É-nos necessário retornar agora às questões que se referem à primeira condição e prévia da iniciação, quer dizer, à que se designa como as «qualificações» iniciáticas; para falar a verdade, este tema é daqueles que quase não é possível pretender tratar de uma maneira completa, mas ao menos podemos contribuir com algumas elucidações. Primeiro, deve se entender bem que estas qualificações são exclusivamente do domínio da individualidade; efetivamente, se não houvesse que considerar mais que a personalidade ou o «Si mesmo», não haveria nenhuma diferença que fazer a este respeito entre os seres, e todos estariam igualmente qualificados, sem que haja lugar para fazer a menor exceção; mas a questão se apresenta de modo muito diferente devido ao fato de que a individualidade deve ser tomada necessariamente como meio e como suporte da realização iniciática; por conseguinte, é necessário que possua as aptidões requeridas para exercer este papel, e tal não é sempre o caso. A individualidade é aqui, caso se queira, apenas o instrumento do ser verdadeiro; mas, se este instrumento apresentar alguns defeitos, pode ser mais ou menos completamente inutilizável, ou inclusive sê-lo totalmente para aquilo do que se trata. Além disso, nisso não há nada do qual alguém deva se surpreender, contanto que se reflita que, inclusive na ordem das atividades profanas (ou ao menos feitas tais nas condições da época atual), o que lhe é possível para uns, não o é para outros, e que, por exemplo, o exercício de tal ou qual ofício exige algumas aptidões especiais, mentais e corporais simultaneamente. A diferença essencial é que, nesse caso, trata-se de uma atividade que depende totalmente do domínio individual, domínio que não ultrapassa de maneira nenhuma, nem sob nenhuma relação, enquanto que, no que concerne à iniciação, o resultado a alcançar está, pelo contrário, além dos limites da individualidade; mas, ainda uma vez mais, esta não deve ser menos considerada como ponto de partida, e essa é uma condição à qual é impossível subtrair-se.
Pode-se dizer isto também: o ser que empreende o trabalho de realização iniciática deve partir forçosamente de certo estado de manifestação, aquele no qual está situado atualmente, e que comporta todo um conjunto de condições determinadas: por uma parte, as condições que são inerentes a esse estado e que lhe definem de uma maneira geral, e, por outra, aquelas que, nesse mesmo estado, são particulares a cada individualidade e que a diferenciam de todas as demais. É evidente que são estas últimas as que devem ser consideradas no que concerne às qualificações, posto que nisso se trata de algo que, pela própria definição, não é comum a todos os indivíduos, mas sim caracteriza propriamente apenas àqueles que pertencem, virtualmente ao menos, à «elite» entendida no sentido no qual já empregamos freqüentemente esta palavra em outras partes, sentido que aprimoraremos ainda mais, a seguir, a fim de mostrar como se vincula diretamente à questão mesma da iniciação.
Agora, é necessário compreender bem que a individualidade deve ser tomada aqui tal como é de fato, com todos seus elementos constitutivos, e que pode haver qualificações que concirnam a cada um desses elementos, compreendido nisto o próprio elemento corporal, que, sob este ponto de vista, não deve ser tratado de maneira nenhuma como algo indiferente ou desdenhável. Talvez não se necessitasse insistir tanto nisso se não nos encontrássemos em presença da concepção grosseiramente simplificada que os ocidentais modernos fazem do ser humano: não só a individualidade é para eles o ser total, inteiro, mas também, além disso, esta própria individualidade é reduzida a duas partes que se supõem completamente separadas uma da outra, uma das quais é o corpo, e a outra algo bastante mal definido, que é designado indiferentemente com os nomes mais diversos e às vezes os menos apropriados. Agora, a realidade é completamente diferente: os elementos múltiplos da individualidade, qualquer que seja, não obstante, a maneira com a qual se os queira classificar, não estão isolados uns dos outros, mas formam um conjunto no qual não poderia haver heterogeneidade radical ou irredutível; e todos, o corpo tanto quanto os outros, são, sob o mesmo título, manifestações ou expressões do ser nas diversas modalidades do domínio individual. Entre estas modalidades há correspondências tais que o que acontecer numa tem normalmente sua repercussão nas outras; disso resulta que, por uma parte, o estado do corpo pode influenciar de uma forma favorável ou desfavorável sobre as demais modalidades, e que, por outra, posto que a inversa não é menos verdadeira (e inclusive mais verdadeira ainda, já que a modalidade corporal é aquela cujas possibilidades são mais restringidas), pode proporcionar também sinais que traduzem sensivelmente o próprio estado destas (1); está claro que estas duas considerações complementares têm, uma e outra, sua importância sob a relação das qualificações iniciáticas. Tudo isso seria perfeitamente evidente se a noção especificamente ocidental e moderna da «matéria», o dualismo cartesiano e as concepções mais ou menos «mecanicistas», não tivessem obscurecido de tal modo estas coisas para a maioria de nossos contemporâneos (2); trata-se de circunstâncias contingentes que obrigam a atrasar-se em considerações tão elementares, que de outro modo bastaria enunciá-las em poucas palavras, sem ter que lhes adicionar a menor explicação.
