Guenon estuda“Aperçus sur L’Initiation", de René Guénon Éditions Traditionnelles, Paris - 1946

"Considerações sobre a Iniciação"
Capítulos XIII, XIV, XV e XVI

Tradução: Igor Silva

Capítulo XIII: Do Segredo Iniciático

Embora já tenhamos indicado qual é a natureza essencial do segredo iniciático (1), devemos ainda colocar mais considerações quanto a isto, a fim de lhe distinguir, sem nenhum equívoco possível, de todos outros gêneros de segredos mais ou menos exteriores que se encontram nas múltiplas organizações que, por esta razão, são qualificadas de «secretas» no sentido mais geral. De fato, dissemos que, para nós, esta designação significa unicamente que tais organizações possuem um segredo, de qualquer natureza que seja, e também que, segundo a meta à qual se propõem, esse segredo pode recair naturalmente sobre as coisas mais diversas e tomar as formas mais variadas; mas, em todos os casos, um segredo qualquer que não seja o segredo propriamente iniciático tem sempre um caráter convencional; com isso queremos dizer que não é tal mais em virtude de uma convenção mais ou menos expressa, e não pela natureza mesma das coisas. Pelo contrário, o segredo iniciático é tal porque não pode deixar de sê-lo, posto que consiste exclusivamente no «inexpressável» que, por conseguinte, é também necessariamente o «incomunicável»; e assim, se as organizações iniciáticas forem secretas, este caráter não tem aqui nada artificial e não resulta de nenhuma decisão mais ou menos arbitrária por parte de ninguém. Assim, este ponto é particularmente importante para distinguir bem, por uma parte, as organizações iniciáticas de todas as demais organizações secretas, e por outra, para distinguir, nas organizações iniciáticas mesmas, o que constitui o essencial de tudo aquilo que pode ser adicionado a isto acidentalmente; agora devemos nos dedicar a desenvolver um pouco as conseqüências disto.

A primeira destas conseqüências, que, além do mais, já indicamos precedentemente, é que, enquanto que tudo secreto de ordem exterior pode ser sempre traído, o segredo iniciático não pode sê-lo nunca de maneira nenhuma, posto que, em si mesmo e em certo modo por definição, é inacessível e inapreensível aos profanos e não poderia ser penetrado por eles, já que seu conhecimento não pode ser mais que a conseqüência da iniciação mesma. De fato, este segredo é de natureza tal que as palavras não podem lhe expressar; é por isso pelo que, como teremos que explicá-lo mais completamente a seguir, o ensino iniciático não pode fazer uso mais que de ritos e de símbolos, que sugerem melhor que expressam, no sentido ordinário desta palavra. Falando propriamente, o que se transmite pela iniciação não é o segredo mesmo, posto que é incomunicável, a não ser a influência espiritual que tem aos ritos como veículo, e que faz possível o trabalho interior por cujo meio, tomando os símbolos como base e como suporte, cada um alcançará esse segredo e lhe penetrará mais ou menos completamente, mais ou menos profundamente, segundo a medida de suas próprias possibilidades de compreensão e de realização.

Por conseguinte, pense-se o que for das demais organizações secretas, em todo caso, não se pode fazer uma recriminação às organizações iniciáticas por ter este caráter, posto que seu segredo não é algo que elas ocultam voluntariamente por razões quaisquer, legítimas ou não, e sempre mais ou menos sujeitas à discussão e a apreciação como tudo o que procede do ponto de vista profano, mas sim algo que não está no poder de ninguém, embora o queira, desvelar e comunicar a outro. Quanto ao fato destas organizações serem «fechadas», quer dizer, que não admitem todo mundo indistintamente, explica-se simplesmente pela primeira das condições da iniciação, tais como as expusemos mais atrás, quer dizer, pela necessidade de possuir algumas «qualificações» particulares, na falta das quais não se pode tirar nenhum benefício real da vinculação a tal organização. Além disso, quando esta é muito «aberta» e insuficientemente estrita a este respeito, corre o risco de degenerar por conseqüência da incompreensão daqueles aos quais admite dessa forma, sem reflexão, e que, sobretudo quando são maioria, não deixam de introduzir nela toda gama de pontos de vista profanos e de desviar sua atividade para metas que não têm nada em comum com o domínio iniciático, como se vê muito freqüentemente no que, em nossos dias, subsiste ainda das organizações deste gênero no mundo ocidental.

Assim, e isso é uma segunda conseqüência do que enunciamos no começo, o segredo iniciático em si mesmo e o caráter «fechado» das organizações que lhe detêm (ou, para falar mais exatamente, que detêm os meios pelos quais é possível, para aqueles que estão «qualificados», ter acesso a ele) são duas coisas completamente diferentes e que não devem ser confundidas de maneira nenhuma. No que concerne ao primeiro, invocar razões de «prudência» como se faz às vezes, é desconhecer totalmente sua essência e seu alcance; para o segundo, pelo contrário, que depende da natureza dos homens em geral e não da natureza da organização iniciática, pode-se falar até certo ponto de «prudência», no sentido de que, com isto, essa organização se defenda, não contra «indiscrições» impossíveis quanto a sua natureza essencial, mas sim contra esse perigo de degeneração de que acabamos de falar; tampouco é esta a principal razão disso, posto que é apenas a perfeita inutilidade de admitir a individualidades para as quais a iniciação nunca seria mais que «letra morta», quer dizer, uma formalidade vazia e sem nenhum efeito real, porque são, de certo modo, impermeáveis à influência espiritual. Quanto à «prudência» frente ao mundo exterior, assim como se entende mais freqüentemente, não pode ser mais que uma consideração completamente acessória, embora seja certamente legítima em presença de um meio mais ou menos conscientemente hostil, posto que a incompreensão profana raramente se detém em uma postura de indiferença e se modifica com muita facilidade em um ódio cujas manifestações constituem um perigo que, certamente, não tem nada de ilusório; mas, não obstante, isto não poderia alcançar à organização iniciática mesma, que, como tal, é, assim como o dissemos, verdadeiramente «inapreensível». Desta forma, as precauções a este respeito, impor-se-ão mais quanto mais «exteriorizada» esteja essa organização e, por conseguinte, quanto menos puramente iniciática seja; outrossim, é evidente que só neste caso pode chegar a se encontrar em contato direto com o mundo profano, que, de outra maneira apenas poderia ignorá-la pura e simplesmente. Aqui não falaremos de um perigo de outra ordem, que pode resultar da existência do que chamamos «contra-iniciação», perigo ao qual, também, simples medidas exteriores de «prudência» não poderiam evitar; estas valem apenas contra o mundo profano, cujas reações, repetimo-lo, não são de temer senão enquanto a organização tenha tomado uma forma exterior, tal como uma «sociedade», ou foi arrastada quase que completamente a uma ação exercida fora do domínio iniciático, coisas que não poderiam ser consideradas senão como tendo um caráter simplesmente acidental e contingente (2).

Desta forma, chegamos a esclarecer ainda outra conseqüência da natureza do segredo iniciático: pode ocorrer de fato, que, além deste segredo que é o único essencial, uma organização iniciática possua também, secundariamente, e sem perder em modo algum por isso seu caráter próprio, outros segredos que não são da mesma ordem, mas sim de uma ordem mais ou menos exterior e contingente; e são esses segredos puramente acessórios os quais, ao serem forçosamente os únicos aparentes aos olhos do observador de fora, serão suscetíveis a dar lugar a diversas confusões. Esses segredos podem provir da «contaminação» da qual falamos, entendendo por isso a agregação de metas que não têm nada de iniciáticas, e às quais se lhes pode ser dada uma importância mais ou menos grande, posto que, neste tipo de degeneração, todos os graus são evidentemente possíveis; mas a coisa não é sempre assim, e pode ocorrer igualmente que tais segredos se refiram a aplicações contingentes, mas legítimas, da própria doutrina iniciática, aplicações que se julgaram bom serem «reservadas» por razões que podem ser muito diversas, e que terei que determinar em cada caso particular. Os segredos aos quais fazemos alusão aqui são, mais especialmente, aqueles que concernem às ciências e às artes tradicionais; e o que se pode dizer de maneira mais geral a este respeito é que, posto que estas ciências e estas artes não podem ser compreendidas verdadeiramente fora da iniciação onde têm seu princípio, sua «vulgarização» não poderia ter mais que inconvenientes, já que conduziria indevidamente a uma deformação ou inclusive a uma desnaturalização, do gênero da que deu nascimento precisamente às ciências e às artes profanas, como já o expusemos em outras ocasiões.

