Guenon estuda“Aperçus sur L’Initiation", de René Guénon Éditions Traditionnelles, Paris - 1946

"Considerações sobre a Iniciação"
Capítulos IX, X, XI e XII

Tradução: Igor Silva

Capítulo IX: Tradição e Transmissão

Observamos há pouco que a palavra «tradição», em sua acepção etimológica, não expressa, em suma, outra idéia que a de transmissão; no fundo, não há nada nisso que não seja perfeitamente normal e que não esteja de acordo com a aplicação que se faz dela quando se fala de «tradição» no sentido que nós a entendemos, e o que já explicamos deveria bastar para fazê-lo compreender facilmente; entretanto, alguns expuseram a este propósito uma objeção que nos mostrou a necessidade de insistir mais nisso, a fim de que não possa subsistir nenhum equívoco sobre este ponto essencial. Eis aqui qual é essa objeção: algo pode constituir o objeto de uma transmissão, compreendidas aí as coisas de ordem profana; então, por que não se poderia falar também de «tradição» para tudo o que é assim transmitido, qualquer que seja sua natureza, em lugar de restringir o emprego desta palavra unicamente ao domínio que podemos chamar «sagrado»?

Devemos fazer primeiro uma consideração importante, e que reduz já muito o alcance desta questão: é que, se alguém se remeter às origens, esta questão não teria que ser exposta, posto que a distinção entre «sagrado» e «profano» que implica era então inexistente. De fato, como o explicamos freqüentemente, não há propriamente um domínio profano, ao qual uma certa ordem de coisas pertenceria por sua própria natureza; na realidade, há somente um ponto de vista profano, que não é mais que a conseqüência e o produto de uma certa degeneração, que resulta da marcha descendente do ciclo humano e de seu afastamento gradual do estado primordial. Por conseguinte, anteriormente a esta degeneração, quer dizer, em suma, no estado normal da humanidade ainda não caída, pode-se dizer que tudo tinha verdadeiramente um caráter tradicional, porque tudo era considerado em sua dependência essencial a respeito dos princípios e conforme com estes, de tal sorte que uma atividade profana, quer dizer, separada destes mesmos princípios e ignorando-os, tivesse sido algo completamente inconcebível, inclusive para o que depende do que se conveio chamar, hoje em dia, de «a vida ordinária» ou, melhor, para o que se podia corresponder com ela, na época, mas que aparecia sob um aspecto muito diferente do que nossos contemporâneos entendem por isso , e com maior razão no que concerne às ciências, às artes e aos ofícios, para os quais este caráter tradicional se manteve integralmente até muito mais tarde e que se encontra ainda em toda civilização de tipo normal, de tal forma que se poderia dizer que sua concepção profana, além da exceção que há talvez lugar a se fazer, até um certo ponto, para a antigüidade chamada «clássica», é exclusivamente própria apenas da civilização moderna, que não representa, ela mesma, no fundo, mais que o último grau da degeneração, da qual acabamos de falar.

Se considerarmos agora o estado posterior a esta degeneração, podemos nos perguntar por que a idéia de tradição exclui dela o que adiante se trata como de ordem profana, quer dizer, o que já não tem nenhum laço consciente com os princípios, para não se aplicar mais que ao que guardou seu caráter original, com o aspecto «transcendente» que suporta. Não basta constatar que o uso o quis assim, ao menos enquanto não se produziram as confusões e desvios modernos sobre as quais atraímos a atenção em outras ocasiões ; é verdade que o uso modifica freqüentemente o primeiro sentido das palavras e que, concretamente, pode se lhes adicionar ou se lhes recortar algo; mas isso mesmo, ao menos quando se trata de um uso legítimo, deve ter também sua razão de ser, e sobretudo num caso como esse, essa razão não pode ser indiferente. Além do mais, podemos destacar que este fato não se limita unicamente às línguas que empregam esta palavra latina de «tradição»; em hebraico, a palavra qabbalah, que tem exatamente o mesmo sentido de transmissão, está reservada igualmente à designação da tradição tal como nós a entendemos, e inclusive de ordinário, mais estritamente ainda, à designação de sua parte esotérica e iniciática, quer dizer, ao que tem que mais «interior» e de mais elevado nessa tradição, o que constitui, de certa forma, seu espírito mesmo; e isso mostra também que deve haver aí algo mais importante e mais significativo que uma simples questão de uso no sentido no qual se lhe pode entender quando se trata apenas de quaisquer modificações da linguagem corrente.

