação.

Notas:

(1) Não carece de interesse destacar que o que se chama na Maçonaria de «lendas» dos diferentes graus, entra nesta definição dos mitos, e que a «entrada em ação» destas «lendas» mostra bem que elas estão verdadeiramente incorporadas aos próprios ritos, dos quais é absolutamente impossível as separar; assim, o que dissemos da identidade essencial do rito e do símbolo, aplica-se muito particularmente também em parecido caso.

(2) O mutus liber dos hermetistas é literalmente o «livro mudo», quer dizer, sem comentário verbal, mas é também, ao mesmo tempo, o livro dos símbolos, enquanto que o simbolismo pode ser considerado verdadeiramente como a «linguagem do silêncio».

(3) Além do mais, o latim murmur não é mais que a raiz mu prolongada pela letra r e repetida duas vezes, de maneira que representa um ruído surdo e contínuo produzido com a boca fechada.

(4) Para exemplos deste gênero de interpretação, ver sobretudo o Crátilo.

(5) Pode-se destacar que isso é o que significam também estas palavras de Cristo, que confirmam a identidade profunda do «mito» e da «parábola» que assinalávamos mais atrás: «Para aqueles que são de fora (expressão exatamente equivalente a de «profanos»), falo-lhes em parábolas, de sorte que vendo não vêem e que ouvindo não ouvem» (São Mateus, XIII, 13; São Marcos, IV, 11-12; São Lucas, VIII, 10). Aqui se trata daqueles que não apreendem mais que no que se diz literalmente, que são incapazes de ir mais à frente para alcançar o inexpressável, e que, por conseguinte «não lhes foi dado conhecer o mistério do Reino dos Céus»; e terá que observar muito especialmente que o emprego da palavra «mistério», nesta última frase do texto evangélico, em relação com as considerações que vão seguir.

(6) Assim, é etimologicamente absurdo falar de «contemplar» um espetáculo exterior qualquer, como o fazem correntemente os modernos, para quem, em muitos casos, o verdadeiro sentido das palavras parece estar completamente perdido.

(7) Poder-se-á recordar também aqui a prescrição do silêncio imposta antigamente aos discípulos em algumas escolas iniciáticas, concretamente na escola pitagórica.

(8) Isto não é outra coisa que a própria infalibilidade que é inerente a toda doutrina tradicional.

(9) Este sentido da palavra «mistério», que está igualmente vinculado à palavra «sagrado» em razão do que já dissemos mais atrás, está marcado muito claramente neste preceito do Evangelho: «Não lanceis aos cães as coisas santas, não atireis aos porcos as vossas pérolas, para que não as calquem com os seus pés, e, voltando-se contra vós, vos despedacem» (São Mateus, VII, 6). Destacar-se-á que os profanos são representados aqui simbolicamente pelos animais considerados como «impuros» no sentido propriamente ritual desta palavra.

(10) A concepção vulgar dos «mistérios», sobretudo quando se aplica ao domínio religioso, implica uma confusão manifesta entre «inexpressável» e «incompreensível», confusão que é completamente injustificada, salvo relativamente às limitações intelectuais de algumas individualidades.

Capítulo XVIII: Simbolismo e Filosofia

Se o simbolismo for, como acabamos de explicá-lo, essencialmente inerente a tudo o que apresenta um caráter essencialmente tradicional, é também, ao mesmo tempo, um dos traços pelos quais as doutrinas tradicionais, em seu conjunto (já que isto se aplica simultaneamente aos dois domínios, esotérico e exotérico), distinguem-se, de certo modo à primeira vista, do pensamento profano, ao qual este mesmo simbolismo é completamente estranho, e isso necessariamente por comportar propriamente algo de «não humano», que não poderia existir de maneira nenhuma em parecido caso. Entretanto, os filósofos, que são os representantes por excelência, por assim dizer, desse pensamento profano, mas que ainda assim não têm menos a pretensão de se ocuparem das coisas mais diversas, como se sua competência se estendesse a tudo, ocupam-se às vezes também do simbolismo, e lhes ocorre então emitir idéias e teorias bem estranhas; é assim como alguns quiseram constituir uma «psicologia do simbolismo», o que se vincula ao engano especificamente moderno que se pode designar pelo nome de «psicologismo», e que é apenas um caso particular da tendência a reduzir tudo a elementos exclusivamente humanos.

Não obstante, há também alguns que reconhecem que o simbolismo não depende da filosofia; mas entendem dar a esta asserção um sentido visivelmente desfavorável, como se o simbolismo fora a seus olhos uma coisa inferior e inclusive desdenhável; e alguém pode se perguntar, inclusive, ao ver a maneira com que falam, se não lhe confundirem simplesmente com o pseudo-simbolismo de alguns literatos, tomando assim pela verdadeira significação da palavra, o que não é mais que um emprego completamente abusivo e desviado dela. Na realidade, se, como se diz, o simbolismo é uma «forma de pensamento», o que é verdade em certo sentido, mas que não impede que seja também, e primeiro, outra coisa, a filosofia é outra, radicalmente diferente, e inclusive oposta sob diversos aspectos. Pode ir mais longe: esta forma de pensamento que representa a filosofia não corresponde mais que a um ponto de vista muito especial e, inclusive nos casos mais favoráveis, não poderia ser válida mais que num domínio muito restringido, cujo maior equívoco, inerente além disso a todo pensamento profano como tal, é possivelmente não saber ou não querer reconhecer seus limites; o simbolismo, assim como a pessoa pode se dar conta disso pelo que já explicamos, tem um alcance muito diferente; e, inclusive se não se vissem aí nada mais que duas formas de pensamento (o que é propriamente confundir o uso do simbolismo com sua essência mesmo), seria ainda um grave engano querer pô-los sobre o mesmo plano. Que os filósofos não sejam desta opinião, não prova nada; para pôr as coisas em seu justo lugar, é necessário, acima de tudo, considerá-las com imparcialidade, o que não podem fazer neste caso; e, quanto a nós, estamos bem convencidos de que, enquanto filósofos, não chegam nunca a penetrar o sentido profundo do menor símbolo, porque se trata de algo que está inteiramente fora de sua maneira de pensar e que ultrapassa inevitavelmente sua compreensão.