Nesta mesma categoria de segredos acessórios e não essenciais, deve-se colocar também outro gênero de segredo que existe muito corriqueiramente nas organizações iniciáticas, e que é o que ocasiona mais usualmente, entre os profanos, esse equívoco sobre o qual chamamos a atenção precedentemente: este segredo é o que recai, seja sobre o conjunto dos ritos e dos símbolos em uso em tal organização, ou seja, mais particularmente ainda, e também de uma maneira mais estrita, sobre algumas palavras e alguns signos empregados por ela como «meios de reconhecimento», para permitirem seus membros distinguirem-se dos profanos. Não terá que se dizer que todo segredo desta natureza não tem mais que um valor convencional e completamente relativo, e que, por esse motivo, de que concerna com formas exteriores, sempre pode ser descoberto ou traído, o que, além do mais, correrá o risco de produzir-se tão mais facilmente quanto menos rigorosamente «fechada» seja a organização; assim, deve-se insistir sobre isto, ou seja, que não só este segredo não pode ser confundido de maneira nenhuma com o verdadeiro segredo iniciático, salvo por aqueles que não têm a menor idéia da natureza deste, e que também sequer tem nada de essencial, de sorte que sua presença ou sua ausência não poderia ser invocada para definir a uma organização como possuidora de um caráter iniciático ou como desprovida dele. De fato, a mesma coisa, ou algo equivalente, existe também na maior parte das demais organizações secretas, que não têm nada de iniciático, embora as razões para isso sejam então diferentes: pode se tratar, seja de imitar às organizações iniciáticas em suas aparências mais exteriores, como é o caso para as organizações que qualificamos que «pseudo-iniciáticas», e inclusive para alguns agrupamentos de fantasia que não merecem sequer este nome, ou seja simplesmente de guardar-se tanto quanto é possível contra as indiscrições, no sentido mais vulgar desta palavra, assim como ocorre, sobretudo, nas organizações com fins políticos, o que se compreende sem a menor dificuldade. Por outra parte, para as organizações iniciáticas, a existência de um segredo deste tipo não tem nada de necessário; e inclusive tem uma importância tão menor quanto mais puro e elevado é o caráter destas, porque então estão mais desprovidas de todas as formas exteriores e de tudo o que não é verdadeiramente essencial. Assim, ocorre isto, que pode parecer paradoxal a primeira vista, mas que, não obstante, é muito lógico no fundo: o emprego de «meios de reconhecimento» por uma organização é uma conseqüência de seu caráter «fechado»; mas, naquelas que são precisamente as mais «fechadas» de todas, estes meios se reduzem até desaparecer às vezes inteiramente, porque então não há nenhuma necessidade deles, já que sua utilidade está ligada diretamente a certo grau de «exterioridade» da organização que recorre a eles, e alcançam em certo modo seu máximo quando esta reveste um aspecto «semi-profano», do qual a forma de «sociedade» é o exemplo mais típico, porque é então quando suas ocasiões de contato com o mundo exterior são mais extensas e múltiplos, e porque, por conseguinte, importa-lhe mais distinguir-se deste por meios que eles sejam eles mesmos de ordem exterior.
Além do mais, a existência de tal segredo exterior e secundário nas organizações iniciáticas mais estendidas se justifica também por outras razões; alguns lhe atribuem sobretudo um papel «pedagógico», se for permissível expressar-se assim; em outros termos, a «disciplina do segredo» constituiria uma maneira de «treinamento» ou de exercício que forma parte dos métodos próprios dessas organizações; e se poderia ver nisso, de certo modo, a este respeito, como uma forma atenuada e restringida da «disciplina do silêncio» que estava em uso em algumas escolas esotéricas antigas, concretamente nos pitagóricos (3). Este ponto de vista é certamente justo, sob a condição de não ser exclusivo; e terá que destacar que, sob este aspecto, o valor do segredo é completamente independente do das coisas sobre as quais recai; o segredo guardado sobre as coisas mais insignificantes terá, enquanto que «disciplina», exatamente a mesma eficácia que um segredo realmente importante em si mesmo. Isto deveria ser uma resposta suficiente aos profanos que, a este propósito, acusam às organizações iniciáticas de «infantilidade», na falta de compreender que as palavras ou os sinais sobre os quais se impõe o segredo têm um valor simbólico próprio; se forem incapazes de chegar até considerações desta última ordem, o que acabamos de indicar está ao menos a seu alcance e não exige certamente um grande esforço de compreensão.

Mas, na realidade, há uma razão mais profunda, apoiada precisamente sobre este caráter simbólico que acabamos de mencionar, e que faz que o que se chama «meios de reconhecimento» não seja apenas isso, mas também, ao mesmo tempo, algo mais: trata-se verdadeiramente de símbolos como todos os outros, cuja significação deve ser igualmente meditada e aprofundada, e que formam, desta forma, parte integrante do ensino iniciático. Além do mais, é igualmente assim para todas as formas empregadas pelas organizações iniciáticas, e, no geral, para todas aquelas que têm um caráter tradicional (compreendidas aí as formas religiosas): no fundo, são sempre outras coisas do que aquilo que o parecem de fora, e é inclusive isso o que as diferencia essencialmente das formas profanas, onde a aparência exterior é tudo e não reveste nenhuma realidade de outra ordem. Deste ponto de vista, o segredo de que se trata é ele próprio um símbolo, o do verdadeiro segredo iniciático, o que é evidentemente muito mais que um simples meio «pedagógico» (4); mas, bem entendido, aqui mais que em qualquer outra parte, o símbolo não deve ser confundido de maneira nenhuma com o que é simbolizado, e é esta confusão cometida pela ignorância profana, porque não sabe ver o que há detrás da aparência, e porque não concebe sequer que possa haver aí algo mais que o que cai sob os sentidos, o que equivale virtualmente à negação pura e simples de todo simbolismo.

Finalmente, indicaremos uma última consideração que poderia dar lugar ainda a outros desenvolvimentos: o segredo de ordem exterior, nas organizações iniciáticas onde existe, forma propriamente parte do ritual, posto que o que é seu objeto se comunica, sob a obrigação correspondente do silêncio, no curso mesmo da iniciação a cada grau ou como acabamento deste. Assim, este segredo não só constitui um símbolo como acabamos de dizê-lo, mas também um verdadeiro rito, com toda a virtude própria que é inerente a este como tal; e, além do mais, para falar a verdade, em todos os casos, o rito e o símbolo estão estreitamente ligados por sua própria natureza, assim como teremos que explicá-lo mais amplamente a seguir.

Notas:

(1) Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XII.

(2) O que acabamos de dizer aqui se aplica ao mundo profano reduzido a si mesmo, caso possa se expressar assim; mas convém adicionar que, em alguns casos, também pode servir de instrumento inconsciente a uma ação exercida pelos representantes da «contra-iniciação».

(3) Disciplina secreti ou disciplina arcani, dizia-se também na igreja cristã dos primeiros séculos, o que parecem esquecer alguns inimigos do «segredo»; mas é mister destacar que, em latim, a palavra disciplina tem o mais freqüentemente o sentido de «ensino» que, além do mais, é seu sentido etimológico, e inclusive, por derivação, o de «ciência» ou de «doutrina», enquanto que o que se chama «disciplina» em francês não tem mais que um valor de meio preparatório em vista de uma meta que pode ser de conhecimento como é o caso aqui, mas que pode ser também de uma ordem diferente, por exemplo simplesmente «moral»; é inclusive desta última maneira como, de fato, é entendida mais usualmente no mundo profano.

(4) Caso se queira entrar um pouco no detalhe a este respeito, poder-se-ia destacar, por exemplo, que as «palavras sagradas» que não se devem pronunciar nunca são um símbolo particularmente claro do «inefável» ou do «inexpressável»; além do mais, sabe-se que algo semelhante se encontra às vezes até no exoterismo, por exemplo, para o Tetragrama na tradição judaica. Poder-se-ia mostrar, também, na mesma ordem de idéias, que alguns sinais estão em relação com a «localização», no ser humano, dos «centros» sutis cujo «despertar» constitui, segundo alguns métodos (concretamente os métodos «tântricos» na tradição hindu), um dos meios de aquisição do conhecimento iniciático efetivo.

Capítulo XIV: Das Qualificações Iniciáticas

É-nos necessário retornar agora às questões que se referem à primeira condição e prévia da iniciação, quer dizer, à que se designa como as «qualificações» iniciáticas; para falar a verdade, este tema é daqueles que quase não é possível pretender tratar de uma maneira completa, mas ao menos podemos contribuir com algumas elucidações. Primeiro, deve se entender bem que estas qualificações são exclusivamente do domínio da individualidade; efetivamente, se não houvesse que considerar mais que a personalidade ou o «Si mesmo», não haveria nenhuma diferença que fazer a este respeito entre os seres, e todos estariam igualmente qualificados, sem que haja lugar para fazer a menor exceção; mas a questão se apresenta de modo muito diferente devido ao fato de que a individualidade deve ser tomada necessariamente como meio e como suporte da realização iniciática; por conseguinte, é necessário que possua as aptidões requeridas para exercer este papel, e tal não é sempre o caso. A individualidade é aqui, caso se queira, apenas o instrumento do ser verdadeiro; mas, se este instrumento apresentar alguns defeitos, pode ser mais ou menos completamente inutilizável, ou inclusive sê-lo totalmente para aquilo do que se trata. Além disso, nisso não há nada do qual alguém deva se surpreender, contanto que se reflita que, inclusive na ordem das atividades profanas (ou ao menos feitas tais nas condições da época atual), o que lhe é possível para uns, não o é para outros, e que, por exemplo, o exercício de tal ou qual ofício exige algumas aptidões especiais, mentais e corporais simultaneamente. A diferença essencial é que, nesse caso, trata-se de uma atividade que depende totalmente do domínio individual, domínio que não ultrapassa de maneira nenhuma, nem sob nenhuma relação, enquanto que, no que concerne à iniciação, o resultado a alcançar está, pelo contrário, além dos limites da individualidade; mas, ainda uma vez mais, esta não deve ser menos considerada como ponto de partida, e essa é uma condição à qual é impossível subtrair-se.