Em primeiro lugar, há uma indicação que resulta imediatamente disto, ou seja, que como o dizíamos faz um momento, aquilo ao qual se aplica o nome de tradição é o que, em suma, no fundo mesmo, quando não forçosamente em sua expressão exterior, permaneceu tal como era na origem; por conseguinte, nisso se trata, de fato, de algo que foi transmitido, poder-se-ia dizer, de um estado anterior da humanidade a seu estado presente. Ao mesmo tempo, pode-se destacar que o caráter «transcendente» de tudo o que é tradicional implica também uma transmissão em um sentido diferente, que parte dos próprios princípios para se comunicar com o estado humano; e este sentido se une de uma certa maneira e completa, evidentemente, ao precedente. Retomando aqui os termos que empregamos em outra parte , poder-se-ia falar, inclusive ao mesmo tempo, de uma transmissão «vertical», do supra-humano ao humano, e de uma transmissão «horizontal», através dos estados ou os estágios sucessivos da humanidade; além do mais, a transmissão vertical é essencialmente «intemporal», enquanto que a transmissão horizontal implica somente uma sucessão cronológica. Adicionamos também que a transmissão vertical, que é tal quando se a considera de cima para baixo, como acabamos de fazê-lo, sucede, em se tomando ao contrário de baixo para cima, uma «participação» da humanidade nas realidades da ordem principal, participação que, com efeito, é assegurada precisamente pela tradição sob todas suas formas, posto que isso é a razão pela qual a humanidade é posta em uma relação efetiva e consciente com o que lhe é superior. Por seu lado, a transmissão horizontal, ao se considerar remontando o curso dos tempos, acontece propriamente um «retorno às origens», quer dizer, uma restauração do «estado primitivo»; e já indicamos mais atrás que esta restauração é precisamente uma condição necessária para que, daí, o homem possa depois elevar-se efetivamente aos estados superiores.

Há ainda outra coisa: ao caráter de «transcendência», que pertence essencialmente aos princípios, e no qual tudo o que está efetivamente vinculado com eles participa, por esse motivo, em algum grau (o que se traduz pela presença de um elemento «não humano» em tudo o que é propriamente tradicional), adiciona-se um caráter de «permanência» que expressa a imutabilidade desses mesmos princípios, e que se comunica igualmente, em toda a medida do possível, a suas aplicações, inclusive quando estas se referem a domínios contingentes. Isso não quer dizer, bem entendido, que a tradição não seja suscetível de adaptações condicionadas por algumas circunstâncias; mas, sob essas modificações, a permanência se mantém sempre quanto ao essencial; e inclusive quando se trata de contingências, essas contingências como tais são de certo forma ultrapassadas e «transformadas» pelo próprio fato de sua vinculação aos princípios. Pelo contrário, quando alguém se coloca no ponto de vista profano, que, de uma maneira que só pode ser completamente negativa, caracteriza-se pela ausência de um tal vinculação, está-se, se tal pode ser dito, na contingência pura, com tudo o que tem de instabilidade e de variabilidade incessante, e sem nenhuma possibilidade de sair dela; é de certo modo o «devir» reduzido a si mesmo, e não é difícil dar-se conta de que, efetivamente, as concepções profanas de toda natureza estão submetidas a uma mudança contínua, não menos que as maneiras de atuar que procedem do mesmo ponto de vista, e das quais o que se chama «moda» representa a imagem mais chamativa a este respeito. Pode-se concluir disso que a tradição compreende não só tudo o que merece ser transmitido, mas também tudo o que pode sê-lo verdadeiramente, posto que o resto, o que está desprovido de caráter tradicional e que, por conseguinte, cai no ponto de vista profano, está dominado pela mudança até o ponto em que toda transmissão acontece aí bem logo como um «anacronismo» puro e simples, ou uma «superstição», no sentido etimológico da palavra, que já não responde a nada real nem válido.