Aqueles que conhecem tudo o que dissemos em outras partes da filosofia, em várias ocasiões, não podem estranhar-se de nos ver não lhe lembrar mais que uma importância muito medíocre; além do mais, inclusive sem ir ao fundo das coisas, basta, para dar-se conta de que sua posição não pode ser aqui mais que subalterna de certo modo, lembrar-se de que todo modo de expressão, qualquer que seja, tem forçosamente um caráter simbólico, no sentido mais geral deste termo, em relação ao que expressa. Os filósofos não podem fazer outra coisa que servir-se de palavras, e, assim como o dissemos precedentemente, estas palavras, em si mesmas, não são e não podem ser nada mais que símbolos; assim, de certa maneira, é a filosofia a que entra, embora inconscientemente de todo, no domínio do simbolismo, e não o inverso.

Entretanto, sob outra relação, há uma oposição entre filosofia e simbolismo, caso se entenda este último na acepção mais restrita que lhe dá mais habitualmente, e que, além disso, é também aquela que nós tomamos quando lhe consideramos como propriamente característico das doutrinas tradicionais: esta oposição consiste em que a filosofia, como tudo o que se expressa nas formas ordinárias da linguagem, é essencialmente analítica, enquanto que o simbolismo propriamente dito é essencialmente sintético. Por definição mesmo, a forma da linguagem é «discursiva» como a razão humana da qual é o instrumento próprio e cuja marcha segue ou reproduz tão exatamente como é possível; pelo contrário, o simbolismo propriamente dito é verdadeiramente «intuitivo», o que, naturalmente, faz-lhe incomparavelmente mais apto que a linguagem para servir de ponto de apoio à intuição intelectual e supra-racional, e é precisamente por isso que constitui o modo de expressão por excelência de todo ensino iniciático. Assim que a filosofia representa de certo modo o tipo do pensamento discursivo (o que, bem entendido, não quer dizer que todo pensamento discursivo tenha um caráter especialmente filosófico), e é o que lhe impõe limitações das quais não poderia livrar-se; pelo contrário, o simbolismo, enquanto suporte da intuição transcendente, abre possibilidades verdadeiramente ilimitadas.

A filosofia, por seu caráter discursivo, é algo exclusivamente racional, posto que este caráter é o que pertence em propriedade à própria razão; assim, o domínio da filosofia e de suas possibilidades não pode estender-se em nenhum caso além do que a razão é capaz de alcançar; e ainda não representa mais que certo uso bastante particular desta faculdade, já que, embora não fora mais que pelo fato da existência de ciências independentes, é evidente que há, na própria ordem do conhecimento racional, muitas coisas que não dependem da filosofia. Além disso, aqui não se trata em modo algum de responder o valor da razão em seu domínio próprio e enquanto não lhe pretenda transpor (1); mas este valor só pode ser relativo, como é igualmente esse domínio; e, além do mais, a palavra rateio mesmo não tem primitivamente o sentido de «relação»? Não contestamos tampouco, em certos limites, a legitimidade da dialética, embora os filósofos abusem dela muito freqüentemente; mas esta dialética, em todo caso, não deve ser nunca mais que um meio, não um fim em si mesmo, e, além disso, pode ser que este meio não seja aplicável a tudo indistintamente; para dar-se conta disso, só é necessário sair dos limites da dialética, e isso é o que não pode fazer a filosofia como tal.

Admitindo inclusive que a filosofia vá tão longe como é teoricamente possível, queremos dizer até os limites extremos do domínio da razão, certamente, isso será muito pouco ainda, já que, para nos servir aqui de uma expressão evangélica, «só uma coisa é necessária», e é precisamente esta coisa a que lhe estará sempre proibida, porque está por cima e além de todo conhecimento racional. O que podem os métodos discursivos do filósofo frente ao inexpressável, que é, como o explicávamos mais atrás o «mistério» no sentido mais verdadeiro e mais profundo desta palavra? Pelo contrário, o simbolismo, repetimo-lo ainda, tem como função essencial fazer «assentir» esse inexpressável, proporcionar o «suporte» que permita à intuição intelectual alcançá-lo efetivamente; assim, quem tendo compreendido isso, atrever-se-ia ainda a negar a imensa superioridade do simbolismo e a responder que seu alcance transpõe incomparavelmente o de toda filosofia possível? Por excelente e por perfeita que possa ser em seu gênero uma filosofia (e não é certamente nas filosofias modernas nas quais pensamos ao admitir uma parecida hipótese), não é ainda «mais que palha»; a palavra é do próprio São Tomás de Aquino, que, entretanto, reconhecer-se-á, não devia inclinar-se muito a desprezar o pensamento filosófico, embora ao menos tinha consciência de suas limitações.