Pode-se dizer isto também: o ser que empreende o trabalho de realização iniciática deve partir forçosamente de certo estado de manifestação, aquele no qual está situado atualmente, e que comporta todo um conjunto de condições determinadas: por uma parte, as condições que são inerentes a esse estado e que lhe definem de uma maneira geral, e, por outra, aquelas que, nesse mesmo estado, são particulares a cada individualidade e que a diferenciam de todas as demais. É evidente que são estas últimas as que devem ser consideradas no que concerne às qualificações, posto que nisso se trata de algo que, pela própria definição, não é comum a todos os indivíduos, mas sim caracteriza propriamente apenas àqueles que pertencem, virtualmente ao menos, à «elite» entendida no sentido no qual já empregamos freqüentemente esta palavra em outras partes, sentido que aprimoraremos ainda mais, a seguir, a fim de mostrar como se vincula diretamente à questão mesma da iniciação.

Agora, é necessário compreender bem que a individualidade deve ser tomada aqui tal como é de fato, com todos seus elementos constitutivos, e que pode haver qualificações que concirnam a cada um desses elementos, compreendido nisto o próprio elemento corporal, que, sob este ponto de vista, não deve ser tratado de maneira nenhuma como algo indiferente ou desdenhável. Talvez não se necessitasse insistir tanto nisso se não nos encontrássemos em presença da concepção grosseiramente simplificada que os ocidentais modernos fazem do ser humano: não só a individualidade é para eles o ser total, inteiro, mas também, além disso, esta própria individualidade é reduzida a duas partes que se supõem completamente separadas uma da outra, uma das quais é o corpo, e a outra algo bastante mal definido, que é designado indiferentemente com os nomes mais diversos e às vezes os menos apropriados. Agora, a realidade é completamente diferente: os elementos múltiplos da individualidade, qualquer que seja, não obstante, a maneira com a qual se os queira classificar, não estão isolados uns dos outros, mas formam um conjunto no qual não poderia haver heterogeneidade radical ou irredutível; e todos, o corpo tanto quanto os outros, são, sob o mesmo título, manifestações ou expressões do ser nas diversas modalidades do domínio individual. Entre estas modalidades há correspondências tais que o que acontecer numa tem normalmente sua repercussão nas outras; disso resulta que, por uma parte, o estado do corpo pode influenciar de uma forma favorável ou desfavorável sobre as demais modalidades, e que, por outra, posto que a inversa não é menos verdadeira (e inclusive mais verdadeira ainda, já que a modalidade corporal é aquela cujas possibilidades são mais restringidas), pode proporcionar também sinais que traduzem sensivelmente o próprio estado destas (1); está claro que estas duas considerações complementares têm, uma e outra, sua importância sob a relação das qualificações iniciáticas. Tudo isso seria perfeitamente evidente se a noção especificamente ocidental e moderna da «matéria», o dualismo cartesiano e as concepções mais ou menos «mecanicistas», não tivessem obscurecido de tal modo estas coisas para a maioria de nossos contemporâneos (2); trata-se de circunstâncias contingentes que obrigam a atrasar-se em considerações tão elementares, que de outro modo bastaria enunciá-las em poucas palavras, sem ter que lhes adicionar a menor explicação.

Não é necessário dizer que a qualificação essencial, a que domina todas as demais, é uma questão de «horizonte intelectual» um pouco extensa; mas pode ocorrer que as possibilidades de ordem intelectual, ainda existindo virtualmente numa individualidade, estejam, devido ao fato dos elementos inferiores desta (elementos de ordem psíquica e corporal, simultaneamente) impedidas de se desenvolverem, seja passageiramente, ou seja definitivamente, inclusive. Essa é a primeira razão do que se poderia chamar de qualificações secundárias; e há ainda uma segunda razão que resulta imediatamente do que acabamos de dizer: é que, nesses elementos, que são os mais acessíveis à observação, podem-se encontrar marcas de algumas limitações intelectuais; neste último caso, as qualificações secundárias são, de certo modo, equivalentes simbólicos da própria qualificação fundamental. No primeiro caso, pelo contrário, pode ocorrer que não tenham sempre igual importância: assim, pode haver obstáculos que se opõem a toda iniciação, inclusive simplesmente virtual, ou só a uma iniciação efetiva, ou ainda à passagem aos graus mais elevados, ou, enfim, unicamente ao exercício de algumas funções numa organização iniciática (já que se pode ser apto para receber uma influência espiritual sem ser por isso necessariamente apto para transmiti-la); e é necessário adicionar também que há impedimentos especiais que podem não concernir mais que a algumas formas de iniciação.

Sobre este último ponto, basta recordar, em suma, que a diversidade dos modos de iniciação, seja de uma forma tradicional a outra, seja no interior de uma mesma forma tradicional, tem precisamente como meta responder à [diversidade] das aptidões individuais; evidentemente não teria nenhuma razão de ser se um modo único pudesse convir igualmente a todos aqueles que estão, de uma maneira geral, qualificados para receber a iniciação. Posto que isso não é desta forma, cada organização iniciática deverá ter sua «técnica» particular, e não poderá admitir naturalmente mais que aqueles que sejam capazes de conformar-se a ela e de tirar dela um benefício efetivo, o que supõe, quanto às qualificações, a aplicação de todo um conjunto de regras especiais, válidas apenas para a organização considerada, e que não excluem de nenhuma maneira, para aqueles que sejam descartados por isso, a possibilidade de encontrarem em outra parte uma iniciação equivalente, sempre que possuírem as qualificações gerais que são estritamente indispensáveis em todos os casos. Um dos exemplos mais claros que se podem dar a este respeito, é o fato de que existem formas de iniciação que são exclusivamente masculinas, enquanto que há outras onde as mulheres podem ser admitidas tal como os homens (3); assim, pode-se dizer que nisso há certa qualificação que é exigida num caso e que não o é no outro, e que esta diferença reside nos modos particulares da iniciação da qual se trate; além do mais, retornaremos sobre isso depois, já que pudemos constatar que este fato é geralmente muito mal compreendido em nossa época.

Ali onde existe uma organização social tradicional, inclusive na ordem exterior, posto que cada um está no lugar que convém a sua própria natureza individual, deve por isso mesmo encontrar também mais facilmente, se está qualificado, o modo de iniciação que corresponde a suas possibilidades. Assim, ao se considerar desde este ponto de vista a organização das castas, a iniciação dos kshatriyas não poderia ser idêntica à dos brâmanes (4), e assim sucessivamente; e, de uma maneira mais particular ainda, uma forma de iniciação pode estar ligada ao exercício de um ofício determinado, o que não pode ter todo seu valor efetivo mais que se o ofício que exercer cada indivíduo é aquele efetivamente ao qual está destinado pelas aptidões inerentes a sua própria natureza, de tal sorte que essas aptidões formarão ao mesmo tempo parte integrante das qualificações especiais requeridas pela forma de iniciação correspondente.

Ao contrário, ali onde já nada está organizado segundo as regras tradicionais, o que é o caso do mundo ocidental moderno, resulta uma confusão que se estende a todos os domínios, e que ocasiona indevidamente complicações e dificuldades múltiplas, quanto à determinação precisa das qualificações iniciáticas, posto que o lugar do indivíduo na sociedade já não tem então mais que uma relação muito longínqua com sua natureza, e posto que, inclusive, muito freqüentemente, são unicamente os lados mais exteriores e menos importantes deste os que se tomam em consideração, quer dizer, aqueles que não têm realmente nenhum valor, nem sequer secundário, do ponto de vista iniciático. Outra causa de dificuldades que se adiciona ainda a essa, e que, além disso, é-lhe solidária em certa medida, é o esquecimento das ciências tradicionais: posto que os dados de algumas delas podem proporcionar o meio de reconhecer a verdadeira natureza de um indivíduo, quando faltam estas ciências, já não é possível, por outros métodos quaisquer, as suprir inteiramente e com uma perfeita exatidão; e faça o que se fizer a este respeito, sempre haverá aí uma parte maior de «empirismo», que poderá dar lugar a muitos enganos. Além disso, essa é uma das principais razões da degeneração de algumas organizações iniciáticas: a admissão de elementos não qualificados que, seja por ignorância pura e simples das regras que deveriam eliminá-los, ou por impossibilidade de aplicá-las com exatidão, é efetivamente um dos fatores que mais contribuem para esta degeneração, e que pode inclusive, ao se generalizar, conduzir finalmente à ruína completa tal organização.