Não é necessário dizer que a qualificação essencial, a que domina todas as demais, é uma questão de «horizonte intelectual» um pouco extensa; mas pode ocorrer que as possibilidades de ordem intelectual, ainda existindo virtualmente numa individualidade, estejam, devido ao fato dos elementos inferiores desta (elementos de ordem psíquica e corporal, simultaneamente) impedidas de se desenvolverem, seja passageiramente, ou seja definitivamente, inclusive. Essa é a primeira razão do que se poderia chamar de qualificações secundárias; e há ainda uma segunda razão que resulta imediatamente do que acabamos de dizer: é que, nesses elementos, que são os mais acessíveis à observação, podem-se encontrar marcas de algumas limitações intelectuais; neste último caso, as qualificações secundárias são, de certo modo, equivalentes simbólicos da própria qualificação fundamental. No primeiro caso, pelo contrário, pode ocorrer que não tenham sempre igual importância: assim, pode haver obstáculos que se opõem a toda iniciação, inclusive simplesmente virtual, ou só a uma iniciação efetiva, ou ainda à passagem aos graus mais elevados, ou, enfim, unicamente ao exercício de algumas funções numa organização iniciática (já que se pode ser apto para receber uma influência espiritual sem ser por isso necessariamente apto para transmiti-la); e é necessário adicionar também que há impedimentos especiais que podem não concernir mais que a algumas formas de iniciação.
Sobre este último ponto, basta recordar, em suma, que a diversidade dos modos de iniciação, seja de uma forma tradicional a outra, seja no interior de uma mesma forma tradicional, tem precisamente como meta responder à [diversidade] das aptidões individuais; evidentemente não teria nenhuma razão de ser se um modo único pudesse convir igualmente a todos aqueles que estão, de uma maneira geral, qualificados para receber a iniciação. Posto que isso não é desta forma, cada organização iniciática deverá ter sua «técnica» particular, e não poderá admitir naturalmente mais que aqueles que sejam capazes de conformar-se a ela e de tirar dela um benefício efetivo, o que supõe, quanto às qualificações, a aplicação de todo um conjunto de regras especiais, válidas apenas para a organização considerada, e que não excluem de nenhuma maneira, para aqueles que sejam descartados por isso, a possibilidade de encontrarem em outra parte uma iniciação equivalente, sempre que possuírem as qualificações gerais que são estritamente indispensáveis em todos os casos. Um dos exemplos mais claros que se podem dar a este respeito, é o fato de que existem formas de iniciação que são exclusivamente masculinas, enquanto que há outras onde as mulheres podem ser admitidas tal como os homens (3); assim, pode-se dizer que nisso há certa qualificação que é exigida num caso e que não o é no outro, e que esta diferença reside nos modos particulares da iniciação da qual se trate; além do mais, retornaremos sobre isso depois, já que pudemos constatar que este fato é geralmente muito mal compreendido em nossa época.
Ali onde existe uma organização social tradicional, inclusive na ordem exterior, posto que cada um está no lugar que convém a sua própria natureza individual, deve por isso mesmo encontrar também mais facilmente, se está qualificado, o modo de iniciação que corresponde a suas possibilidades. Assim, ao se considerar desde este ponto de vista a organização das castas, a iniciação dos kshatriyas não poderia ser idêntica à dos brâmanes (4), e assim sucessivamente; e, de uma maneira mais particular ainda, uma forma de iniciação pode estar ligada ao exercício de um ofício determinado, o que não pode ter todo seu valor efetivo mais que se o ofício que exercer cada indivíduo é aquele efetivamente ao qual está destinado pelas aptidões inerentes a sua própria natureza, de tal sorte que essas aptidões formarão ao mesmo tempo parte integrante das qualificações especiais requeridas pela forma de iniciação correspondente.