Deve-se compreender agora porque tradição e transmissão podem ser consideradas, sem nenhum abuso de linguagem, como quase sinônimas ou equivalentes, ou porque, ao menos, a tradição, sob qualquer aspecto que se a considere, constitui o que se poderia chamar a transmissão por excelência. Por outra parte, se esta idéia de transmissão é tão essencialmente inerente ao ponto de vista tradicional como para que este tenha podido tirar dela legitimamente sua própria designação, tudo o que dissemos precedentemente da necessidade de uma transmissão regular para o que pertence a esta ordem tradicional, e mais particularmente à ordem iniciática que não só é parte integrante, mas também «eminente» da mesma, encontra-se por isso reforçado e adquire inclusive uma característica de evidência imediata que, a respeito da mais simples lógica, e sem se tomar em conta sequer a considerações mais profundas, deveria fazer decididamente impossível toda contestação sobre este ponto, sobre o que, além disso, só as organizações pseudo-iniciáticas, precisamente porque lhes falta esta transmissão, têm interesse em manter o equívoco e a confusão.

Notas:

(1) Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XV.

(2) Ver, notadamente, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXI.

(3) Ver O Simbolismo da Cruz.

Capítulo X: Dos Centros Iniciáticos

Pensamos haver dito o bastante a respeito para mostrar, tão claramente quanto é possível fazê-lo, a necessidade da transmissão iniciática, e para fazer compreender bem que isso não se trata de coisas mais ou menos nebulosas, mas sim, pelo contrário, de coisas extremamente precisas e bem definidas, onde o delírio e a imaginação não poderiam ter a menor parte, como tampouco tudo o que se qualifica hoje em dia de «subjetivo» e de «ideal». Fica ainda, para completar o que se refere a esta questão, falar um pouco dos centros espirituais dos quais procede, direta ou indiretamente, toda transmissão regular, centros secundários vinculados, eles mesmos, ao centro supremo que conserva o depósito imutável da tradição primitiva, da qual todas as formas tradicionais particulares derivam por adaptação a tais ou quais circunstâncias definidas de tempo e de lugar. Indicamos, em outro estudo (1), como estes centros espirituais estão constituídos à imagem do próprio centro supremo, de que são, de certo modo, como outros tantos reflexos; assim, não vamos voltar sobre isso aqui, e nos limitaremos a considerar alguns pontos que estão em relação mais imediata com as considerações que acabamos de expor.

Primeiro, é fácil compreender que a vinculação ao centro supremo deva ser indispensável para assegurar a continuidade da transmissão das influências espirituais das próprias origens da presente humanidade (deveríamos dizer, inclusive, de além dessas origens, posto que aquilo do que se trata é «não-humano») e através de toda a duração de seu ciclo de existência; isto é assim para tudo o que tem um caráter verdadeiramente tradicional, inclusive para as organizações exotéricas, religiosas ou outras, ao menos em seu ponto de partida; com maior razão é o mesmo na ordem iniciática. Ao mesmo tempo, é esta vinculação o que mantém a unidade interior e essencial que existe sob a diversidade das aparências formais, e o que, por conseqüência, é a garantia fundamental da «ortodoxia», no verdadeiro sentido desta palavra. Unicamente, deve se entender bem que esta vinculação pode não permanecer sempre consciente, e isso é muito evidente na ordem exotérica; pelo contrário, parece que o deveria ser sempre no caso das organizações iniciáticas, das quais uma das razões de ser é, precisamente, ao tomar como ponto de apoio certa forma tradicional, permitir passar além dessa forma e elevar-se assim da diversidade à unidade. Isto, naturalmente, não quer dizer que tal consciência deva existir em todos os membros de uma organização iniciática, o que é manifestamente impossível e o que, além disso, faria inútil a existência de uma hierarquia de graus; mas deveria existir normalmente no topo dessa hierarquia, se todos aqueles que chegarem a ela sejam verdadeiramente «adeptos», quer dizer, seres que realizaram efetivamente a plenitude da iniciação (2) ; e tais «adeptos» constituiriam um centro iniciático que estaria constantemente em comunicação consciente com o centro supremo. Entretanto, de fato, pode ocorrer que a coisa não seja sempre assim, embora não seja mais que a conseqüência de certa degeneração que faça possível o afastamento das origens, e que pode chegar até o ponto de que, como o dizíamos precedentemente, uma organização chegue a não compreender mais além do que chamamos iniciados «virtuais», iniciados que, não obstante, continuam transmitindo, ainda quando não se dêem conta disso, a influência espiritual da qual essa organização é depositária. A vinculação subsiste então, apesar de tudo, por não ter sido a transmissão interrompida, e isso basta para que, algum daqueles que tenham recebido a influência espiritual em tais condições, possa voltar a tomar sempre consciência dela se tiver nele as possibilidades requeridas; assim, inclusive nesse caso, o fato de pertencer a uma organização iniciática está longe de não representar mais que uma simples formalidade sem alcance real, do mesmo gênero que a adesão a qualquer associação profana, como acreditam com muito gosto aqueles que não vão ao fundo das coisas e que se deixam enganar por algumas semelhanças puramente exteriores, as quais, além disso, não se devem, de fato, mais que ao estado de degeneração no qual se encontram atualmente as únicas organizações iniciáticas das que podem ter algum conhecimento mais ou menos superficial.