Depois destas considerações de ordem geral, seria necessário, para aprimorar mais a significação real que convém atribuir às qualificações secundárias, dar alguns exemplos bem definidos das condições requeridas para o acesso a tal ou qual forma iniciática, e mostrar em cada caso seu sentido e seu alcance verdadeiro; mas tal exposição, quando deve dirigir-se aos ocidentais, faz-se muito difícil pelo fato de que estes, inclusive no caso mais favorável, não conhecem mais que um número extremamente restringido destas formas iniciáticas, e porque as referências a todas as demais correriam o risco de permanecer quase inteiramente incompreendidas. Mais ainda, tudo o que subsiste no ocidente das antigas organizações desta ordem está muito diminuído sob todos os aspectos, como já o dissemos muitas vezes, e é fácil dar-se conta disso mais especialmente no que concerne à questão mesma tratada no presente: se ainda se exigem aí algumas qualificações, é mais pela força do hábito que por uma compreensão qualquer de sua razão de ser; e, nestas condições, não haverá lugar para surpresas se ocorrer às vezes que alguns membros destas organizações protestam contra a manutenção destas qualificações, onde sua ignorância não vê mais que uma espécie de vestígio histórico, um resto de um estado de coisas desaparecido faz muito tempo, em uma palavra, um «anacronismo» puro e simples. Não obstante, como a pessoa está obrigada a tomar como ponto de partida àquilo que tem mais imediatamente ao seu dispor, isso mesmo pode proporcionar a ocasião de algumas indicações que, apesar de tudo, não carecem de interesse, e que, embora tenham sobretudo a nossos olhos o caráter de simples «ilustrações», por isso não são menos suscetíveis de dar lugar a algumas reflexões de uma aplicação mais extensa do que poderia parecer à primeira vista.

Já não há apenas no mundo ocidental, como organizações iniciáticas que podem reivindicar uma filiação tradicional autêntica (condição fora da qual, recordá-lo-emos ainda uma vez mais, não poderia tratar-se mais que de «pseudo-iniciação»), mais que o Companheirismo e a Maçonaria, quer dizer, formas iniciáticas baseadas essencialmente sobre o exercício de um ofício, na origem ao menos, e, por conseguinte, caracterizadas por métodos particulares, simbólicos e rituais, em relação direta com esse mesmo ofício (5). Somente, aqui terá que fazer uma distinção: no Companheirismo, o laço original com o ofício se manteve sempre, enquanto que, na Maçonaria, desapareceu de fato; daí, neste último caso, o perigo de um desconhecimento mais completo da necessidade de algumas condições, não obstante inerentes à forma iniciática mesma de que se trata. Efetivamente, no outro caso, é evidente que ao menos as condições requeridas para que o ofício possa ser exercido como tal, e inclusive para que o seja de uma maneira tão adequada como é possível, não poderão ser perdidas de vista nunca, inclusive se não se considera nada mais que isso, quer dizer, se não se tomar em consideração mais que sua razão exterior e se esquecendo de sua razão mais profunda e propriamente iniciática. Pelo contrário, ali onde esta razão profunda não está menos esquecida e onde a própria razão exterior não existe tampouco, é bastante natural em suma (o que, bem entendido, não quer dizer legítimo) que se chegue a pensar que a manutenção de semelhantes condições não se impõe de maneira nenhuma, e a não considerá-las senão como restrições importunas, e inclusive injustas (e esta é uma consideração da qual se abusa muito em nossa época, conseqüência do «igualitarismo» destruidor da noção de «elite»), juntas a um recrutamento que a mania do «proselitismo» e da superstição democrática do «grande número», traços bem característicos do espírito ocidental moderno, quereriam fazer tão amplo quanto fora possível, o que é, efetivamente, como já o dissemos, uma das causas mais certas e mais irremediáveis de degeneração para uma organização iniciática.

No fundo, o que se esquece em tal caso, é simplesmente isto: se o ritual iniciático tomar como «suporte» o ofício, de tal maneira que, por assim dizer, seria seu derivado por uma transposição apropriada (e sem dúvida, na origem, seria necessário considerar as coisas mais no sentido inverso, já que o ofício, do ponto de vista tradicional, não representa verdadeiramente mais que uma aplicação contingente dos princípios aos quais a iniciação se refere diretamente), o cumprimento deste ritual, para ser real e plenamente válido, exigirá algumas condições, entre as quais se encontrarão as do próprio exercício do ofício, posto que aqui se aplica igualmente à mesma transposição, em virtude das correspondências que existem entre as diferentes modalidades do ser; e, devido a isso, aparece claramente que, como o indicamos mais atrás, qualquer pessoa que está qualificada para a iniciação, de uma maneira geral, não o está por isso mesmo indiferentemente para toda forma iniciática qualquer que seja. Devemos adicionar que o desconhecimento deste ponto fundamental, que conduz à redução completamente profana das qualificações a simples regras corporativas, aparece, ao menos no que concerne à Maçonaria, como ligado bastante estreitamente a um equívoco sobre o verdadeiro sentido da palavra «operativo», equívoco sobre o qual teremos que nos explicar depois com os desenvolvimentos requeridos, já que dá lugar a considerações de um alcance iniciático completamente geral.

Assim, se a iniciação maçônica excluir concretamente às mulheres (o que, já o dissemos, não significa de maneira nenhuma que estas sejam inaptas para toda iniciação), e também aos homens que estão afetados de algumas enfermidades, isso não é simplesmente porque, antigamente, aqueles que eram admitidos nela deviam ser capazes de transportar fardos ou de subir sobre os andaimes, como alguns o asseguram com uma desconcertante ingenuidade; é porque, para aqueles que são assim excluídos, a iniciação maçônica como tal poderia ser válida, embora seus efeitos seriam nulos por falta de qualificação. A este respeito, pode-se dizer primeiro que a conexão com o ofício, se tiver deixado de existir quanto ao exercício exterior deste, nem por isso subsiste menos de uma maneira essencial, enquanto que permanece necessariamente inscrita na própria forma desta iniciação; se chegasse a ser eliminada, isso já não seria a iniciação maçônica, senão qualquer outra coisa completamente diferente; e, além disso, como seria impossível substituir legitimamente por outra filiação tradicional a que existe de fato, já nem sequer haveria então, realmente, nenhuma iniciação. Por isso é que, ali onde, à falta de uma compreensão mais efetiva, fica ainda ao menos certa consciência um pouco obscura do valor próprio das formas rituais, persiste-se em considerar as condições das quais falamos aqui como formando parte integrante dos landmarks (o termo inglês, nesta acepção «técnica» não tem equivalente exato em francês [N.T. - nem em português: utiliza-se a própria palavra inglesa]), que não podem ser modificados em nenhuma circunstância, e cuja supressão ou negligência correria o risco de conduzir uma verdadeira nulidade iniciática (6).

Agora, ainda há algo mais: ao se examinar de perto a lista dos defeitos corporais que são considerados como impedimentos para a iniciação, constatar-se-á que entre eles há alguns que não parecem muito graves exteriormente, e que, em todo caso, não são tais que possam opor-se a que um homem exerça o ofício de construtor (7). Por conseguinte, isso não é ainda mais que uma explicação parcial, embora exata em toda na medida em que é aplicável, e, além das condições requeridas pelo ofício, a iniciação exige outras que já não têm nada que ver com este, mas estão unicamente em relação com as modalidades do trabalho ritual, considerado, além disso, não só em sua «materialidade», caso se possa dizer desta forma, mas sim sobretudo como devendo produzir resultados efetivos para o ser que lhe cumpre. Isso aparecerá mais claramente se, entre as diversas formulações dos landmarks (já que, embora não escritos em princípio, não obstante, foram freqüentemente o objeto de enumerações mais ou menos detalhadas), alguém se remete às mais antigas, quer dizer, a uma época onde as coisas das quais se trata eram ainda conhecidas, e inclusive, por alguns ao menos, conhecidas de uma maneira que não era simplesmente teórica ou «especulativa», mas sim realmente «operativa», no verdadeiro sentido ao qual fazíamos alusão mais atrás. Ao fazer este exame, a pessoa poderá dispor-se inclusive de uma coisa que, certamente, hoje em dia pareceria completamente extraordinária a alguns se fossem capazes de dar-se conta dela: é que os impedimentos para a iniciação, na Maçonaria, coincidem quase inteiramente com os que, na Igreja católica, são os impedimentos para a ordenação (8).

Este último ponto é ainda daqueles que, para ser bem compreendido, chamam a atenção para algum comentário, já que, a primeira vista, poder-se-ia estar tentado a supor que nisso há certa confusão entre coisas da ordem diferente, ainda mais quando já insistimos freqüentemente sobre a distinção essencial que existe entre os dois domínios, iniciático e religioso, e que, por conseqüência, deve se encontrar também entre os ritos que se referem respectivamente a um e a outro. Entretanto, não há necessidade de refletir longamente para compreender que deve haver leis gerais que condicionam o cumprimento dos ritos, de qualquer ordem que sejam, posto que se tratam sempre, em suma, da execução de algumas influências espirituais, embora suam metas sejam naturalmente diferentes segundo os casos. Por outro lado, poder-se-ia objetar também que, no caso da ordenação, trata-se propriamente da aptidão para desempenhar algumas funções (9), enquanto que, no que se relaciona à iniciação, as qualificações requeridas para recebê-la são diferentes das que podem ser necessárias para exercer, além disso, uma função dentro de uma organização iniciática (função que concerne principalmente à transmissão da influência espiritual); e é exato que não é sob este ponto de vista das funções onde é necessário colocar-se para que a similitude seja verdadeiramente aplicável. O que é necessário considerar, é que, em uma organização religiosa do tipo do catolicismo, só o sacerdote cumpre ativamente os ritos, enquanto que os leigos não participam deles mais que de um modo «receptivo»; pelo contrário, a atividade na ordem ritual constitui sempre, e sem nenhuma exceção, um elemento essencial de todo método iniciático, de tal maneira que este método implica necessariamente a possibilidade de exercer tal atividade. É pois, em definitivo, este cumprimento ativo dos ritos o que exige, além da qualificação propriamente intelectual, algumas qualificações secundárias, que variam em parte segundo o caráter especial que revestem esses ritos em tal ou qual forma iniciática, entre as quais a ausência de alguns defeitos corporais exerce sempre um papel importante, seja enquanto esses defeitos obstaculizem diretamente o cumprimento dos ritos, seja enquanto sinais exteriores de defeitos correspondentes nos elementos sutis do ser. Essa é sobretudo a conclusão que queremos tirar de todas estas considerações; e, no fundo, o que parece se referir aqui, especialmente a um caso particular, o da iniciação maçônica, foi apenas o meio mais cômodo de expor estas coisas, que ficam ainda por aprimorar com a ajuda de alguns exemplos determinados de impedimentos devidos a defeitos corporais ou a defeitos psíquicos manifestados sensivelmente por estes.