Ao contrário, ali onde já nada está organizado segundo as regras tradicionais, o que é o caso do mundo ocidental moderno, resulta uma confusão que se estende a todos os domínios, e que ocasiona indevidamente complicações e dificuldades múltiplas, quanto à determinação precisa das qualificações iniciáticas, posto que o lugar do indivíduo na sociedade já não tem então mais que uma relação muito longínqua com sua natureza, e posto que, inclusive, muito freqüentemente, são unicamente os lados mais exteriores e menos importantes deste os que se tomam em consideração, quer dizer, aqueles que não têm realmente nenhum valor, nem sequer secundário, do ponto de vista iniciático. Outra causa de dificuldades que se adiciona ainda a essa, e que, além disso, é-lhe solidária em certa medida, é o esquecimento das ciências tradicionais: posto que os dados de algumas delas podem proporcionar o meio de reconhecer a verdadeira natureza de um indivíduo, quando faltam estas ciências, já não é possível, por outros métodos quaisquer, as suprir inteiramente e com uma perfeita exatidão; e faça o que se fizer a este respeito, sempre haverá aí uma parte maior de «empirismo», que poderá dar lugar a muitos enganos. Além disso, essa é uma das principais razões da degeneração de algumas organizações iniciáticas: a admissão de elementos não qualificados que, seja por ignorância pura e simples das regras que deveriam eliminá-los, ou por impossibilidade de aplicá-las com exatidão, é efetivamente um dos fatores que mais contribuem para esta degeneração, e que pode inclusive, ao se generalizar, conduzir finalmente à ruína completa tal organização.
Depois destas considerações de ordem geral, seria necessário, para aprimorar mais a significação real que convém atribuir às qualificações secundárias, dar alguns exemplos bem definidos das condições requeridas para o acesso a tal ou qual forma iniciática, e mostrar em cada caso seu sentido e seu alcance verdadeiro; mas tal exposição, quando deve dirigir-se aos ocidentais, faz-se muito difícil pelo fato de que estes, inclusive no caso mais favorável, não conhecem mais que um número extremamente restringido destas formas iniciáticas, e porque as referências a todas as demais correriam o risco de permanecer quase inteiramente incompreendidas. Mais ainda, tudo o que subsiste no ocidente das antigas organizações desta ordem está muito diminuído sob todos os aspectos, como já o dissemos muitas vezes, e é fácil dar-se conta disso mais especialmente no que concerne à questão mesma tratada no presente: se ainda se exigem aí algumas qualificações, é mais pela força do hábito que por uma compreensão qualquer de sua razão de ser; e, nestas condições, não haverá lugar para surpresas se ocorrer às vezes que alguns membros destas organizações protestam contra a manutenção destas qualificações, onde sua ignorância não vê mais que uma espécie de vestígio histórico, um resto de um estado de coisas desaparecido faz muito tempo, em uma palavra, um «anacronismo» puro e simples. Não obstante, como a pessoa está obrigada a tomar como ponto de partida àquilo que tem mais imediatamente ao seu dispor, isso mesmo pode proporcionar a ocasião de algumas indicações que, apesar de tudo, não carecem de interesse, e que, embora tenham sobretudo a nossos olhos o caráter de simples «ilustrações», por isso não são menos suscetíveis de dar lugar a algumas reflexões de uma aplicação mais extensa do que poderia parecer à primeira vista.