Por outra parte, importa destacar que uma organização iniciática pode proceder do centro supremo, não diretamente, mas sim pela intermediação de centros secundários e subordinados, o que é inclusive o caso mais habitual; como há em cada organização uma hierarquia de graus, assim há também, entre as próprias organizações, o que se poderiam chamar graus de «interioridade» e de «exterioridade» relativa; e é evidente que aquelas que são as mais exteriores, quer dizer, as mais afastadas do centro supremo, são também aquelas onde a consciência da vinculação a este pode ser perdida mais facilmente. Embora a meta de todas as organizações iniciáticas seja essencialmente a mesma, ter-se-ão as que se situam de certo modo em níveis diferentes quanto a sua participação na tradição primitiva (o que, além disso, não quer dizer que, entre seus membros, não possa haver alguns que tenham alcançado pessoalmente um mesmo grau de conhecimento efetivo); e não há motivo para se surpreender disso, caso se observe que as diferentes formas tradicionais não derivam todas imediatamente da mesma fonte original; a «cadeia» pode contar um número um pouco grande de elos intermediários, sem que por isso haja aí nenhuma solução de continuidade. A existência desta superposição não é uma das menores razões entre todas aquelas que constituem a complexidade e a dificuldade de um estudo um pouco profundo da constituição das organizações iniciáticas; é mister adicionar ainda que tal superposição pode se reencontrar também no interior de uma mesma forma tradicional, assim como se pode encontrar um exemplo disso particularmente claro no caso das organizações que pertencem à tradição extremo oriental. Este exemplo, ao qual não podemos fazer aqui mais que uma simples alusão, inclusive, é possivelmente um dos que permitirá compreender melhor como a continuidade está assegurada através dos múltiplos degraus constituídos por outras tantas organizações sobrepostas, daquelas que, comprometidas no domínio da ação, não são mais que formações passageiras destinadas a ter um papel relativamente exterior, àquelas de ordem mais profunda, que, embora permanecendo no «não atuar» primordial, ou talvez mais por isso mesmo, dão a todas as demais sua direção real. A este propósito devemos chamar a atenção especialmente sobre o fato de que, inclusive se algumas destas organizações, entre as mais exteriores, encontram-se às vezes em oposição entre elas mesmas, isso não poderia impedir em nada que a unidade de direção exista efetivamente, porque a direção em questão está além desta oposição, e não no domínio onde esta se afirma. Em suma, nisso há algo comparável aos papéis exercidos por diferentes atores em uma mesma peça de teatro e que, embora se oponham, ainda assim não concorrem menos à marcha do conjunto; cada organização tem do mesmo modo o papel ao qual está destinada num plano que a ultrapassa; e isto pode se estender inclusive ao domínio exotérico, onde, em tais condições, os elementos que lutam uns contra outros, não por isso todos obedeçam menos, embora inconsciente e involuntariamente, a uma direção única cuja existência sequer suspeitam (3).

