As considerações que acabamos de expor nos conduzem de maneira bastante natural a examinar outra questão conexa, a das relações do símbolo com aquilo que se chama «mito»; sobre este tema, devemos observar primeiro que nos ocorreu às vezes falar de certa degeneração do simbolismo como tendo dado nascimento à «mitologia», tomando esta última palavra no sentido que se lhe dá habitualmente, e que é efetivamente exato quando se trata da Antigüidade chamada «clássica», mas que talvez não se poderia aplicar validamente fora desse período das civilizações grega e latina. Assim, pensamos que, para todas as demais partes, convém evitar o emprego deste termo, que só pode dar lugar a equívocos fastidiosos e a assimilações injustificadas; mas, se o uso impuser esta restrição, é mister dizer, não obstante, que a palavra «mito», em si mesma e em sua significação original, não contém nada que marque tal degeneração, bastante tardia em suma, e devida unicamente a uma incompreensão mais ou menos completa do que subsistia de uma tradição muito anterior. Convém adicionar que, ao se falar de «mitos» no que concerne a esta própria tradição, a condição de restabelecer o verdadeiro sentido da palavra e de desprezar tudo o que se lhe adiciona freqüentemente de «pejorativo» na linguagem corrente, não haveria então, em todo caso, «mitologia», posto que esta, tal como a entendem os modernos, não é nada mais que um estudo empreendido «do exterior», e que implica por conseguinte, poder-se-ia dizer, uma incompreensão de segundo grau.
A distinção que se quis estabelecer, às vezes, entre «mitos» e «símbolos» não tem fundamento na realidade: para alguns, enquanto que o mito é um relato que apresenta um sentido diferente do qual expressam direta e literalmente as palavras que lhe compõem, o símbolo seria essencialmente uma representação figurativa de algumas idéias por um esquema geométrico ou por um desenho qualquer; assim, o símbolo seria propriamente um modo gráfico de expressão, e o mito um modo verbal. Segundo o que já explicamos precedentemente, há, no que concerne à significação dada ao símbolo, uma restrição completamente inaceitável, já que toda imagem que é tomada para representar uma idéia, para expressá-la ou sugeri-la de uma maneira qualquer, e em qualquer grau que seja, é por isso mesmo um signo ou, o que é equivalente, um símbolo desta idéia; importa pouco que se trate de uma imagem visual ou de qualquer outro tipo de imagem, já que isso não introduz aqui nenhuma diferença essencial e não muda em absolutamente nada o princípio do simbolismo. Este, em todos os casos, apóia-se sempre sobre uma relação de analogia ou de correspondência entre a idéia que se trata de expressar e a imagem, gráfica, verbal ou outra, pela qual é expressada; deste ponto de vista completamente geral, as próprias palavras, como já o dissemos, não são e não podem ser outra coisa que símbolos. Poder-se-ia, inclusive, em lugar de falar de uma idéia e de uma imagem como o acabamos de fazer, falar mais geralmente ainda de duas realidades quaisquer, de ordens diferentes, entre as quais existe uma correspondência que tem seu fundamento ao mesmo tempo na natureza de uma e de outra: nestas condições, uma realidade de certa ordem pode ser representada por uma realidade de uma ordem diferente, e esta é então um símbolo daquela.
Tendo recordado assim o princípio do simbolismo, vemos que este é evidentemente suscetível de uma multidão de modalidades diversas; o mito não é mais que um simples caso particular, que constitui uma dessas modalidades; pode-se dizer que o símbolo é o gênero, e que o mito é uma de suas espécies. Em outros termos, pode-se considerar um relato simbólico, tanto quanto um desenho simbólico, ou como muitas outras coisas ainda que têm o mesmo caráter e que têm o mesmo papel; os mitos são relatos simbólicos, da mesma forma que as «parábolas» que, no fundo, não diferem deles essencialmente (1); Nisso não nos parece que haja nada que possa dar lugar à menor dificuldade, desde que se tenha compreendido bem a noção geral e fundamental do simbolismo.