Se considerarmos as enfermidades ou os simples defeitos corporais, enquanto sinais exteriores de algumas imperfeições da ordem psíquica, convirá fazer uma distinção entre os defeitos que o ser apresenta desde seu nascimento, ou que se desenvolvem naturalmente nele, no curso de sua existência, como conseqüência de certa predisposição, e aqueles que são simplesmente o resultado de algum acidente. Efetivamente, é evidente que os primeiros traduzem algo que pode ser considerado como mais estritamente inerente à própria natureza do ser e que, por conseguinte, é mais grave do ponto de vista onde nos colocamos, embora, além de tudo, posto que a um ser não se lhe pode ocorrer nada que não corresponda realmente a algum elemento mais ou menos essencial de sua natureza, as mesmas enfermidades de origem aparentemente acidental não podem ser consideradas como inteiramente indiferentes a este respeito. Por outro lado, ao se considerarem estes mesmos defeitos como obstáculos diretos ao cumprimento dos ritos ou a sua ação efetiva sobre o ser, já não tem que intervir a distinção que acabamos de indicar; mas deve entender-se bem que alguns defeitos que não constituem tais obstáculos não são por isso menos, pela primeira razão, impedimentos para a iniciação, e inclusive às vezes impedimentos de um caráter mais absoluto, já que expressam uma «deficiência» interior que faz ao ser impróprio para toda iniciação, enquanto que pode haver enfermidades que obstaculizam apenas a eficácia dos métodos «técnicos» particulares a tal ou a qual forma iniciática.

Alguns poderão estranhar de que digamos que as enfermidades acidentais têm também uma correspondência na própria natureza do ser que é alcançado por elas; entretanto, isso não é, em suma, mais que uma conseqüência direta do que são realmente as relações do ser com o ambiente no qual se manifesta: todas as relações entre os seres manifestados em um mesmo mundo, ou, o que é a mesma coisa, todas suas ações e reações recíprocas, não podem ser reais mais que se forem a expressão de algo que pertença à natureza de cada um desses seres. Em outros termos, posto que tudo o que um ser sofre, assim como tudo o que faz, constitui uma «modificação» de si mesmo, deve corresponder necessariamente a algumas das possibilidades que estão em sua natureza, de tal sorte que não pode haver nada que seja puramente acidental, ao se entender esta palavra no sentido de «extrínseco» como se faz usualmente. Assim, toda a diferença não é aqui mais que uma diferença de grau: há modificações que representam algo mais importante ou mais profundo que outras; por conseguinte, em certo modo, sob este aspecto há valores hierárquicos a serem observados entre as diversas possibilidades do domínio individual; mas, falando rigorosamente, nada é indiferente ou está desprovido de significação, porque, no fundo, um ser não pode receber de fora mais que simples «ocasiões» para a realização, em modo manifestado, das virtualidades que leva primeiro em si mesmo.

Pode parecer estranho também, a aqueles que ficam nas aparências, que algumas imperfeições pouco graves do ponto de vista exterior tenham sido consideradas sempre e por toda parte como um impedimento à iniciação; um caso típico desse gênero é o da gagueira. Na realidade, basta refletir um pouco para se dar conta de que, neste caso, encontram-se precisamente e simultaneamente, uma e outra das duas razões que mencionamos; e, efetivamente, primeiro, há o fato de que a «técnica» ritual implica quase sempre a pronúncia de algumas fórmulas verbais, pronúncia que deve ser naturalmente completamente correta para ser válida, o que a gagueira não permite a aqueles seres que estão afligidos por ela. Por outra parte, há em semelhante enfermidade o sinal manifesto de certa «arritmia» do ser, se for permissível o emprego desta palavra; e, além disso, as duas coisas estão aqui estreitamente ligadas, já que o emprego mesmo das fórmulas às quais acabamos de fazer alusão não é propriamente mais que uma das aplicações da «ciência do ritmo» ao método iniciático, de maneira que a incapacidade para pronunciá-las corretamente depende em definitivo da «arritmia» interna do ser.

Esta «arritmia» não é mais que um caso particular de desarmonia ou de desequilíbrio na constituição do indivíduo; e se pode dizer, de uma maneira geral, de todas as anomalias corporais que são marcas de um desequilíbrio mais ou menos acentuado, que, se não são forçosamente sempre impedimentos absolutos (já que nisso há evidentemente muitos graus que observar), são ao menos indícios desfavoráveis num candidato à iniciação. Além de tudo, pode ocorrer que tais anomalias, que não são propriamente enfermidades, não sejam de tal natureza que se oponham ao cumprimento do trabalho ritual, embora, entretanto, se alcançarem um grau de gravidade que indica um desequilíbrio profundo e irremediável, bastam por si só para desqualificar ao candidato, conforme o que já explicamos mais atrás. Tais são, por exemplo, as assimetrias notáveis do rosto ou dos membros; mas, bem entendido, se não se tratar mais que de assimetrias muito leves, não poderiam considerar-se sequer verdadeiramente como uma anomalia, já que, de fato, não há nenhuma pessoa que apresente em todo ponto uma simetria corporal exata. Além disso, isto pode interpretar-se como significando que, ao menos no estado atual da humanidade, nenhum indivíduo está perfeitamente equilibrado sob todos os aspectos; e, efetivamente, posto que a realização do perfeito equilíbrio da individualidade implica a completa neutralização de todas as tendências opostas que atuam nela, e, por conseguinte, a fixação em seu centro mesmo, único ponto onde estas oposições deixam de manifestar-se, equivale por isso mesmo, pura e simplesmente, à restauração do «estado primitivo». Assim, vê-se que é necessário não exagerar nada, e que, se houver indivíduos que estão qualificados para a iniciação, estão-no apesar de certo estado de desequilíbrio relativo que é inevitável, mas que precisamente a iniciação poderá e deverá atenuar, se produzir um resultado efetivo, e inclusive fazer desaparecer se chegar a ser levada até o grau que corresponde à perfeição das possibilidades individuais, quer dizer, como o explicaremos ainda mais adiante, até o término dos «mistérios menores» (10).

Devemos fazer observar ainda que há alguns defeitos que, sem ser tais que se oponham a uma iniciação virtual, podem a impedir de ser efetiva; além disso, não é necessário dizer que é aqui sobretudo onde haverá lugar para ter em conta às diferenças de métodos que existem entre as diversas formas iniciáticas; mas, em todos os casos terá que considerar condições deste tipo desde que se entenda passar do «especulativo» a «operação». Um dos casos mais gerais, nesta ordem, será concretamente aquele dos defeitos que, como algumas separações da coluna vertebral, prejudicam a circulação normal das correntes sutis do organismo; quase não há necessidade de recordar, efetivamente, o papel importante que exercem estas correntes na maior parte dos processos de realização, a partir de seu começo mesmo, e enquanto as possibilidades individuais não forem ultrapassadas. Convém adicionar, para evitar todo equívoco a este respeito, que se o exercício destas correntes acontece conscientemente em alguns métodos (11), há outros onde a coisa não é assim, mas onde, não obstante, tal ação não existe menos efetivamente por isso, e não é menos importante na realidade; o exame profundo de algumas particularidades rituais, de alguns «sinais de reconhecimento» por exemplo (que são ao mesmo tempo outra coisa quando os compreende verdadeiramente), poderia proporcionar sobre isto indicações muito claras, embora certamente inesperadas para quem não está habituado a considerar as coisas desde este ponto de vista que é propriamente o da «técnica» iniciática.