Já não há apenas no mundo ocidental, como organizações iniciáticas que podem reivindicar uma filiação tradicional autêntica (condição fora da qual, recordá-lo-emos ainda uma vez mais, não poderia tratar-se mais que de «pseudo-iniciação»), mais que o Companheirismo e a Maçonaria, quer dizer, formas iniciáticas baseadas essencialmente sobre o exercício de um ofício, na origem ao menos, e, por conseguinte, caracterizadas por métodos particulares, simbólicos e rituais, em relação direta com esse mesmo ofício (5). Somente, aqui terá que fazer uma distinção: no Companheirismo, o laço original com o ofício se manteve sempre, enquanto que, na Maçonaria, desapareceu de fato; daí, neste último caso, o perigo de um desconhecimento mais completo da necessidade de algumas condições, não obstante inerentes à forma iniciática mesma de que se trata. Efetivamente, no outro caso, é evidente que ao menos as condições requeridas para que o ofício possa ser exercido como tal, e inclusive para que o seja de uma maneira tão adequada como é possível, não poderão ser perdidas de vista nunca, inclusive se não se considera nada mais que isso, quer dizer, se não se tomar em consideração mais que sua razão exterior e se esquecendo de sua razão mais profunda e propriamente iniciática. Pelo contrário, ali onde esta razão profunda não está menos esquecida e onde a própria razão exterior não existe tampouco, é bastante natural em suma (o que, bem entendido, não quer dizer legítimo) que se chegue a pensar que a manutenção de semelhantes condições não se impõe de maneira nenhuma, e a não considerá-las senão como restrições importunas, e inclusive injustas (e esta é uma consideração da qual se abusa muito em nossa época, conseqüência do «igualitarismo» destruidor da noção de «elite»), juntas a um recrutamento que a mania do «proselitismo» e da superstição democrática do «grande número», traços bem característicos do espírito ocidental moderno, quereriam fazer tão amplo quanto fora possível, o que é, efetivamente, como já o dissemos, uma das causas mais certas e mais irremediáveis de degeneração para uma organização iniciática.
No fundo, o que se esquece em tal caso, é simplesmente isto: se o ritual iniciático tomar como «suporte» o ofício, de tal maneira que, por assim dizer, seria seu derivado por uma transposição apropriada (e sem dúvida, na origem, seria necessário considerar as coisas mais no sentido inverso, já que o ofício, do ponto de vista tradicional, não representa verdadeiramente mais que uma aplicação contingente dos princípios aos quais a iniciação se refere diretamente), o cumprimento deste ritual, para ser real e plenamente válido, exigirá algumas condições, entre as quais se encontrarão as do próprio exercício do ofício, posto que aqui se aplica igualmente à mesma transposição, em virtude das correspondências que existem entre as diferentes modalidades do ser; e, devido a isso, aparece claramente que, como o indicamos mais atrás, qualquer pessoa que está qualificada para a iniciação, de uma maneira geral, não o está por isso mesmo indiferentemente para toda forma iniciática qualquer que seja. Devemos adicionar que o desconhecimento deste ponto fundamental, que conduz à redução completamente profana das qualificações a simples regras corporativas, aparece, ao menos no que concerne à Maçonaria, como ligado bastante estreitamente a um equívoco sobre o verdadeiro sentido da palavra «operativo», equívoco sobre o qual teremos que nos explicar depois com os desenvolvimentos requeridos, já que dá lugar a considerações de um alcance iniciático completamente geral.
Assim, se a iniciação maçônica excluir concretamente às mulheres (o que, já o dissemos, não significa de maneira nenhuma que estas sejam inaptas para toda iniciação), e também aos homens que estão afetados de algumas enfermidades, isso não é simplesmente porque, antigamente, aqueles que eram admitidos nela deviam ser capazes de transportar fardos ou de subir sobre os andaimes, como alguns o asseguram com uma desconcertante ingenuidade; é porque, para aqueles que são assim excluídos, a iniciação maçônica como tal poderia ser válida, embora seus efeitos seriam nulos por falta de qualificação. A este respeito, pode-se dizer primeiro que a conexão com o ofício, se tiver deixado de existir quanto ao exercício exterior deste, nem por isso subsiste menos de uma maneira essencial, enquanto que permanece necessariamente inscrita na própria forma desta iniciação; se chegasse a ser eliminada, isso já não seria a iniciação maçônica, senão qualquer outra coisa completamente diferente; e, além disso, como seria impossível substituir legitimamente por outra filiação tradicional a que existe de fato, já nem sequer haveria então, realmente, nenhuma iniciação. Por isso é que, ali onde, à falta de uma compreensão mais efetiva, fica ainda ao menos certa consciência um pouco obscura do valor próprio das formas rituais, persiste-se em considerar as condições das quais falamos aqui como formando parte integrante dos landmarks (o termo inglês, nesta acepção «técnica» não tem equivalente exato em francês [N.T. - nem em português: utiliza-se a própria palavra inglesa]), que não podem ser modificados em nenhuma circunstância, e cuja supressão ou negligência correria o risco de conduzir uma verdadeira nulidade iniciática (6).