Estas considerações fazem compreender também como, no seio de uma mesma organização, pode existir de certo modo uma dupla hierarquia, e isto mais especialmente no caso onde os chefes aparentes não são conscientes, eles mesmos, da vinculação a um centro espiritual; poderá haver nela então, fora da hierarquia visível que estes constituem, outra hierarquia invisível, cujos membros, sem desempenhar nenhuma função «oficial», serão não obstante aqueles que assegurarão realmente, apenas pela sua presença, a conexão efetiva com esse centro. Estes representantes dos centros espirituais, nas organizações relativamente exteriores, não têm evidentemente por que se fazerem reconhecer como tais, e podem tomar a aparência que melhor convenha à ação de «presença» que têm que exercer, seja a de simples membros da organização, se devem exercer nela um papel fixo e permanente ou, caso se trate de uma influência momentânea ou que deva se transportar para pontos diferentes, a daqueles misteriosos «viajantes» de quem a história guardou mais de um exemplo, e cuja atitude exterior é escolhida freqüentemente da maneira mais própria para desorientar os investigadores, seja que se trate, além disso, de chamar a atenção por razões especiais ou, pelo contrário, de passarem completamente despercebidos (4). Com isto, igualmente, se pode compreender o que foram de verdade aqueles que, sem pertencer eles mesmos a nenhuma organização conhecida (e entendemos por isso uma organização revestida de formas exteriormente apreensíveis), presidiram em alguns casos a formação de tais organizações ou, depois, inspiraram-nas e as dirigiram invisivelmente; tal foi concretamente, durante certo período (5), o papel dos Rosa-Cruzes no mundo ocidental, e esse é também o verdadeiro sentido do que a Maçonaria do século XVIII designa sob o nome de «Superiores Desconhecidos».

Tudo isto permite entrever algumas possibilidades de ação dos centros espirituais, fora inclusive dos meios que podem ser considerados como normais, e isso sobretudo quando as circunstâncias são, elas também, anormais, queremos dizer, em condições tais que não permitem já o emprego de vias mais diretas e de uma regularidade mais visível. É assim como, sem falar sequer de uma intervenção imediata do centro supremo, que é possível sempre e por toda parte, um centro espiritual, qualquer que seja, pode atuar fora de sua zona de influência normal, seja em favor de indivíduos particularmente «qualificados», mas que se encontrem isolados em um meio onde o obscurecimento chegou a tal ponto que já não subsiste quase nada tradicional nele e onde a iniciação já não pode ser obtida, ou seja em vista de uma meta mais geral, e também mais excepcional, como a que consistiria em renovar uma «cadeia» iniciática rompida acidentalmente. Ao produzir tal ação mais particularmente num período ou numa civilização onde a espiritualidade está quase completamente perdida, e onde, por conseguinte, as coisas de ordem iniciática estão mais ocultas que em nenhum outro caso, ninguém deveria se surpreender de que suas modalidades sejam extremamente difíceis de definir, tanto mais ainda que as condições ordinárias de lugar e, inclusive, às vezes de tempo tornam-se quanto a isso, por assim dizer, inexistentes. Assim, não insistiremos mais nisso; mas o que é essencial reter, inclusive ocorrendo que um indivíduo aparentemente isolado chegue a uma iniciação real, é que essa iniciação jamais poderá ser espontânea mais que na aparência e que, de fato, implicará sempre a vinculação, por um meio qualquer, a um centro que existe efetivamente (6); fora de tal vinculação, em nenhum caso poderia se tratar de iniciação.

Se voltarmos à consideração dos casos normais, devemos dizer ainda isto para evitar todo equívoco sobre o que precede: ao fazer alusão a algumas oposições, não temos em vista de modo algum as vias múltiplas que podem estar representadas por outras tantas organizações iniciáticas especiais, seja em correspondência com formas tradicionais diferentes, ou seja numa mesma forma tradicional. Esta multiplicidade se faz necessária pelo próprio fato das diferenças de natureza que existem entre os indivíduos, a fim de que cada um possa encontrar aquilo que, sendo-lhe conforme, permitir-lhe-á desenvolver suas próprias possibilidades; se a meta for a mesma para todos, os pontos de partida estão indefinidamente diversificados, e são comparáveis à multidão dos pontos de uma circunferência, de onde partem outros tantos raios que desembocam todos no centro único, e que são assim a imagem das próprias vias das quais se tratam. Em tudo isso não há nenhuma oposição, mas sim, pelo contrário, uma perfeita harmonia; e, para falar a verdade, somente pode haver oposição quando algumas organizações, pelo fato de circunstâncias contingentes, são chamadas a exercer um papel de certo modo acidental, exterior à meta essencial da iniciação e que não afeta esta de maneira nenhuma.