Mas há ainda outra coisa: ao considerar o simbolismo como uma «forma de pensamento», não lhe considera em suma mais que sob uma relação puramente humana, que, além disso, é evidentemente a única sob a qual seja possível uma comparação com a filosofia; sem dúvida, deve lhe considerar assim, enquanto seja um modo de expressão para o uso do homem, mas, para falar a verdade, isso está muito longe de ser suficiente e, posto que não toca de maneira nenhuma sua essência, apenas representa o lado mais exterior da questão. Já insistimos bastante sobre o lado «não-humano» do simbolismo para não ser mais necessário retornar a isso muito demoradamente; basta constatar, em suma, que tem seu fundamento na própria natureza dos seres e das coisas, que está em perfeita conformidade com as leis desta natureza, e refletir que as leis naturais não são, elas mesmas, no fundo, mais que uma expressão e tal uma exteriorização, por assim dizer, da Vontade divina ou primordial. O verdadeiro fundamento do simbolismo é, como já o dissemos, a correspondência que existe entre todas as ordens de realidade, correspondência que as liga uma à outra, e que se estende, por conseqüência, da ordem natural, tomada em seu conjunto, à própria ordem sobrenatural; em virtude desta correspondência, a natureza toda inteira não é, ela mesma, mais que um símbolo, quer dizer, que não recebe sua verdadeira significação mais que ao se considerar como um suporte para nos elevar ao conhecimento das verdades sobrenaturais, ou «metafísicas» no sentido próprio e etimológico desta palavra, o que é precisamente a função essencial do simbolismo, e o que é também a razão de ser profunda de toda ciência tradicional (2). Por isso mesmo, há necessariamente, no simbolismo, algo cuja origem se remonta mais acima e além da humanidade, e se poderia dizer que esta origem está mesmo na obra do Verbo divino: está primeiro na própria manifestação universal, e está depois, mais especialmente em relação à humanidade, na Tradição Primordial que é efetivamente, ela também, «revelação» do Verbo; esta Tradição, da qual todas as demais são apenas formas derivadas, incorpora-se por assim dizer nos símbolos que são transmitidos de idade em idade sem que lhes possa atribuir nenhuma origem «histórica», e o processo desta espécie de incorporação simbólica é também análogo, em sua ordem, ao da manifestação (3).

Frente a estes títulos do simbolismo, que constituem seu valor transcendente, quais são os que a filosofia poderia ter que reivindicar? A origem do simbolismo se confunde verdadeiramente com a origem dos tempos, se não estiver, inclusive, num sentido, além dos tempos, posto que estes não compreendem na realidade mais que um modo especial da manifestação (4); além disso, como o fizemos observar, não há nenhum símbolo autenticamente tradicional que se possa atribuir a algum inventor humano, do qual se possa dizer que foi imaginado por tal ou qual indivíduo; e não deveria isso mesmo dar que refletir aos que são capazes disso? Toda filosofia, pelo contrário, não se remonta mais que a uma época determinada e, em suma, sempre recente, inclusive quando se trata da antigüidade «clássica», que não é mais que uma antigüidade muito relativa (o que prova bem, além do mais, que, inclusive humanamente, esta forma especial de pensamento não tem nada de essencial) (5); é a obra de um homem cujo nome nos é tão conhecido como a data em que viveu, e é esse nome mesmo que serve de ordinário para designá-la, o que mostra bem que aí não há nada que não seja humano e individual. Por isso é que dizíamos faz um momento que não se pode pensar em estabelecer uma comparação qualquer entre a filosofia e o simbolismo mais que sob a condição de se limitar a considerar este exclusivamente pelo lado humano, posto que, para todo o resto, não se poderia encontrar, na ordem filosófica, nem equivalência nem tampouco correspondência de qualquer gênero que seja.

Assim, digamos, e para pôr as coisas da melhor maneira, a filosofia é a «sabedoria humana», ou uma de suas formas, mas não é em todo caso mais que isso, e é por isso que dizemos que é muito pouca coisa no fundo; e não é mais que isso porque é uma especulação completamente racional, e porque a razão é uma faculdade puramente humana, essa mesma pela qual se define essencialmente a natureza individual humana como tal. Assim, tanto faz dizer «sabedoria humana» como «sabedoria mundana», no sentido no qual o «mundo» é entendido concretamente no Evangelho (6) ; também poderíamos dizer, no mesmo sentido, «sabedoria profana»; todas estas expressões são sinônimas no fundo, e indicam claramente que aquilo do qual se trata não é a verdadeira sabedoria, que, quando muito, não é mais que uma sombra dela, bastante vã, e inclusive muito freqüentemente «invertida» (7) . Além disso, de fato, a maior parte das filosofias não é sequer uma sombra da sabedoria, por deformada que se a suponha; não são, sobretudo quando se trata das filosofias modernas, onde os menores vestígios dos antigos conhecimentos tradicionais desapareceram inteiramente, mais que construções desprovidas de toda base sólida, massas de hipótese mais ou menos fantasiosas, e, em todo caso, simples opiniões individuais sem autoridade e sem alcance real.

Para concluir sobre este ponto, podemos resumir em algumas palavras o fundo de nosso pensamento: a filosofia não é propriamente mais que um «saber profano» e não pode pretender nada mais, enquanto que o simbolismo, entendido em seu verdadeiro sentido, forma parte essencialmente da «ciência sagrada», que não poderia existir verdadeiramente, ou ao menos exteriorizar-se, sem ele, já que então lhe faltaria todo meio de «expressão» apropriado. Sabemos bem que muitos de nossos contemporâneos, e inclusive o maior número deles, infelizmente, são incapazes de fazer como convém a distinção entre estas duas ordens de conhecimento (se é que um conhecimento profano merece verdadeiramente este nome); mas, bem entendido, não é a esses a quem nos dirigimos, já que, como o declaramos bastante freqüentemente em outras ocasiões, é unicamente de «ciência sagrada» do que entendemos nos ocupar por nossa parte.