Agora, ainda há algo mais: ao se examinar de perto a lista dos defeitos corporais que são considerados como impedimentos para a iniciação, constatar-se-á que entre eles há alguns que não parecem muito graves exteriormente, e que, em todo caso, não são tais que possam opor-se a que um homem exerça o ofício de construtor (7). Por conseguinte, isso não é ainda mais que uma explicação parcial, embora exata em toda na medida em que é aplicável, e, além das condições requeridas pelo ofício, a iniciação exige outras que já não têm nada que ver com este, mas estão unicamente em relação com as modalidades do trabalho ritual, considerado, além disso, não só em sua «materialidade», caso se possa dizer desta forma, mas sim sobretudo como devendo produzir resultados efetivos para o ser que lhe cumpre. Isso aparecerá mais claramente se, entre as diversas formulações dos landmarks (já que, embora não escritos em princípio, não obstante, foram freqüentemente o objeto de enumerações mais ou menos detalhadas), alguém se remete às mais antigas, quer dizer, a uma época onde as coisas das quais se trata eram ainda conhecidas, e inclusive, por alguns ao menos, conhecidas de uma maneira que não era simplesmente teórica ou «especulativa», mas sim realmente «operativa», no verdadeiro sentido ao qual fazíamos alusão mais atrás. Ao fazer este exame, a pessoa poderá dispor-se inclusive de uma coisa que, certamente, hoje em dia pareceria completamente extraordinária a alguns se fossem capazes de dar-se conta dela: é que os impedimentos para a iniciação, na Maçonaria, coincidem quase inteiramente com os que, na Igreja católica, são os impedimentos para a ordenação (8).
Este último ponto é ainda daqueles que, para ser bem compreendido, chamam a atenção para algum comentário, já que, a primeira vista, poder-se-ia estar tentado a supor que nisso há certa confusão entre coisas da ordem diferente, ainda mais quando já insistimos freqüentemente sobre a distinção essencial que existe entre os dois domínios, iniciático e religioso, e que, por conseqüência, deve se encontrar também entre os ritos que se referem respectivamente a um e a outro. Entretanto, não há necessidade de refletir longamente para compreender que deve haver leis gerais que condicionam o cumprimento dos ritos, de qualquer ordem que sejam, posto que se tratam sempre, em suma, da execução de algumas influências espirituais, embora suam metas sejam naturalmente diferentes segundo os casos. Por outro lado, poder-se-ia objetar também que, no caso da ordenação, trata-se propriamente da aptidão para desempenhar algumas funções (9), enquanto que, no que se relaciona à iniciação, as qualificações requeridas para recebê-la são diferentes das que podem ser necessárias para exercer, além disso, uma função dentro de uma organização iniciática (função que concerne principalmente à transmissão da influência espiritual); e é exato que não é sob este ponto de vista das funções onde é necessário colocar-se para que a similitude seja verdadeiramente aplicável. O que é necessário considerar, é que, em uma organização religiosa do tipo do catolicismo, só o sacerdote cumpre ativamente os ritos, enquanto que os leigos não participam deles mais que de um modo «receptivo»; pelo contrário, a atividade na ordem ritual constitui sempre, e sem nenhuma exceção, um elemento essencial de todo método iniciático, de tal maneira que este método implica necessariamente a possibilidade de exercer tal atividade. É pois, em definitivo, este cumprimento ativo dos ritos o que exige, além da qualificação propriamente intelectual, algumas qualificações secundárias, que variam em parte segundo o caráter especial que revestem esses ritos em tal ou qual forma iniciática, entre as quais a ausência de alguns defeitos corporais exerce sempre um papel importante, seja enquanto esses defeitos obstaculizem diretamente o cumprimento dos ritos, seja enquanto sinais exteriores de defeitos correspondentes nos elementos sutis do ser. Essa é sobretudo a conclusão que queremos tirar de todas estas considerações; e, no fundo, o que parece se referir aqui, especialmente a um caso particular, o da iniciação maçônica, foi apenas o meio mais cômodo de expor estas coisas, que ficam ainda por aprimorar com a ajuda de alguns exemplos determinados de impedimentos devidos a defeitos corporais ou a defeitos psíquicos manifestados sensivelmente por estes.