Mas, dito isso, há lugar a precisar a significação própria da própria palavra «mito», que pode nos conduzir a algumas observações que não carecem de importância, e que se vinculam ao caráter e à função do simbolismo considerado no sentido mais determinado, onde se distingue da linguagem ordinária e onde se opõe a ela, inclusive, sob alguns aspectos. Esta palavra «mito» se considera usualmente como sinônima de «fábula», entendendo por isso simplesmente uma ficção qualquer, freqüentemente revestida de um caráter mais ou menos poético; isso é o efeito da degeneração da qual falávamos no começo, e os gregos, de cuja língua se tomou este termo, têm certamente sua parte de responsabilidade no que é, para falar a verdade, uma alteração profunda e uma separação de seu sentido primitivo. De fato, neles a fantasia individual começou bastante cedo a dar curso livre em todas as formas de arte que, por isso, em lugar de permanecer propriamente hierático e simbólico como nos egípcios e nos povos do oriente, tomou rapidamente uma direção muito diferente, que importava muito menos em instruir do que em agradar, e que desembocou em produções cuja maior parte está quase desprovida de toda significação real e profunda (salvo o que podia subsistir ainda nelas, embora fora inconscientemente, dos elementos que tinham pertencido à tradição anterior), e onde, em todo caso, já não se encontra nenhum rastro dessa ciência eminentemente «exata» que é o verdadeiro simbolismo; esse é, em suma, o começo do que se pode chamar a arte profana; e coincide sensivelmente com o [começo] desse pensamento igualmente profano que, devido ao exercício da mesma fantasia individual num domínio diferente, devia ser conhecido sob o nome de «filosofia». A fantasia de que se trata se exerceu em particular sobre os mitos preexistentes: os poetas, que desde então já não eram escritores sagrados como na origem e que já não possuíam a inspiração «supra-humana», ao desenvolvê-los e modificá-los ao capricho de sua imaginação, rodearam-nos de ornamentos supérfluos e vãos, obscureceram-nos e os desnaturalizaram, de sorte que aconteceu freqüentemente ser muito difícil recuperar seu sentido e tirar seus elementos essenciais, salvo possivelmente por comparação com os símbolos similares que se podem encontrar em outras partes e que não sofreram a mesma deformação; e se pode dizer que, finalmente, o mito já não foi, ao menos para a imensa maioria, mais que um símbolo incompreendido, o mesmo que seguiu sendo para os modernos. Mas nisso não há mais que abuso e, poderíamos dizer, «profanação» no sentido próprio da palavra; o que nos é mister considerar é que o mito, antes de toda deformação, era essencialmente um relato simbólico, como o dissemos mais atrás, e que essa era sua única razão de ser; e, sob este ponto de vista, «mito» não é inteiramente sinônimo de «fábula», já que esta última palavra (em latim fabula, de fari, falar) não designa etimologicamente mais que um relato qualquer, sem especificar de maneira nenhuma sua intenção ou seu caráter; aqui também, além do mais, o sentido de «ficção» só veio se lhe adicionar apenas ulteriormente. Há mais: estes dois termos, «mito» e «fábula», que foram tomados como equivalentes, derivam-se de raízes que têm em realidade uma significação completamente oposta, já que, enquanto que a raiz de «fábula» designa a palavra, a raiz de «mito», por estranho que isso possa parecer com primeira vista quando se trata de um relato, designa ao contrário o silêncio.
De fato, a palavra grega muthos, «mito», vem da raiz mu, e esta (que se encontra também no latim mutus, mudo) representa a boca fechada, e por conseguinte, o silêncio (2); este é o sentido do verbo muein, fechar a boca, calar-se (e, por extensão, chega a significar também fechar os olhos, em sentido próprio e figurado); o exame de alguns dos derivados deste verbo é particularmente instrutivo. Assim, de muô (em infinitivo muein) derivam-se imediatamente outros dois verbos que somente dele diferem um pouco por sua forma, muaô e mueô; O primeiro tem as mesmas acepções que muô, e é mister lhes adicionar outro derivado, mullô, que significa fechar os lábios, e também, murmurar sem abrir a boca (3). Quanto a mueô, e isto é o mais importante, significa iniciar (aos «mistérios», cujo nome originou também da mesma raiz, como se verá dentro de um momento, e precisamente pela intermediação de mueô e mustês), e, por conseguinte, de uma vez instruir (mas primeiro instruir sem palavras, assim como era efetivamente nos mistérios) e consagrar; deveríamos dizer inclusive em primeiro lugar consagrar, ao se entender por «consagração», como se deve fazer normalmente, a transmissão de uma influência espiritual, ou o rito pelo qual esta se transmite regularmente; e desta última acepção proveio mais tarde para a mesma palavra, na linguagem eclesiástica cristão, a de conferir a ordenação, que de fato é também uma «consagração» neste sentido, embora em uma ordem diferente da ordem iniciática.