Não obstante, segundo algumas aparências, poder-se-ia acreditar, e de fato se acredita freqüentemente, que há iniciações que são, em si mesmas, opostas umas às outras; mas isso é um engano, e é muito fácil compreender porque não poderia ser realmente assim. Efetivamente, como não há em princípio mais que uma tradição única, da qual deriva toda forma tradicional ortodoxa, não pode haver mais que uma iniciação, igualmente única em sua essência, embora sob formas diversas e com modalidades múltiplas; ali onde falta a «regularidade», quer dizer, ali onde não há vinculação a um centro tradicional ortodoxo, já não se trata da verdadeira iniciação e, em parecido caso, esta palavra só poderá ser empregada abusivamente. Nisso, não entendemos falar apenas das organizações pseudo-iniciáticas já tratadas antes e que, certamente, não são mais que puro nada; mas há outra coisa que apresenta um caráter mais sério, e que é precisamente o que pode dar uma aparência de razão à ilusão que acabamos de assinalar: caso pareça que há iniciações opostas, é porque, fora da iniciação verdadeira, há o que se pode chamar a «contra-iniciação», à condição de precisar bem em que sentido exato deve entender tal expressão, e dentro de que limites algo pode se opor verdadeiramente à iniciação; além disso, já nos explicamos suficientemente sobre esta questão para não ter necessidade de voltar sobre ela de uma maneira especial (7).

Notas:

(1) O Rei do Mundo

(2) Este é o único sentido verdadeiro e legítimo desta palavra, que, na origem, pertencia exclusivamente à terminologia iniciática e mais especialmente rosacruciana; mas é mister assinalar também, a este propósito, um desses estranhos abusos de linguagem tão numerosos em nossa época: chegou-se, no uso vulgar, a tomar «adeptos» por um sinônimo de «aderentes», de sorte que esta palavra se aplica correntemente para designar ao conjunto dos membros de não importa qual organização, ainda que se trate da associação mais puramente profana que seja possível de conceber!

(3) Segundo a tradição islâmica, todo ser é natural e necessariamente muçulmano, quer dizer, submetida à Vontade divina, à qual, efetivamente, nada pode se subtrair; a diferença entre os seres consiste em que, enquanto que uns se conformam consciente e voluntariamente à ordem universal, outros lhe ignoram ou inclusive pretendem opor-se a ela (ver O Simbolismo da Cruz, P. 187, ed. francesa). Para compreender inteiramente a relação disto com o que acabamos de dizer, é mister destacar que os verdadeiros centros espirituais devem ser considerados como representando a Vontade divina neste mundo; assim, aqueles que estão vinculados a eles de maneira efetiva podem ser considerados como colaborando conscientemente à realização do que a iniciação maçônica designa como o «plano do Grande Arquiteto do Universo»; quanto às outras duas categorias às quais acabamos de fazer alusão, os ignorantes puros e simples são os profanos, entre os quais é necessário, bem entendido, compreender os «pseudo-iniciados» de todo tipo, e aqueles que têm a pretensão ilusória de ir contra a ordem preestabelecida dependem, de uma ou de outra forma, do que chamamos a «contra-iniciação».

(4) Para este último caso, que escapa forçosamente aos historiadores, mas que é sem dúvida o mais freqüente, citaremos apenas dois exemplos típicos, muito conhecidos na tradição taoísta, e dos quais se poderia encontrar o equivalente inclusive no ocidente: o dos histriões e o dos negociantes de cavalos.