Se considerarmos as enfermidades ou os simples defeitos corporais, enquanto sinais exteriores de algumas imperfeições da ordem psíquica, convirá fazer uma distinção entre os defeitos que o ser apresenta desde seu nascimento, ou que se desenvolvem naturalmente nele, no curso de sua existência, como conseqüência de certa predisposição, e aqueles que são simplesmente o resultado de algum acidente. Efetivamente, é evidente que os primeiros traduzem algo que pode ser considerado como mais estritamente inerente à própria natureza do ser e que, por conseguinte, é mais grave do ponto de vista onde nos colocamos, embora, além de tudo, posto que a um ser não se lhe pode ocorrer nada que não corresponda realmente a algum elemento mais ou menos essencial de sua natureza, as mesmas enfermidades de origem aparentemente acidental não podem ser consideradas como inteiramente indiferentes a este respeito. Por outro lado, ao se considerarem estes mesmos defeitos como obstáculos diretos ao cumprimento dos ritos ou a sua ação efetiva sobre o ser, já não tem que intervir a distinção que acabamos de indicar; mas deve entender-se bem que alguns defeitos que não constituem tais obstáculos não são por isso menos, pela primeira razão, impedimentos para a iniciação, e inclusive às vezes impedimentos de um caráter mais absoluto, já que expressam uma «deficiência» interior que faz ao ser impróprio para toda iniciação, enquanto que pode haver enfermidades que obstaculizam apenas a eficácia dos métodos «técnicos» particulares a tal ou a qual forma iniciática.
Alguns poderão estranhar de que digamos que as enfermidades acidentais têm também uma correspondência na própria natureza do ser que é alcançado por elas; entretanto, isso não é, em suma, mais que uma conseqüência direta do que são realmente as relações do ser com o ambiente no qual se manifesta: todas as relações entre os seres manifestados em um mesmo mundo, ou, o que é a mesma coisa, todas suas ações e reações recíprocas, não podem ser reais mais que se forem a expressão de algo que pertença à natureza de cada um desses seres. Em outros termos, posto que tudo o que um ser sofre, assim como tudo o que faz, constitui uma «modificação» de si mesmo, deve corresponder necessariamente a algumas das possibilidades que estão em sua natureza, de tal sorte que não pode haver nada que seja puramente acidental, ao se entender esta palavra no sentido de «extrínseco» como se faz usualmente. Assim, toda a diferença não é aqui mais que uma diferença de grau: há modificações que representam algo mais importante ou mais profundo que outras; por conseguinte, em certo modo, sob este aspecto há valores hierárquicos a serem observados entre as diversas possibilidades do domínio individual; mas, falando rigorosamente, nada é indiferente ou está desprovido de significação, porque, no fundo, um ser não pode receber de fora mais que simples «ocasiões» para a realização, em modo manifestado, das virtualidades que leva primeiro em si mesmo.
Pode parecer estranho também, a aqueles que ficam nas aparências, que algumas imperfeições pouco graves do ponto de vista exterior tenham sido consideradas sempre e por toda parte como um impedimento à iniciação; um caso típico desse gênero é o da gagueira. Na realidade, basta refletir um pouco para se dar conta de que, neste caso, encontram-se precisamente e simultaneamente, uma e outra das duas razões que mencionamos; e, efetivamente, primeiro, há o fato de que a «técnica» ritual implica quase sempre a pronúncia de algumas fórmulas verbais, pronúncia que deve ser naturalmente completamente correta para ser válida, o que a gagueira não permite a aqueles seres que estão afligidos por ela. Por outra parte, há em semelhante enfermidade o sinal manifesto de certa «arritmia» do ser, se for permissível o emprego desta palavra; e, além disso, as duas coisas estão aqui estreitamente ligadas, já que o emprego mesmo das fórmulas às quais acabamos de fazer alusão não é propriamente mais que uma das aplicações da «ciência do ritmo» ao método iniciático, de maneira que a incapacidade para pronunciá-las corretamente depende em definitivo da «arritmia» interna do ser.