Porém, dir-se-á, se a palavra «mito» tiver tido semelhante origem, como é possível que tenha podido servir para designar um relato de certo gênero? É que esta idéia de «silêncio» deve ser referente aqui às coisas que, em razão de sua própria natureza, são inexprimíveis, ao menos diretamente e pela linguagem ordinária; uma das funções gerais do simbolismo é efetivamente sugerir o inexpressável, fazê-lo pressentir, ou melhor «assentir», pelas transposições que permite efetuar de uma ordem a outra, do inferior ao superior, pelo que é mais imediatamente apreensível ao que é muito mais dificilmente; e tal é precisamente o primeiro destino dos mitos. Além do mais, é desta forma que, inclusive na época «clássica», Platão recorreu também ao emprego dos mitos, quando quis expor concepções que transcendem o alcance de seus meios dialéticos habituais; e estes mitos, que certamente não foram «inventados», mas tão somente «adaptados», já que levam a marca incontestável de um ensino tradicional (como a levam, também, alguns procedimentos dos quais faz uso para a interpretação das palavras, e que são comparáveis aos de nirukta na tradição hindu) (4), estes mitos, dizemos, estão muito longe de serem apenas ornamentos literários mais ou menos desdenháveis que vêem neles, muito freqüentemente, os comentadores e os «críticos» modernos, para quem é certamente muito mais cômodo desprezá-los assim sem mais exame que dar deles uma explicação ao menos aproximada; antes pelo contrário, os mitos respondem do que há de mais profundo no pensamento de Platão, mais desligado das contingências individuais, e que ele não pode expressar mais que simbolicamente por causa desta própria profundidade; a dialética nele contém freqüentemente certa parte de «jogo», o que é muito conforme a mentalidade grega, mas, quando a abandona pelo mito, pode-se estar seguro de que o jogo terminou e de que se tratam de coisas que têm de algum modo um caráter «sagrado».
Desta forma, no mito, o que se diz é outra coisa que o que quer dizer; podemos destacar de passagem que isso é também o que significa etimologicamente a palavra «alegoria» (de allo agoreuein, literalmente «dizer outra coisa»), que nos dá ainda outro exemplo das separações de sentido devidas ao uso corrente, já que, de fato, atualmente já não designa mais que uma representação convencional e «literária», de intenção unicamente moral ou psicológica, e que, o mais freqüentemente, entra na categoria do que se chamam usualmente as «abstrações personificadas»; quase não há necessidade de dizer que nada poderia estar mais afastado do verdadeiro simbolismo. Mas, para voltar de novo para mito, se não diz o que quer dizer, sugere-o através desta correspondência analógica que é o fundamento e a essência mesma de todo simbolismo; assim, poder-se-ia dizer, guarda-se o silêncio ao falar, e é daí de onde o mito recebeu sua designação (5).
Convém atrair a atenção sobre o parentesco das palavras «mito» e «mistério», saídas da mesma raiz: a palavra grega mustêrion, «mistério», vincula-se diretamente, ela também, à idéia do «silêncio»; e isto, além de tudo, pode se interpretar em vários sentidos diferentes, mas ligados uns aos outros, e cada um dos quais tem sua razão de ser de certo ponto de vista. Destacamos primeiro que, segundo a derivação que indicamos precedentemente (de mueô), o sentido principal da palavra é o que se refere à iniciação, e é assim, efetivamente, como é mister entender o que se chamavam «mistérios» na Antigüidade grega. Por outra parte, o que mostra ainda o destino verdadeiramente singular de algumas palavras, é que outro termo estreitamente aparentado aos que acabamos de mencionar é, como já o indicamos, o de «místico» que, etimologicamente, aplica-se a tudo o que concerne aos mistérios: mustikos, efetivamente, é o adjetivo de mustês, iniciado; assim, originariamente equivale a «iniciático» e designa tudo o que se refere à iniciação, a sua doutrina e a seu objeto mesmo (mas neste sentido antigo, não pode aplicar-se nunca a pessoas); de fato, nos modernos, esta mesma palavra «místico», a única entre todos estes termos de cepa comum, chegou a designar exclusivamente algo que, como o vimos, não tem absolutamente nada em comum com a iniciação, e que tem inclusive caracteres opostos sob alguns aspectos.