Notas:

1) Destacamos, a este propósito, que «supra-racional» não é de maneira nenhuma sinônimo de «irracional»: o que está por cima da razão não é contrário a ela, mas sim lhe escapa pura e simplesmente.

2) É por isso que o mundo é como uma linguagem divina para aqueles que sabem lhe compreender: seguindo a expressão bíblica, «cæli enarrant gloriam Dei» (Salmo, XIX, 2).

3) Recordaremos ainda uma vez mais a este propósito, para não deixar lugar a nenhum equívoco, que nos negamos absolutamente a dar o nome de «tradição» a tudo o que é puramente humano e profano, e, em particular, a uma doutrina filosófica qualquer que seja.

4) Assim, é muito pouco compreensível que certo Rito maçônico, cuja «regularidade» é além disso muito contestável, pretenda datar seus documentos de uma era contada Ab Origene Symbolismi.

5) Haveria talvez lugar para se perguntar por que a filosofia teve nascimento precisamente no século VI antes da era cristã, época que apresenta caracteres bastante singulares sob muitos aspectos, assim como o fizemos observar em diferentes ocasiões.

6) Em sânscrito, a palavra laukika, «mundano» (adjetivo derivado de loka, «mundo»), é tomada freqüentemente com a mesma acepção que na linguagem evangélica, quer dizer, em suma, com o sentido de «profano», e esta concordância nos parece muito digna de observação.

7) Além do mais, inclusive para não considerar mais que o sentido próprio das palavras, deveria ser evidente que philosophia não é sophia, «sabedoria»; não pode ser normalmente, em relação a esta, mais que uma preparação ou um encaminhamento; poder-se-ia dizer que a filosofia se torna ilegítima desde que não tenha como meta conduzir a algo que a transponha. Além disso, é o que reconheciam os escolásticos da idade Média quando diziam: «Philosophia ancilla theologiae»; mas, nisso, seu ponto de vista era ainda muito restringido, já que a teologia, que não depende mais que do domínio exotérico, está extremamente longe de poder representar a sabedoria radicional em sua integralidade.

Capítulo XIX: Ritos e Cerimônias

Depois de ter esclarecido, tanto quanto nos foi possível, as principais questões que se referem à verdadeira natureza do simbolismo, podemos voltar de novo agora ao que concerne aos ritos; sobre este ponto, ficam por dissipar, ainda, algumas fastidiosas confusões. Em nossa época, as afirmações mais extraordinárias tornaram-se possíveis e, inclusive, são aceitas correntemente, posto que aqueles que as emitem e aqueles que as escutam estão afetados por uma mesma falta de discernimento; o observador das manifestações diversas da mentalidade contemporânea tem que constatar, a cada instante, tantas coisas deste gênero, em todas as ordens e em todos os domínios, que deveria chegar a já não se surpreender com nada. Entretanto, apesar de tudo, é muito difícil evitar certa estupefação quando se vêem pretensos «instrutores espirituais», que alguns acreditam inclusive revestidos de «missões» mais ou menos excepcionais, entrincheirarem-se detrás de seu «horror das cerimônias» para rechaçarem indistintamente todos os ritos de qualquer natureza que sejam e para se declararem, inclusive, resolutamente hostis a eles. Este horror é, em si mesmo, uma coisa perfeitamente plausível, até legítima, inclusive, sob a condição de se fazer nele uma ampla reserva no tocante a questão das preferências individuais, e de não querer que todos forçosamente lhe compartilhem; em todo caso, quanto a nós, compreendemo-lo sem o menor esforço; mas, certamente, nunca teríamos suspeitado que alguns ritos possam ser assimilados a «cerimônias», nem que os ritos em geral devam ser considerados como tendo em si mesmos tal caráter. É nisso onde reside a confusão, verdadeiramente estranha por parte daqueles que têm alguma pretensão mais ou menos confessada a servir de «guias» ao próximo em um domínio onde, precisamente, os ritos têm um papel essencial e da maior importância, enquanto «veículos» indispensáveis das influências espirituais, sem as quais não se poderia tratar do menor contato efetivo com realidades de ordem superior, senão somente de aspirações vagas e inconsistentes, de «idealismo» nebuloso e de especulações no vazio.

Não nos entreteremos em procurar qual pode ser a origem da palavra «cerimônia», que parece bastante obscura e sobre a qual os lingüistas estão longe de estar de acordo (1); entenda-se bem que aqui tomamos no sentido que tem constantemente na linguagem atual, e que é suficientemente conhecido por todo mundo, de tal forma que não há lugar para se insistir sobre isso: em suma, trata-se sempre de uma manifestação que implica um maior ou menor grau de desenvolvimento de pompa exterior, quaisquer que sejam as circunstâncias que proporcionem a ocasião ou o pretexto para isso em cada caso particular. É evidente que pode ocorrer, e que ocorre freqüentemente de fato, sobretudo na ordem exotérica, que alguns ritos estejam rodeados de tal pompa; mas então a cerimônia constitui simplesmente algo agregado ao próprio rito, e por conseguinte acidental e não essencial em relação a este; sobre este ponto voltaremos de novo dentro de instantes. Por outra parte, não é menos evidente que existem também, e em nossa época mais que nunca, uma multidão de cerimônias que têm apenas um caráter puramente profano e que, por conseguinte, não estão ligadas ao cumprimento de nenhum rito, e que caso tenha se chegado às conhecer com o nome de ritos, apenas aconteceu por um desses prodigiosos abusos de linguagem que denunciamos tão freqüentemente, e, além do mais, isso se explica no fundo, pelo fato de que, sob todas essas coisas, há uma intenção de se instituir efetivamente «pseudo-ritos» destinados a suplantar os verdadeiros ritos religiosos, mas que, naturalmente, só podem imitar estes de uma maneira completamente exterior, quer dizer, precisamente apenas por seu lado «cerimonioso». O rito mesmo, do qual a cerimônia não era em certo modo mais que um simples «envoltório», e desde então inteiramente inexistente, posto que não poderia haver nenhum rito profano, o que seria uma contradição nos termos; e as pessoas podem se perguntar se os inspiradores conscientes destas contrafações grosseiras contam simplesmente com a ignorância e a incompreensão gerais para fazerem aceitar uma semelhante substituição, ou se participam eles mesmos delas em uma certa medida. Não trataremos de resolver esta última questão, e recordaremos somente, a aqueles que se surpreenderiam de que se possa expor, que a inteligência das realidades espirituais, a qualquer grau que seja, está rigorosamente fechada à «contra-iniciação»(2); tudo o que nos importa no presente é o fato mesmo de que existem cerimônias sem ritos tanto quanto ritos sem cerimônias, o que basta para mostrar até que ponto é errôneo querer estabelecer entre as duas coisas uma identificação ou uma assimilação qualquer.