(5) Embora seja difícil atribuir aqui grande exatidão, pode-se considerar este período como se estendendo do século XIV ao XVII; assim, pode-se dizer que corresponde à primeira parte dos tempos modernos, e é fácil compreender desde então que se tratava acima de tudo de assegurar a conservação do que, nos conhecimentos tradicionais da idade Média, podia ser salvo apesar das novas condições do mundo ocidental.

(6) Alguns incidentes misteriosos na vida de Jacob Boehme, por exemplo, não podem ser explicados realmente senão desta maneira.

(7) Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXVIII.

Capítulo XI: Organizações Iniciáticas e Seitas Religiosas

O estudo das organizações iniciáticas é, dizíamos mais atrás, algo particularmente complexo, e é mister adicionar que se complica ainda mais pelos enganos que se cometem muito freqüentemente sobre este tema, e que implicam geralmente um desconhecimento mais ou menos completo de sua verdadeira natureza; entre estes enganos, convém assinalar em primeiro lugar o que faz aplicar o termo «seitas» a tais organizações, já que nisso há mais que uma simples impropriedade da linguagem. De fato, em parecido caso, esta expressão «seita» não só deverá ser rechaçada por desagradável e porque, ao tomá-la sempre por sua parte má, o que parece ser o objetivo dos adversários, embora alguns daqueles que a empregam tenham podido fazê-lo sem intenção especialmente hostil, por uma imitação ou por hábito, como há quem chama «paganismo» às doutrinas da Antigüidade, sem suspeitar sequer que não se trata mais que um termo injurioso e de bastante baixa polêmica (1). Na realidade, nisso há uma grave confusão entre duas coisas de ordem inteiramente diferente, e esta confusão, naqueles que a criaram ou nos que a mantêm, parece não ser sempre puramente involuntária; esta confusão se deve, sobretudo, no mundo cristão e inclusive às vezes também no mundo islâmico (2), a inimigo ou a negadores do esoterismo, que querem assim, por uma falsa semelhança, fazer recair sobre este algo do descrédito que se atribui às «seitas» propriamente ditas, quer dizer, em suma às «heresias», entendidas em um sentido especificamente religioso (3).

Agora, por isso mesmo, em se tratando de esoterismo e de iniciação, não se trata de maneira nenhuma de religião, mas sim de conhecimento puro e de «ciência sagrada», que, embora tenha este caráter sagrado (que não é certamente o monopólio da religião como alguns parecem acreditar equivocadamente) (4), por isso não é menos essencialmente ciência, embora em um sentido notavelmente diferente de que os modernos dão a esta palavra, não conhecendo mais que a ciência profana, desprovida de todo valor sob o ponto de vista tradicional, e que procede mais ou menos, como já o explicamos freqüentemente, de uma alteração da própria idéia de ciência. Sem dúvida, e é isso o que faz possível a confusão de que se trata, este esoterismo tem mais relações, e de uma maneira mais direta, com a religião que com qualquer outra coisa exterior, ainda que seja apenas em razão do caráter propriamente tradicional que lhes é comum; em alguns casos, inclusive, como o indicávamos mais atrás, pode tomar sua base e seu ponto de apoio numa forma religiosa definida; mas, mesmo assim, não se refere menos a um domínio completamente diferente do da forma religiosa em questão, com a que, por conseguinte, não pode entrar nem em oposição nem em concorrência. Além do mais, isso resulta também do fato de que se trata, por sua própria definição, de uma ordem de conhecimento reservada a uma elite, enquanto que, por definição igualmente, a religião (assim como a parte exotérica de toda tradição, inclusive se não revestir essa forma especificamente religiosa), dirige-se ao contrário a todos indistintamente; posto que a iniciação, no verdadeiro sentido desta palavra, implica «qualificações» particulares, não pode ser de ordem religiosa (5). Além do mais, sem examinar sequer o fundo das coisas, a suposição de que uma organização iniciática pudesse fazer concorrência com uma organização religiosa é verdadeiramente absurda, já que, pelo próprio fato de seu caráter «fechado» e de seu recrutamento restrito, estaria muito em inferioridade a este respeito (6) ; mas esse não é nem seu papel nem seu encargo.