Como é necessário nos limitarmos, contentar-nos-emos com estes exemplos, pouco numerosos sem dúvida, mas escolhidos expressamente entre aqueles que correspondem aos casos mais característicos e mais instrutivos, para fazer compreender o melhor possível aquilo do que se trata verdadeiramente; seria em suma pouco útil, quando não completamente fastidioso, multiplicá-los indefinidamente. Se insistimos tanto sobre o lado corporal das qualificações iniciáticas é porque, certamente, ao risco que se corre de aparecer menos claramente aos olhos de muitos, que nossos contemporâneos estão geralmente mais dispostos a desconhecer, e, por conseguinte, aquele sobre o que terá que atrair sua atenção tão mais especialmente. Também havia uma ocasião nisso para mostrar ainda, com toda a claridade requerida, quão longe está o que concerne à iniciação das simples teorias mais ou menos vagas que quereriam ver nela tantas pessoas que, por um efeito muito comum da confusão moderna, têm a pretensão de falar de coisas das quais não têm o menor conhecimento real, mas que por isso não acreditam [ser] menos fácil poder «reconstruí-las» ao gosto de sua imaginação; e, finalmente, é particularmente fácil dar-se conta, por considerações «técnicas» deste tipo, que a iniciação é algo totalmente diferente do misticismo e que, verdadeiramente, não poderia ter a menor relação com ele.

Notas:

(1) Daí a ciência que, na tradição islâmica, designa-se como ilm-ul-firâsah.

(2) Sobre todas estas questões, ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos.

(3) Na Antigüidade, houve inclusive formas de iniciação exclusivamente femininas.

(4) Retornaremos sobre isto mais adiante, a propósito da questão da iniciação sacerdotal e da iniciação real.

(5) Expusemos os princípios sobre os quais repousam as relações da iniciação e do ofício no Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. VIII.

(6) Estes landmarks são considerados como existindo from teme inmemorial, quer dizer, que é impossível lhes atribuir alguma origem histórica definida.

(7) Assim, para dar um exemplo preciso deste gênero, não se vê no que um gago poderia ser incomodado no exercício deste oficio por sua enfermidade.

(8) Tal é assim, em particular, para o que se chamava no século XVIII a «regra da letra B», quer dizer, para os impedimentos que estão constituídos, por uma e outra parte igualmente, para uma série de enfermidades e de defeitos corporais cujos nomes em francês, por uma coincidência bastante curiosa, começavam todos por esta mesma letra B.

(9) Além disso, como já o observamos Precedentemente, este caso é o único onde podem se exigir algumas qualificações particulares dentro de uma organização tradicional da ordem exotérico.

(10) Assinalamos em outra parte, a propósito das descrições do Anticristo, e precisamente no que concerne às assimetrias corporais, que algumas desqualificações iniciáticas deste gênero podem constituir, ao contrário, qualificações a respeito da «contra-iniciação» (O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXIX).

(11) Em particular os métodos «tântricos» aos quais já fizemos alusão em uma nota precedente.

Capítulo XV: Dos Ritos Iniciáticos

No que precede, fomos levados quase continuamente a fazer alusão aos ritos, já que constituem o elemento essencial para a transmissão da influência espiritual e da vinculação à «cadeia» iniciática, de sorte que se pode dizer que, sem os ritos, não poderia haver iniciação de maneira nenhuma. É-nos necessário voltar ainda sobre esta questão dos ritos para considerar alguns pontos particularmente importantes; e, além do mais, bem entendido, aqui não pretendemos tratar completamente dos ritos em geral, de sua razão de ser, de seu papel, dos diversos tipos nos quais se dividem, já que esse é também um tema que requereria somente para ele um volume inteiro.

Importa destacar primeiro que a presença dos ritos é uma característica comum a todas as instituições tradicionais, de qualquer ordem que sejam, tanto exotéricas, quanto esotéricas, tomando estes termos em seu sentido mais amplo como já o fizemos precedentemente. Esta característica é uma conseqüência do elemento «não humano» comprometido essencialmente em tais instituições, já que se pode dizer que os ritos têm sempre como meta pôr ao ser humano em relação, direta ou indiretamente, com algo que transcende sua individualidade e que pertence a outros estados de existência; além do mais, é evidente que não é necessário em todos os casos que a comunicação assim estabelecida seja consciente para ser real, já que, o mais habitualmente, opera-se por intermediação de algumas modalidades sutis do indivíduo, modalidades às quais a maior parte dos homens é incapaz de transferir ao centro de sua consciência. Seja como for, que o efeito seja aparente ou não, que seja imediato ou diferido, o rito leva sempre sua eficácia em si mesmo, a condição, não terá que dizê-lo, de que se cumpra conforme as regras tradicionais que asseguram sua validade, e fora das quais não seria mais que uma forma vazia e um vão simulacro; e esta eficácia não tem nada de «maravilhoso», nem de «mágico», como alguns o dizem às vezes com uma intenção manifesta de denigrescimento e de negação, já que resulta simplesmente das leis claramente definidas segundo as quais atuam as influências espirituais, leis das quais a «técnica» ritual não é em suma mais que a aplicação e a prática (1).

Esta consideração da eficácia inerente aos ritos, que se funda em leis que não deixam nenhum lugar à fantasia ou à arbitrariedade, é comum a todos os casos sem exceção; isso é verdadeiro tanto para os ritos de ordem exotérica como para os ritos iniciáticos, e, entre os primeiros, tanto para os ritos que dependem de formas tradicionais não religiosas como para os ritos religiosos. Devemos recordar também a este propósito, já que se trata de um ponto dos mais importantes, que, como já o explicamos precedentemente, esta eficácia é inteiramente independente do que vale em si mesmo o indivíduo que cumpre o rito; aqui só conta a função, e não o indivíduo como tal; em outros termos, a condição necessária e suficiente é que este tenha recebido regularmente o poder de cumprir tal rito; assim, importa pouco que não compreenda verdadeiramente sua significação, e inclusive que não creia em sua eficácia, pois isso não poderia impedir o rito de ser válido, se todas as regras prescritas se observaram convenientemente (2).

Dito isso, podemos passar agora ao que concerne mais especialmente à iniciação, e notaremos primeiro, a este respeito, que seu caráter ritual põe ainda em evidência uma das diferenças fundamentais que a separam do misticismo, para o qual não existe nada disso, o que se compreende sem esforço se alguém se remeter ao que dissemos de sua «irregularidade». Estar-se-á possivelmente tentado a objetar que o misticismo aparece às vezes como tendo um laço mais ou menos direto com a observância de alguns ritos; mas estes não lhe pertencem propriamente de modo algum, posto que são apenas ritos religiosos ordinários; e, além do mais, este laço não tem nenhum caráter de necessidade, já que, de fato, está longe de existir em todos os casos, enquanto que, repetimo-lo, não há iniciação sem ritos especiais e apropriados. De fato, a iniciação não é, como as realizações místicas, algo que «cai das nuvens», caso se possa dizer desse modo, sem que se saiba como nem por que; repousa ao contrário sobre leis científicas positivas e sobre regras técnicas rigorosas; não se poderia insistir muito nisto, cada vez que se apresenta a ocasião para isso, para afastar toda possibilidade de mal-entendido sobre sua verdadeira natureza (3).

Quanto à distinção dos ritos iniciáticos e dos ritos exotéricos, só podemos indicá-la aqui sumariamente, já que, fôssemos tratar de entrar no detalhe, correr-se-ia o risco de nos levar muito longe; haveria lugar, concretamente, para tirar todas as conseqüências do fato de que os primeiros estão reservados e não concernem mais que a uma elite que possui qualificações particulares, enquanto que os segundos são públicos e se dirigem indistintamente a todos os membros de um meio social dado, o que mostra bem que, quaisquer que possam ser às vezes as similitudes aparentes, a meta não poderia ser a mesma na realidade (4). De fato, os ritos exotéricos não têm como meta, como os ritos iniciáticos, abrir ao ser a algumas possibilidades de conhecimento para o qual todos não poderiam ser aptos; e, por outra parte, é essencial destacar que, embora tenham em conta necessariamente, também, à intervenção de um elemento de ordem supra-individual, sua ação nunca está destinada a transcender o domínio da individualidade. Isto é muito visível no caso dos ritos religiosos, que podemos tomar mais particularmente como termo de comparação, porque são os únicos ritos exotéricos que são conhecidos atualmente no ocidente: toda religião se propõe unicamente assegurar a «salvação» de seus aderentes, o que é uma finalidade que depende ainda da ordem individual, e, por definição, de certo modo, seu ponto de vista não se estende mais à frente; os próprios místicos apenas consideram a «salvação», e nunca a «liberação», enquanto que, ao contrário, esta é a meta última e suprema de toda iniciação (5).

Outro ponto de uma importância capital é o seguinte: a iniciação, a qualquer grau que seja, representa para o ser que a recebeu uma aquisição permanente, um estado que, virtual ou efetivamente, alcançou de uma vez por todas, e que nada a seguir poderia lhe arrebatar (6). Podemos destacar que nisso há também uma diferença muito clara com os estados místicos, que aparecem como algo passageiro e inclusive fugitivo, dos quais o ser sai como entrou, e que pode inclusive não recuperar jamais, o que se explica pelo caráter «fenomênico» destes estados, recebidos de «fora», de certo modo, em lugar de proceder da «interioridade» mesma do ser (7). Disso resulta imediatamente esta conseqüência, que os ritos de iniciação conferem um caráter definitivo e indelével; além do mais, ocorre o mesmo, em outra ordem com alguns ritos religiosos, que, por esta razão, nunca poderiam ser renovados para o mesmo indivíduo, e que, por isso mesmo, são aqueles que apresentam a analogia mais acentuada com os ritos iniciáticos, até tal ponto que, em certo sentido, poder-se-lhes-ia considerar como uma gama de transposição destes no domínio exotérico (8) .