Esta «arritmia» não é mais que um caso particular de desarmonia ou de desequilíbrio na constituição do indivíduo; e se pode dizer, de uma maneira geral, de todas as anomalias corporais que são marcas de um desequilíbrio mais ou menos acentuado, que, se não são forçosamente sempre impedimentos absolutos (já que nisso há evidentemente muitos graus que observar), são ao menos indícios desfavoráveis num candidato à iniciação. Além de tudo, pode ocorrer que tais anomalias, que não são propriamente enfermidades, não sejam de tal natureza que se oponham ao cumprimento do trabalho ritual, embora, entretanto, se alcançarem um grau de gravidade que indica um desequilíbrio profundo e irremediável, bastam por si só para desqualificar ao candidato, conforme o que já explicamos mais atrás. Tais são, por exemplo, as assimetrias notáveis do rosto ou dos membros; mas, bem entendido, se não se tratar mais que de assimetrias muito leves, não poderiam considerar-se sequer verdadeiramente como uma anomalia, já que, de fato, não há nenhuma pessoa que apresente em todo ponto uma simetria corporal exata. Além disso, isto pode interpretar-se como significando que, ao menos no estado atual da humanidade, nenhum indivíduo está perfeitamente equilibrado sob todos os aspectos; e, efetivamente, posto que a realização do perfeito equilíbrio da individualidade implica a completa neutralização de todas as tendências opostas que atuam nela, e, por conseguinte, a fixação em seu centro mesmo, único ponto onde estas oposições deixam de manifestar-se, equivale por isso mesmo, pura e simplesmente, à restauração do «estado primitivo». Assim, vê-se que é necessário não exagerar nada, e que, se houver indivíduos que estão qualificados para a iniciação, estão-no apesar de certo estado de desequilíbrio relativo que é inevitável, mas que precisamente a iniciação poderá e deverá atenuar, se produzir um resultado efetivo, e inclusive fazer desaparecer se chegar a ser levada até o grau que corresponde à perfeição das possibilidades individuais, quer dizer, como o explicaremos ainda mais adiante, até o término dos «mistérios menores» (10).
Devemos fazer observar ainda que há alguns defeitos que, sem ser tais que se oponham a uma iniciação virtual, podem a impedir de ser efetiva; além disso, não é necessário dizer que é aqui sobretudo onde haverá lugar para ter em conta às diferenças de métodos que existem entre as diversas formas iniciáticas; mas, em todos os casos terá que considerar condições deste tipo desde que se entenda passar do «especulativo» a «operação». Um dos casos mais gerais, nesta ordem, será concretamente aquele dos defeitos que, como algumas separações da coluna vertebral, prejudicam a circulação normal das correntes sutis do organismo; quase não há necessidade de recordar, efetivamente, o papel importante que exercem estas correntes na maior parte dos processos de realização, a partir de seu começo mesmo, e enquanto as possibilidades individuais não forem ultrapassadas. Convém adicionar, para evitar todo equívoco a este respeito, que se o exercício destas correntes acontece conscientemente em alguns métodos (11), há outros onde a coisa não é assim, mas onde, não obstante, tal ação não existe menos efetivamente por isso, e não é menos importante na realidade; o exame profundo de algumas particularidades rituais, de alguns «sinais de reconhecimento» por exemplo (que são ao mesmo tempo outra coisa quando os compreende verdadeiramente), poderia proporcionar sobre isto indicações muito claras, embora certamente inesperadas para quem não está habituado a considerar as coisas desde este ponto de vista que é propriamente o da «técnica» iniciática.
Como é necessário nos limitarmos, contentar-nos-emos com estes exemplos, pouco numerosos sem dúvida, mas escolhidos expressamente entre aqueles que correspondem aos casos mais característicos e mais instrutivos, para fazer compreender o melhor possível aquilo do que se trata verdadeiramente; seria em suma pouco útil, quando não completamente fastidioso, multiplicá-los indefinidamente. Se insistimos tanto sobre o lado corporal das qualificações iniciáticas é porque, certamente, ao risco que se corre de aparecer menos claramente aos olhos de muitos, que nossos contemporâneos estão geralmente mais dispostos a desconhecer, e, por conseguinte, aquele sobre o que terá que atrair sua atenção tão mais especialmente. Também havia uma ocasião nisso para mostrar ainda, com toda a claridade requerida, quão longe está o que concerne à iniciação das simples teorias mais ou menos vagas que quereriam ver nela tantas pessoas que, por um efeito muito comum da confusão moderna, têm a pretensão de falar de coisas das quais não têm o menor conhecimento real, mas que por isso não acreditam [ser] menos fácil poder «reconstruí-las» ao gosto de sua imaginação; e, finalmente, é particularmente fácil dar-se conta, por considerações «técnicas» deste tipo, que a iniciação é algo totalmente diferente do misticismo e que, verdadeiramente, não poderia ter a menor relação com ele.