Dissemos freqüentemente que, em uma civilização estritamente tradicional, tudo tem verdadeiramente um caráter ritual, compreendidas as próprias ações da vida corrente; assim, seria mister supor por isso que os homens devem viver nela, acaso se diga, em estado de cerimônia perpétua? Isso é literalmente inimaginável, e não há mais que formular a questão desta forma para fazer aparecer imediatamente todo seu absurdo; é necessário, inclusive, mais dizer que é o contrário de tal hipótese que é a verdade, já que os ritos, que são então algo completamente natural, e que não têm em nenhum grau o caráter de exceção que parecem apresentar quando a consciência da tradição se debilita, e quando o ponto de vista profano nasce e se estende na mesma proporção desta debilitação, fazem que quaisquer cerimônias que acompanham esses ritos, e que sublinham de algum modo seu caráter excepcional, não tenham certamente nenhuma razão de ser em parecido caso. Se alguém for remontar às origens, o rito é apenas «o que é conforme a ordem», segundo a acepção do termo sânscrito rita (3); assim, é o único realmente «normal», enquanto que a cerimônia, pelo contrário, dá sempre e indevidamente a impressão de algo mais ou menos anormal, fora do curso habitual e regular dos acontecimentos que enchem o resto da existência. Esta impressão, anotamo-lo de passagem, poderia contribuir possivelmente, por uma parte, para explicar a maneira tão singular em que os ocidentais modernos, que já não sabem separar apenas a religião das cerimônias, consideram-na como algo inteiramente isolado, que já não tem nenhuma relação real com o conjunto das demais atividades às quais «consagram» sua vida.

Toda cerimônia tem um caráter artificial, inclusive convencional por assim dizer, porque, em definitivo, não é mais que o produto de uma elaboração completamente humana; inclusive se está destinada a acompanhar um rito, este caráter se opõe ao do próprio rito que, pelo contrário, suporta essencialmente um elemento «não humano». Aquele que cumpre um rito, se tiver alcançado certo grau de conhecimento efetivo, pode e deve ter inclusive consciência de que se trata de algo que lhe transcende, que não depende de maneira nenhuma de sua iniciativa individual; mas, no que se refere às cerimônias, sim, podem ser imponentes para aqueles que assistem a elas, e que se encontram reduzidos nelas a um papel mais de simples espectadores do que de «participantes», está muito claro que aqueles que as organizam e que regulam seus preceitos sabem perfeitamente a que se devem ater a seu respeito e se dão perfeita conta que toda a eficácia que se pode escapar delas está subordinada inteiramente às disposições tomadas por eles mesmos e à maneira mais ou menos satisfatória em que sejam executadas. Efetivamente, esta eficácia -por isso mesmo que não há nela nada que não seja humano, não pode ser de uma ordem verdadeiramente profunda, e é em suma apenas puramente «psicológica»; por isso é que se pode dizer que se trata efetivamente de impressionar os assistentes ou de se impor a eles por toda sorte de meios sensíveis; e, na linguagem ordinária mesmo, um dos maiores elogios que se pode fazer de uma cerimônia, não é justamente qualificá-la de «imponente», sem que, além disso, o verdadeiro sentido deste epíteto seja geralmente bem compreendido? Destacamos ainda, a este propósito, que aqueles que não querem reconhecer nos ritos mais que efeitos de ordem «psicológica» os confundem também nisso, possivelmente sem o saberem, com as cerimônias, posto que desconhecem seu caráter «não humano», em virtude do qual seus efeitos reais, enquanto ritos propriamente ditos e independentemente de toda circunstância acessória, são, pelo contrário, de uma ordem totalmente diferente disso.