Outra conseqüência do que acabamos de dizer é isto, que já indicamos de passagem, mas sobre o qual convém insistir um pouco mais: a qualidade iniciática, uma vez que foi recebida, não está vinculada de maneira nenhuma ao fato de ser membro ativo de tal ou qual organização; desde que a vinculação a uma organização tradicional foi efetuada, não pode ser quebrada por nada, e subsiste ainda que o indivíduo já não tenha nenhuma relação aparente com essa organização, o que não tem mais que uma importância completamente secundária a este respeito. A falta de toda outra consideração, isso somente bastaria para mostrar quão profundamente diferem as organizações iniciáticas das associações profanas, às quais não poderiam ser assimiladas e nem sequer comparadas de maneira nenhuma: aquele que se retira de uma associação profana ou que é excluído dela, já não tem nenhum laço com ela e volta a ser de novo exatamente o que era antes de formar parte dela; pelo contrário, o laço estabelecido pelo caráter iniciático não depende em nada de contingências tais como uma demissão ou uma exclusão, que são de ordem simplesmente «administrativa», como já o dissemos, e que não afetam mais que às relações exteriores; e, se estas últimas são tudo na ordem profana, onde uma associação não tem nada mais que dar a seus membros, na ordem iniciática são, pelo contrário, apenas um meio completamente acessório, e em modo algum necessário, em relação com as realidades interiores que são as únicas que importam verdadeiramente. Basta, pensamos, um pouco de reflexão para dar-se conta de que todo isso é perfeitamente evidente; o que é surpreendente é constatar, como já tivemos várias vezes a ocasião de fazê-lo, um desconhecimento quase geral de noções tão simples e tão elementares (9).

Notas:

(1) Quase não há necessidade de dizer que todas as considerações que expusemos aqui concernem exclusivamente aos ritos verdadeiros, possuidores de um caráter autenticamente tradicional, e que nos negamos absolutamente a dar este nome de ritos ao que não é mais que uma paródia deles, quer dizer, às cerimônias estabelecidas em virtude de costumes puramente humanos, e cujo efeito, se tiverem algum, não poderia transcender em nenhum caso o domínio «psicológico», no sentido mais profano desta palavra; além do mais, a distinção dos ritos e das cerimônias é bastante importante como para que a tratemos especialmente a seguir.

(2) É pois um grave engano empregar, como o vimos fazer freqüentemente a certo escritor maçônico, aparentemente muito satisfeito deste «descobrimento» desventurado, a expressão de «jogar o ritual» ao falar do cumprimento dos ritos iniciáticos por indivíduos que ignoram seu sentido e que já não procuram sequer lhe penetrar; tal expressão não poderia convir mais que no caso de profanos que simulassem os ritos, não tendo qualidade para cumpri-los validamente; mas, em uma organização iniciática, por degenerada que possa estar quanto à qualidade de seus membros atuais, o ritual não é algo ao qual se joga, e permanece sempre uma coisa séria e realmente eficaz, inclusive sem que o saibam aqueles que tomam parte nele.

(3) É a esta técnica, que concerne ao manejo das influências espirituais, a que se referem propriamente expressões como as de «arte sacerdotal» e de «arte real», que designam as aplicações respectivas das iniciações correspondentes; por outra parte, aqui se trata de ciência sagrada e tradicional, que, embora seja certamente de uma ordem diferente da ciência profana, não por isso é menos «positiva», e é inclusive realmente muito mais ao se tomar esta palavra em seu verdadeiro sentido, em lugar de lhe desviar abusivamente como o fazem os «cientificistas» modernos.

(4) Assinalamos a este propósito o engano dos etnólogos e dos sociólogos que qualificam muito impropriamente de «ritos de iniciação» a ritos que concernem simplesmente à agregação de um indivíduo a uma organização social exterior, e para os quais o fato de ter alcançado certa idade constitui a única qualificação requerida; além do mais, voltaremos sobre este ponto de novo.

(5) Ao se dizer que, segundo a distinção que consideraremos mais adiante, isto só é verdadeiro quanto aos «mistérios maiores», responderemos que os «mistérios menores», que se detêm efetivamente nos limites das possibilidades humanas, não constituem em relação a estes mais que um estágio preparatório e que não são em si mesmos seu próprio fim, enquanto que a religião se apresenta como um todo que se basta a si mesmo e que não requer nenhum complemento ulterior.

(6) Consideramos, para que não haja lugar a nenhum equívoco, que isto deve ser entendido unicamente dos graus de iniciação, e não das funções, que podem não ser conferidas mais que temporalmente a um indivíduo, ou que este pode estar inapto para exercê-las por múltiplas razões; tratam-se de duas coisas inteiramente distintas, entre as quais se deve buscar não cometer nenhuma confusão, posto que a primeira é de ordem puramente interior, enquanto que a segunda se refere a uma atividade exterior do ser, o que explica a diferença que acabamos de indicar.

(7) Isto toca à questão da «dualidade», que mantém necessariamente o ponto de vista religioso, por isso mesmo de que se refere essencialmente ao que a terminologia hindu designa como o «Não Supremo».

(8) Sabe-se que, entre os sete sacramentos do catolicismo, há três que estão neste caso e que não podem ser recebidos mais que uma só vez: o batismo, a confirmação e a ordem; a analogia do batismo com uma iniciação, enquanto «segundo nascimento», é evidente, e a confirmação representa em princípio o acesso a um grau superior; quanto à ordem; já assinalamos as similitudes que se podem encontrar nele no que concerne à transmissão das influências espirituais, similitudes que são feitas ainda mais chamativas pelo fato de que este sacramento não é recebido por todos e requer, como o dissemos, algumas qualificações especiais.

(9) Para tomar, a título de aplicação do que acaba de ser dito em último lugar, o exemplo mais simples e mais vulgar no que concerne às organizações iniciáticas, é completamente inexato falar de um «ex-maçom», como se faz correntemente; um Maçom demissionário ou inclusive excluído já não forma parte de nenhuma Loja maçônica nem de nenhuma Obediência, mas por isso não é menos Maçom; além do mais, que ele o queira ou não, isso não muda nada; e a prova disso é que, se voltar depois para ser «reintegrado», não se lhe inicia de novo e não se lhe faz voltar a passar pelos graus que já recebeu; assim, a expressão inglesa de "unattached Mason" é a única que convém propriamente em parecido caso.

Capítulo XVI: O Rito e o Símbolo

Indicamos anteriormente que o rito e o símbolo, que são, todos os dois, elementos essenciais de toda iniciação, e que inclusive, de uma maneira mais geral, encontram-se associados também invariavelmente em tudo o que apresenta um caráter tradicional, estão na realidade estreitamente ligados por sua própria natureza. Efetivamente, todo rito comporta necessariamente um sentido simbólico em todos seus elementos constitutivos, e, inversamente, todo símbolo produz (e é a isso inclusive ao qual está essencialmente destinado), para aquele que o medita com as aptidões e as disposições requeridas, efeitos rigorosamente comparáveis aos dos ritos propriamente ditos, sob a reserva, bem entendido, de que haja, no ponto de partida deste trabalho de meditação e como condição prévia, a transmissão iniciática regular, fora da qual, além de tudo, os ritos não seriam mais que um vão simulacro, assim como ocorre nas paródias da pseudo-iniciação. É necessário adicionar ainda que, quando se trata de ritos e de símbolos verdadeiramente tradicionais (e aqueles que não possuem este caráter não merecem ser chamados assim, posto que não são na realidade mais que simples contrafações profanas delas), sua origem é igualmente «não humana»; assim, a impossibilidade de lhes indicar um autor ou um interventor determinado, que já assinalamos, não se deve à ignorância, como o podem supor os historiadores ordinários (quando não chegam, num último extremo, a ver nisso o produto de uma espécie de «consciência coletiva», que, se existisse, seria em todo caso bem incapaz de dar nascimento a coisas da ordem transcendente, como aquelas das quais são tratadas aqui), mas é uma conseqüência necessária desta própria origem, que só pode ser contestada por aqueles que desconhecem totalmente a verdadeira natureza da tradição e de tudo o que forma parte integrante dela, como é muito evidentemente o caso, simultaneamente, para os ritos e para os símbolos.

Ao se querer examinar mais de perto esta identidade profunda do rito e do símbolo, pode-se dizer, primeiro, que o símbolo, entendido como representação «gráfica», assim como o é mais ordinariamente, não é, de certo modo, mais que a fixação de um gesto ritual (1). Além disso, ocorre freqüentemente que o próprio traçado do símbolo deve se efetuar regularmente em condições que lhe confiram todos os caracteres de um rito propriamente dito; disto se tem um exemplo muito claro, em um domínio inferior, o da magia (que, apesar de tudo, é uma ciência tradicional), com a confecção das figuras talismânicas; e, na ordem que nos concerne mais imediatamente, o traçado dos yantras, na tradição hindu, é também um exemplo não menos explícito disso (2).