Voltemos de novo agora aos diversos sentidos da palavra «mistério»: no sentido mais imediato, e diríamos de boa vontade o mais grosseiro ou ao menos o mais exterior, o mistério é aquilo do que não se deve falar, aquilo sobre o qual convém guardar silêncio, ou aquilo que está proibido fazer conhecer exteriormente; é assim como se entende mais usualmente, inclusive quando se trata de mistérios antigos; e, na acepção mais corrente que recebeu ulteriormente, a palavra guardou apenas esse sentido. Entretanto, esta proibição de revelar certos ritos e certos ensinos, sem esquecer a parte das considerações de oportunidade que certamente puderam às vezes ter um papel, mas que têm apenas um caráter puramente contingente, pode ser considerada na realidade, sobretudo, como tendo, ela também, um valor simbólico; já nos explicamos sobre este ponto ao falar da verdadeira natureza do segredo iniciático. Como dissemos a este propósito, o que se chamou a «disciplina do segredo», que era rigorosa tanto na primitiva Igreja cristã como nos antigos mistérios (e os adversários religiosos do esoterismo deveriam lembrar-se disso), está muito longe de nos parecer unicamente como uma simples precaução contra a hostilidade, além do mais muito real e freqüentemente perigosa, devida à incompreensão do mundo profano; vemos nela outras razões de uma ordem muito mais profunda, e que podem ser indicadas pelos outros sentidos contidos na palavra «mistério». Além do mais, podemos adicionar que não é uma simples coincidência o fato de que haja uma estreita similaridade entre as palavras «sagrado» (sacratum) e «secreto» (secretum): em um e outro caso, trata-se do que está posto à parte (secernere, pôr à parte, de onde o particípio secretum), reservado, separado do domínio profano; do mesmo modo, o lugar consagrado é chamado templum, cuja raiz tem (que se encontra no grego temnô, cortar, recortar, separar, de onde temenos, recinto sagrado) expressa também a mesma idéia; e a «contemplação», cujo nome provém da mesma raiz, vincula-se também a esta idéia por seu caráter estritamente «interior»(6).
De acordo com o segundo sentido da palavra «mistério», que já é menos exterior, designa o que se deve receber em silêncio (7), aquilo sobre o qual não convém discutir; sob este ponto de vista, todas as doutrinas tradicionais, compreendidos aí os dogmas religiosos que constituem um caso particular delas, podem ser chamadas «mistérios» (estendendo-se então a acepção desta palavra a domínios diferentes do domínio iniciático, mas nos quais se exerce igualmente uma influência «não humana»), porque são verdades que, por sua natureza essencialmente supra-individual e supra-racional, estão acima de toda discussão (8). Desta forma, para ligar este sentido ao primeiro, pode-se dizer que difundir sem o respeito devido entre os profanos os mistérios assim entendidos, é indevidamente liberá-los à discussão, procedimento profano por excelência, com todos os inconvenientes que podem resultar disso e que resume perfeitamente esta palavra de «profanação» que já empregamos precedentemente sobre outro ponto, e que aqui deve ser tomada em sua acepção ao mesmo tempo mais literal e mais completa; o trabalho destrutivo da «crítica» moderna, a respeito de toda tradição, é um exemplo muito eloqüente do que queremos dizer, não sendo necessário insistir mais nisso (9).
Finalmente, há um terceiro sentido, o mais profundo de todos, segundo o qual o mistério é propriamente o inexpressável, o que apenas se pode contemplar em silêncio (e convém recordar aqui o que dizíamos faz um momento da origem da palavra «contemplação»); e, como o inexpressável é ao mesmo tempo e por isso mesmo o incomunicável, a proibição de revelar o ensino sagrado simboliza, deste novo ponto de vista, a impossibilidade de expressar com palavras o verdadeiro mistério do qual este ensino não é, por assim dizer, mais que a vestimenta, que o manifesta e o vela a um só tempo (10). Deste modo, o ensino que concerne ao inexpressável não pode, evidentemente, mais que ser sugerido com a ajuda de imagens apropriadas, que serão como os suportes da contemplação; segundo o que explicamos, isto equivale a dizer que tal ensino toma necessariamente a forma simbólica. Tal foi sempre, e em todos os povos, um dos caracteres essenciais da iniciação aos mistérios, por qualquer nome que, além do mais, a tenha designado; assim, pode-se dizer que os símbolos, e em particular os mitos -quando este ensino se traduziu em palavras, constituem verdadeiramente, em seu primeiro destino, a própria linguagem desta iniciação.