Agora, poder-se-ia formular esta pergunta: por que se adicionarem cerimônias aos ritos, como se o «não-humano» tivesse necessidade desta ajuda humana, enquanto que deveria permanecer, melhor, tão afastado quanto possível de semelhantes contingências? A verdade, simplesmente, é que nisso há uma conseqüência da necessidade que se impõe de ter em conta as condições de fato que são as da humanidade terrestre, ao menos em tal ou qual período de sua existência; trata-se de uma concessão feita a certo estado de decadência, do ponto de vista espiritual, dos homens que são chamados a participar dos ritos; são estes homens, e não os ritos, os que têm necessidade da ajuda das cerimônias. Não poderia tratar-se de maneira nenhuma de reforçar ou de intensificar o efeito mesmo dos ritos em seu domínio próprio, senão unicamente de fazê-los mais acessíveis aos indivíduos a quem se dirige, de lhes preparar para eles, tanto quanto se possa, pondo-lhes em um estado emotivo e mental apropriado; isso é tudo o que podem fazer as cerimônias, e é mister reconhecer que estão longe de ser inúteis sob este aspecto e que, para a generalidade dos homens, desempenham efetivamente bastante bem este ofício. Por esse motivo, também, é que elas não têm verdadeira razão de ser mais que na ordem exotérica, que se dirige a todos indistintamente; ao se tratar da ordem esotérica ou iniciática, a coisa é muito diferente, posto que esta deve estar reservada a uma elite que, por definição mesma, não tem necessidade destas «ajudas» completamente exteriores, já que sua qualificação implica precisamente que ela é superior ao estado de decadência que é o da imensa maioria; assim, a introdução de cerimônias nesta ordem, se chegar não obstante a produzir-se às vezes, não pode explicar-se mais que por uma certa degeneração das organizações iniciáticas onde um tal fato tem lugar.

O que acabamos de dizer define o papel legítimo das cerimônias; mas, ao lado disso, há também o abuso e o perigo: como o que é puramente exterior é também, pela força mesma das coisas, o mais imediatamente aparente que há, é sempre temível que o acidental faça perder de vista o essencial, e que as cerimônias tomem, aos olhos daqueles que são testemunhas delas, muito mais importância que os ritos, que elas dissimulam de certo modo sob uma acumulação de formas acessórias. Pode ocorrer inclusive, o que é ainda mais grave, que este engano seja compartilhado por aqueles que têm como função cumprir os ritos, em qualidade de representantes autorizados de uma tradição, se eles mesmos são alcançados por esta decadência espiritual geral da qual falamos; e disso resulta então que, tendo desaparecido a compreensão verdadeira, tudo se reduz, conscientemente ao menos, a um «formalismo» excessivo e sem razão, que de boa vontade se dedicará sobretudo a manter o brilho das cerimônias e a lhe amplificar muito, tendo quase por desdenhável o rito, que seria reduzido ao essencial e que, entretanto, é tudo o que deveria contar verdadeiramente. Para uma forma tradicional, isso é uma espécie de degeneração que beira à «superstição», entendida em seu sentido etimológico, posto que o respeito pelas formas sobrevive à compreensão delas, e posto que assim a «letra» asfixia inteiramente o «espírito»; o «cerimonialismo» não é a observância do ritual, é mais o esquecimento de seu valor profundo e de sua significação real, a materialização mais ou menos grosseira das concepções que são feitas de sua natureza e de seu papel, e, finalmente, o desconhecimento do «não-humano» em proveito do humano.

Notas:

(1) Vem esta palavra das festas de Ceres, nos Romanos, ou, como outros o têm suposto, do nome de uma antiga cidade da Itália chamada Ceré? Pouco importa no fundo, já que esta origem, em todos os casos, pode, como o da palavra «místico», da qual já tivemos que falar Precedentemente, ter apenas muito pouca relação com o sentido que a palavra tomou no uso corrente e que é o único no qual seja possível empregá-la atualmente.

(2) Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXVIII e XI.

(3) Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. III e VIII.

Capítulo XX: A Propósito da Magia Cerimonial

Para completar o que se acabou de dizer sobre as cerimônias e sobre suas diferenças essenciais com os ritos, consideramos ainda um caso especial que deixamos que lado intencionalmente: este caso é aquele onde se trata de «cerimônias mágicas», e, embora esteja certamente fora do tema principal de nosso estudo, não acreditamos inútil dele tratar com algum detalhe, posto que a magia é, como já o dissemos, o que dá lugar a uma boa parte dos equívocos criados e mantidos, sobre o tema da iniciação, por uma multidão de pseudo-iniciados de todo gênero; além disso, o termo «magia» se aplica sem cessar hoje em dia, irrefletidamente, às coisas mais diversas, e às vezes sem a menor relação com o que designa realmente. Tudo o que parece mais ou menos estranho, tudo o que sai do comum (ou do que se conveio considerar como tal), é «mágico» para alguns; já indicamos a aplicação que alguns fazem deste epíteto à eficácia própria dos ritos, o mais freqüentemente, além do mais, com a intenção manifesta de negar sua realidade; e para falar a verdade, na linguagem vulgar, a palavra mesmo chegou a não ter apenas outro sentido que esse. Para outros, a «magia» toma o aspecto de uma coisa mais «literária», um pouco à maneira em que se fala correntemente também da «magia do estilo»; e é sobretudo à poesia (ou ao menos a um tipo de poesia, se não a toda indistintamente) à qual querem atribuir esse caráter «mágico». Neste último caso, há uma confusão talvez menos grosseira, mas que ainda assim importa em dissipar: é exato que a poesia, em suas origens e antes que tivesse degenerado em simples «literatura» e na expressão de uma pura fantasia individual, era algo completamente diferente, cuja noção pode se vincular, em suma, diretamente à dos «mantras» (1); assim, então, ali poderia haver realmente uma poesia mágica, como também uma poesia destinada a produzir efeitos de uma ordem muito mais elevada (2); mas, desde que se fala ao contrário de poesia profana (e, efetivamente, é esta a que os modernos têm em vista inevitavelmente, posto que inclusive quando lhes ocorre encontrar-se em presença da outra, não a sabem distinguir e acreditam que não se trata ainda mais que de «literatura»), já não se pode tratar de nada disso, como tampouco, diga-se o que disser (e isto é ainda outro abuso de linguagem), de «inspiração» no único sentido verdadeiro desta palavra, quer dizer, no sentido propriamente «supra-humano». Não respondemos, entenda-se bem, que a poesia profana, como qualquer expressão de idéias ou de sentimentos, possa produzir efeitos psicológicos; mas isso é outra questão e, precisamente, não tem absolutamente nada que ver com a magia; não obstante, há que se deter neste ponto, tendo em vista que nisso pode estar a fonte de uma confusão que, nesse caso, seria simplesmente correlativa de outro engano que os modernos cometem freqüentemente, também, quanto à natureza da própria magia, e sobre o que retornaremos a seguir.