Mas isso não é tudo, já que, para falar a verdade, a noção do símbolo à qual acabamos de nos referir é muito estreita: não há somente símbolos figurados ou visuais, há também símbolos sonoros; já indicamos em outra parte esta distinção de duas categorias fundamentais, que são, na doutrina hindu, a do yantra e a do mantra (3). Estabelecíamos então inclusive que sua predominância respectiva caracterizava a dois tipos de ritos, que, na origem, atribuem-se, para os símbolos visuais, às tradições dos povos sedentários, e, para os símbolos sonoros, às dos povos nômades; além disso, entenda-se bem que, entre uns e outros, a separação não pode ser estabelecida de uma maneira absoluta (e é por isso que falamos apenas de predominância), posto que aqui são possíveis todas as combinações, devido ao fato das adaptações múltiplas que se produziram no decorrer das idades e pelas quais foram constituídas as diversas formas tradicionais que nos são conhecidas atualmente. Estas considerações mostram bastante claramente o laço que existe, de uma maneira completamente geral, entre ritos e símbolos; mas, podemos adicionar que, no caso dos mantras, este laço é mais imediatamente aparente: efetivamente, enquanto que o símbolo visual, uma vez que foi esboçado, fica ou pode ficar no estado permanente (e é por isso que falamos de gesto fixado), o símbolo sonoro, pelo contrário, não é manifestado mais que no cumprimento mesmo do rito. Além do mais, esta diferença se encontra atenuada quando se estabelece uma correspondência entre os símbolos sonoros e os símbolos visuais; é o que ocorre com a escritura, que representa uma verdadeira fixação do som (não do som mesmo como tal, bem entendido, mas sim de uma possibilidade permanente de lhe reproduzir); e quase não há necessidade de recordar a este propósito que toda escritura, quanto a suas origens ao menos, é uma representação essencialmente simbólica. Além disso, a coisa não é diferente para a palavra mesmo, à qual este caráter simbólico não é menos inerente por sua natureza própria: é muito evidente que a palavra, qualquer que seja, não poderia ser nada mais que um símbolo da idéia que está destinada a expressar; assim, toda linguagem, tanto oral quanto escrita, é verdadeiramente um conjunto de símbolos, e é precisamente por isso que a linguagem, apesar de todas as teorias «naturalistas» que foram imaginadas nos tempos modernos para tentar lhe explicar, não pode ser uma criação mais ou menos artificial do homem, nem um simples produto de suas faculdades de ordem individual (4).

Há também, para os símbolos visuais mesmo, um caso bastante comparável ao dos símbolos sonoros, sob a relação que acabamos de indicar: este caso é o dos símbolos que não são traçados de maneira permanente, mas que são empregados apenas como sinais nos ritos iniciáticos (concretamente os «sinais de reconhecimento» dos quais falamos anteriormente) (5) e inclusive religiosos (o «sinal da cruz» é um exemplo típico disso e conhecido por todos) (6); aqui, o símbolo não forma realmente mais que uma unidade com o gesto ritual mesmo (7). Além disso, seria completamente inútil querer fazer destes sinais uma terceira categoria de símbolos, diferente daquelas das que falamos até aqui; provavelmente, alguns psicólogos os considerariam assim e os designariam como símbolos «motores» ou por qualquer outra expressão deste gênero; mas, posto que se fazem evidentemente para serem recebidos pela vista, entram por isso mesmo na categoria dos símbolos visuais; e são nesta, em razão de sua «instantaneidade», caso se possa dizer, os que representam a maior semelhança com a categoria complementar, a dos símbolos sonoros. Além do mais, o símbolo «gráfico» mesmo é, repetimo-lo, um gesto ou um movimento fixado (o próprio movimento ou o conjunto mais ou menos complexo de movimentos que é necessário fazer para lhe traçar, e que os mesmos psicólogos, em sua linguagem especial, chamariam sem dúvida um «esquema motor») (8); e, no que respeita aos símbolos sonoros, pode-se dizer, também, que o movimento dos órgãos vocais, necessário para sua produção (trate-se, além de tudo, da emissão da palavra ordinária ou da de sons musicais), constitui em suma um gesto da mesma ordem que todos outros tipos de movimentos corporais, dos quais, além disso, nunca lhe é possível isolar inteiramente (9). Assim, esta noção do gesto, tomada em sua acepção mais extensa (e que, além de tudo, é mais conforme ao que implica verdadeiramente a palavra do que a acepção mais restrita que lhe dá o uso corrente), reduz todos estes casos diferentes à unidade, de sorte que se pode dizer que é aí onde tem no fundo seu princípio comum; e, na ordem metafísica, este fato tem uma significação profunda, que não podemos pensar desenvolver aqui, a fim de não nos apartarmos muito do tema principal de nosso estudo.

Deve-se poder compreender agora sem esforço o fato de que todo rito esteja constituído literalmente por um conjunto de símbolos: estes, efetivamente, não compreendem apenas os objetos empregados ou as figuras representadas, como se poderia estar tentado a supor quando alguém fica na noção mais superficial, mas também os gestos efetuados e as palavras pronunciadas (posto que, na realidade, segundo o que acabamos de dizer, estas não são mais que um caso particular daqueles), numa palavra, todos os elementos do rito sem exceção; e estes elementos têm assim valor de símbolos por sua própria natureza, e não em virtude de uma significação superposta que lhes viria das circunstâncias exteriores e que não lhes seria verdadeiramente inerente. Poder-se-ia dizer, também, que os ritos são símbolos «postos em ação», e que todo gesto ritual é um símbolo «operado» (10); não é, em suma, mais que outra maneira de expressar a mesma coisa, pondo apenas mais especialmente em evidência o caráter que apresenta o rito de ser, como toda ação, algo que se cumpre forçosamente no tempo (11), enquanto que o símbolo, como tal, pode ser considerado de um ponto de vista «intemporal». Neste sentido, poder-se-ia falar de certa preeminência do símbolo em relação ao rito; mas rito e símbolo são apenas, no fundo, dois aspectos de uma mesma realidade; e esta não é outra, em definitivo, que a correspondência que liga entre eles todos os graus da Existência universal, de tal sorte que, por ela, nosso estado humano pode ser posto em comunicação com os estados superiores do ser.

Notas:

(1) Estas considerações se relacionam diretamente com o que chamamos a «teoria do gesto», à qual temos feito alusão em diversas ocasiões.

(2) A isso se pode assemelhar, na antiga Maçonaria, o traçado do «tabuleiro da Loja maçônica» (em inglês tracing board, e também, possivelmente por corrupção, trestle board), que constituía efetivamente um verdadeiro yantra. Os ritos em relação com a construção de monumentos com o destino tradicional poderiam citar-se também aqui como exemplo, posto que esses monumentos tinham necessariamente, em si mesmos, um caráter simbólico.

(3) Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXI.

(4) Não é necessário dizer que a distinção das «línguas sagradas» e das «línguas profanas» não intervém aqui mais que secundariamente; tanto para as línguas como para as ciências e as artes, o caráter profano nunca representa mais que o resultado de uma verdadeira degeneração, que, além disso, pôde se produzir mais rápido e mais facilmente no caso das línguas em razão de seu uso mais corrente e mais generalizado.

(5) As «palavras» de uso semelhante entram naturalmente na categoria dos símbolos sonoros.

(6) Além do mais, este sinal era também um verdadeiro «sinal de reconhecimento» para os cristãos dos primeiros tempos.

(7) Um caso de certo modo intermediário é o das figuras simbólicas que, riscadas ao começo de um rito ou em sua preparação, são apagadas imediatamente depois de seu cumprimento; igualmente é assim para muitos yantras, e era também assim antigamente para o «tabuleiro da Loja» na Maçonaria. Esta prática não representa apenas uma precaução tomada contra a curiosidade profana, explicação sempre muito «simplista» e superficial; é necessário ver nela sobretudo uma conseqüência do laço mesmo que une intimamente o símbolo e o rito, de tal sorte que o símbolo não teria nenhuma razão de subsistir visivelmente fora do rito.

(8) Isso se vê muito claramente em um caso como o do «sinal de reconhecimento» que, nos pitagóricos, consistia em riscar o «pentagrama» com um só traço.

(9) Indicamos, no que concerne às relações da linguagem com o gesto, entendido em seu sentido mais ordinário e restrito, os trabalhos do Rev. P. Marcel Jousse, que embora tenham um ponto de partida forçosamente muito diferente do nosso, não são por isso menos dignos de interesse, desde nosso ponto de vista, posto que tocam a questão de alguns modos de expressão tradicionais ligados geralmente à constituição e ao uso das línguas sagradas, e quase inteiramente perdidos ou esquecidos nas línguas profanas, que estão, em suma, reduzidas à forma de linguagem mais estreitamente limitada de todas.

(10) Notaremos particularmente, desde este ponto de vista, o papel exercido nos ritos pelos gestos que a tradição hindu chama mudrâs, e que constituem uma verdadeira linguagem de movimentos e de atitudes; os «toques» (em inglês grips) empregados como «meios de reconhecimento» nas organizações iniciáticas, tanto no ocidente como no oriente, não são outra coisa na realidade que um caso particular dos mudrâs.

(11) Em sânscrito, a palavra karma, que significa primeiro «ação» em geral, emprega-se de uma maneira «técnica» para designar, em particular, a «ação ritual»; o que expressa então diretamente, é este mesmo caráter do rito que indicamos aqui.