Dito isso, recordaremos que a magia é propriamente uma ciência, pode-se dizer inclusive que é uma ciência «física» no sentido etimológico desta palavra, posto que trata das leis e da produção de alguns fenômenos (e além do mais, como já o indicamos, é o caráter «fenomênico» da magia o que interessa a alguns ocidentais modernos, porque satisfaz suas tendências «experimentalistas»); somente, importa estabelecer que as forças que intervêm aqui pertencem à ordem sutil, e não à ordem corporal, e é por isso que seria completamente falso querer assimilar esta ciência à «física» tomada no sentido restringido no qual a entendem os modernos; além do mais, este engano se encontra também de fato, posto que alguns acreditaram poder referir os fenômenos mágicos à eletricidade ou a «radiações» quaisquer da mesma ordem. Agora bem, se a magia tiver este caráter de ciência, alguém se perguntará talvez como é possível que haja ritos mágicos, e é necessário reconhecer que isso deve ser efetivamente bastante embaraçoso para os modernos, dada a idéia que se fazem das ciências; ali onde vêem ritos, pensam que se trata necessariamente de algo muito diferente, que quase sempre procuram identificar um pouco completamente com a religião; mas, digamo-lo já claramente, os ritos mágicos não têm, na realidade, quanto a sua meta própria, nenhum ponto em comum com os ritos religiosos, nem tampouco (e estaríamos inclusive tentados de dizer que com maior razão ainda) com os ritos iniciáticos, como quereriam, por outro lado, os partidários de algumas das concepções pseudo-iniciáticas que têm curso em nossa época; e, entretanto, embora estejam inteiramente fora destas categorias, há verdadeiramente ritos mágicos.

A explicação é muito simples no fundo: a magia é uma ciência, como acabamos de dizê-lo, mas uma ciência tradicional; agora, em tudo o que apresenta este caráter, trate-se de ciências, de arte ou de ofícios, há sempre, ou ao menos desde que alguém não se limite a estudos simplesmente teóricos, algo que, ao se compreender bem, deve ser considerado como constituindo verdadeiros ritos; e não há lugar a para surpresas sobre disso, já que toda ação cumprida segundo regras tradicionais, de qualquer domínio que dependa, é realmente uma ação ritual, assim como já o indicamos precedentemente. Naturalmente, em cada caso, estes ritos deverão ser de um gênero especial, posto que sua técnica será forçosamente a apropriada à meta particular à qual estão destinados; por isso é necessário evitar cuidadosamente toda confusão e toda falsa assimilação tal como as que mencionamos faz um momento, e isso tanto no que respeita aos próprios ritos, quanto no que respeita aos diferentes domínios aos quais se referem respectivamente, posto que estas duas coisas são estreitamente solidárias; e os ritos mágicos são apenas uma espécie entre muitas outras, sob mesmo título que o são, por exemplo, os ritos médicos, que devem parecer também, aos olhos dos modernos, uma coisa muito extraordinária e inclusive completamente incompreensível, mas cuja existência nas civilizações tradicionais não é por isso um fato menos incontestável.

Convém recordar também que a magia é, entre as ciências tradicionais, uma daquelas que pertencem à ordem mais inferior, já que, bem entendido, aqui tudo deve ser considerado como estritamente hierarquizado segundo sua natureza e seu domínio próprio; sem dúvida é por isso que, possivelmente mais que toda outra ciência, a magia está sujeita a muitos desvios e degenerações (3). Ocorre às vezes que toma um desenvolvimento fora de toda proporção com sua importância real, desenvolvimento que chega até asfixiar de certo modo os conhecimentos mais altos e mais dignos de interesse; e algumas civilizações antigas morreram por esta invasão da magia, como a civilização moderna corre o risco de morrer pela invasão da ciência profana, que, além disso, representa uma separação mais grave ainda, posto que a magia, apesar de tudo, é ainda um conhecimento tradicional. Às vezes também, sobrevive-se, por assim dizer, a si mesma, sob o aspecto de vestígios mais ou menos disformes e incompreendidos, mas ainda capazes de dar alguns resultados efetivos, e pode cair então até o nível da baixa bruxaria, o que é o caso mais comum e o mais difundido, ou degenerar ainda de alguma outra maneira. Até aqui, não falamos de cerimônias, mas é justamente disso que vamos falar agora, já que constituem o caráter próprio de uma dessas degenerações da magia, até o ponto desta ter recebido daquelas sua denominação de «magia cerimonial».

Os ocultistas estariam certamente pouco dispostos a admitir que esta «magia cerimonial», a única que conhecem e que tentam praticar, não é mais que uma magia degenerada, e entretanto é assim; e inclusive, sem querer assimilá-la de modo algum à bruxaria, poderíamos dizer que está ainda mais degenerada que esta sob alguns aspectos, embora de outra maneira. Explicar-nos-emos mais claramente sobre isto: o bruxo cumpre alguns ritos e pronuncia algumas fórmulas, geralmente sem compreender seu sentido, senão contentando-se repetindo tão exatamente quanto é possível o que lhe foi ensinado por aqueles que os transmitiram (isto é um ponto particularmente importante desde que se trata de algo que apresenta um caráter tradicional, como se pode compreender facilmente pelo que explicamos anteriormente); e estes ritos e estas fórmulas que, o mais freqüentemente, não são senão restos bem desfigurados de coisas muito antigas, e que não se acompanham certamente de nenhuma cerimônia, por isso não têm menos, em muitos casos, uma eficácia certa (não vamos fazer aqui nenhuma distinção entre as intenções benéficas ou maléficas que possam presidir seu uso, posto que se trata unicamente da realidade dos efeitos obtidos). Pelo contrário, o ocultista que faz «magia cerimonial», não obtém geralmente nenhum resultado sério dela, por muito cuidado que ponha em conformar-se a uma multidão de prescrições minuciosas e complicadas, que, além do mais, aprendeu somente pelo estudo de livros, e não pelo fato de uma transmissão qualquer; pode se chegar às vezes a se iludir, mas esse é um assunto muito diferente; e se poderia dizer que há, entre as práticas do bruxo e as suas, a mesma diferença que entre uma coisa viva, embora esteja em um estado de decrepitude, e uma coisa morta.

Esta falta de êxito do «magista» (posto que esta é a palavra da qual os ocultistas se servem preferentemente, estimando-a sem dúvida mais honorável e menos vulgar que a de «mago») tem uma dupla razão: por uma parte, na medida em que ainda se tratem de ritos em parecido caso, simula-os mais do que os cumpre verdadeiramente, posto que lhe falta a transmissão que seria necessária para «vivificá-los», e à qual a simples intenção não poderia suprir de maneira nenhuma; por outra parte, esses ritos estão literalmente asfixiados sob o «formalismo» vazio das cerimônias já que, incapaz de discernir o essencial do acidental (e, além disso, os livros aos que se remeta estarão muito longe de poder lhe ajudar nisso, já que, ordinariamente, tudo neles está misturado inextricavelmente, talvez voluntariamente em alguns casos e involuntariamente em outros), o «magista» se dedicará naturalmente, sobretudo, ao lado exterior que mais lhe sensibilize e que é o mais «impressionante»; e é isso, em suma, o que justifica o nome mesmo de «magia cerimonial». De fato, a maior parte daqueles que acreditam, desta forma, «fazer magia» não fazem na realidade mais que auto-sugestionar-se pura e simplesmente; e o mais curioso que há aqui é que as cerimônias chegam a se impor, não só aos espectadores, se os houver, mas também àqueles mesmos que as cumprem, e, quando são sinceros (não nos vamos ocupar mais que deste caso, e não daquele onde intervém o charlatanismo), são verdadeiramente, à maneira dos meninos, enganados por seu próprio jogo. Esses não obtêm pois, e não podem obter mais, que efeitos de ordem exclusivamente psicológica, quer dizer, da mesma natureza que os que produzem as cerimônias em geral, e que, além disso, no fundo, são toda a razão de ser destas; mas, inclusive se tiverem permanecido suficientemente conscientes do que acontece neles e ao redor deles para se dar conta de que tudo se reduz a isso, estão muito longe de suspeitar que, caso isso aconteça, não se atribua mais que a sua incapacidade e a sua ignorância. Então, engenham-se em edificar teorias, de acordo com as concepções mais modernas, e com isso incorporam diretamente em parte ou forçadamente, as da própria «ciência oficial», para explicar que a magia e seus efeitos dependem inteiramente do domínio psicológico, como outros o fazem também para os ritos em geral; o desafortunado é que aquilo do que falam não é magia, do ponto de vista do qual semelhantes efeitos são perfeitamente nulos e inexistentes, e que, ao confundir os ritos com as cerimônias, confundem também a realidade com o que não é mais que uma caricatura ou uma paródia dela; se os «magistas» mesmos estão nisso, como surpreender-se de que semelhantes confusões tenham curso entre o «grande público»?

Estes ajustes bastarão, por uma parte, para vincular o caso das cerimônias mágicas ao que dissemos primeiro das cerimônias em geral, e, por outra, para mostrar de onde provêm alguns dos principais enganos modernos concernentes à magia. Certamente, «fazer magia», embora seja da maneira mais autêntica possível, não é uma ocupação que nos pareça muito digna de interesse em si mesmo; mas devemos reconhecer ainda que é uma ciência cujos resultados, pense-se o que se quiser de seu valor, são tão reais em sua ordem como os de qualquer outra ciência, e não têm nada em comum com ilusões e delírios «psicológicos». É necessário ao menos saber determinar a verdadeira natureza de cada coisa e situá-la no lugar que lhe convém, mas, justamente, a maior parte de nossos contemporâneos se mostram completamente incapazes para tal, e o que chamamos de «psicologismo», quer dizer, essa tendência de reduzir tudo a interpretações psicológicas, do qual temos aqui um exemplo muito explícito, não é, entre as manifestações características de sua mentalidade, uma das menos singulares nem das menos significativas; além de tudo, no fundo, não é mais que uma das formas mais recentes que tenha tomado o «humanismo», ou seja, a tendência mais geral do espírito moderno para pretender reduzir tudo a elementos puramente humanos.

Notas:

(1)Os livros sagrados, ou ao menos alguns deles, podem ser «poemas» neste sentido, mas não o são certamente no sentido «literário» que pretendem os «críticos» modernos, que com isso querem reduzi-los também a um nível puramente humano.

(2) Os únicos vestígios de poesia mágica que se podem encontrar, ainda, no ocidente formam parte do que nossos contemporâneos convieram chamar de «superstições populares»; efetivamente, é na bruxaria dos campos onde se encontram sobretudo.

(3) Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXVI e XXVII.