Faremos observar seguidamente que quem diz «seita» diz necessariamente, pela etimologia mesma da palavra, excisão ou divisão; e, efetivamente, as «seitas» são divisões engendradas, no seio de uma religião, por divergências mais ou menos profundas entre seus membros. Por conseguinte, as «seitas» são forçosamente multiplicidade (7), e sua existência implica um afastamento do princípio, principio do qual o esoterismo, por sua natureza mesma, está, pelo contrário, mais próximo que a religião e mais geralmente que o exoterismo, inclusive isentos de toda separação. De fato, é pelo esoterismo por onde se unificam todas as doutrinas tradicionais, além das diferenças, necessárias em sua própria ordem, de suas formas exteriores; e, desde este ponto de vista, as organizações iniciáticas não só não são «seitas», senão que são exatamente o contrário, inclusive.

Além disso, as «seitas», cismas ou heresias, aparecem sempre como derivadas de uma religião dada, em que tomaram nascimento, e da qual são, por assim dizer, como ramos irregulares. Pelo contrário, o esoterismo não pode derivar-se da religião; ali mesmo onde toma como suporte, enquanto que meio de expressão e de realização, não faz outra coisa que ligá-la efetivamente a seu princípio, e representa na realidade, em relação a ela, a tradição anterior a todas as formas exteriores particulares, religiosas ou outras. O interior não pode ser produzido pelo exterior, como tampouco o centro pode ser produzido pela circunferência, nem o superior pelo inferior, como tampouco o espírito pelo corpo; as influências que presidem nas organizações tradicionais vão sempre descendendo e não remontam jamais, como tampouco um rio remonta para sua fonte. Pretender que a iniciação possa ter saído da religião e, com razão menor ainda, de uma «seita», é inverter todas as relações normais que resultam da natureza mesma das coisas (8); o esoterismo é verdadeiramente, em relação ao exoterismo religioso, o que o espírito é em relação ao corpo, de sorte que, quando uma religião perdeu todo ponto de contato com o esoterismo (9), já não fica nela mais que «letra morta» e formalismo incompreendido, já que o que a vivificava, era a comunicação efetiva com o centro espiritual do mundo, e esta não pode ser estabelecida e mantida conscientemente mais que pelo esoterismo e pela presença de uma organização iniciática verdadeira e regular.

Agora, para explicar como a confusão que nos dedicamos a dissipar pôde se apresentar com suficiente aparência de razão para se fazer aceitar por um grande número daqueles que não consideram as coisas mais que de fora, é mister dizer isto: em alguns casos, parece que certas «seitas» religiosas tenham podido tomar nascimento pelo fato da difusão negligente de fragmentos de doutrina esotérica mais ou menos incompreendida; mas o esoterismo em si mesmo não poderia ser feito responsável por esta sorte de «vulgarização», ou de «profanação» no sentido etimológico da palavra, que é contrária a sua essência mesma, e que jamais pôde produzir-se mais que a expensas da pureza doutrinal. Para que semelhante coisa tenha lugar, foi mister que aqueles que recebiam tais ensinos os compreendessem bastante mal, a falta de preparação ou possivelmente, inclusive, de «qualificação», para lhes atribuir assim um caráter religioso que as desnaturalizava inteiramente. E não vem sempre o engano, definitivamente, de uma incompreensão ou de uma deformação da verdade? Tal foi provavelmente, para tomar um exemplo na história da idade Média, o caso dos albigenses; mas, se estes foram «hereges», Dante e os «Fiéis de Amor», que estavam no terreno estritamente iniciático, não o eram (10); e este exemplo pode ajudar também a fazer compreender a diferença capital que existe entre as «seitas» e as organizações iniciáticas. Adicionamos que, se algumas «seitas» puderam nascer de uma separação do ensino iniciático, isso mesmo supõe evidentemente a preexistência deste e sua independência a respeito das «seitas» em questão; e tão histórica como logicamente, a opinião contrária aparece como perfeitamente insustentável.

Ficaria por examinar uma questão: como e porque puderam produzir-se às vezes tais separações? Isso se arriscaria a nos levar muito longe, já que não terá que se dizer que seria mister, para responder a isso completamente, examinar de perto cada caso particular; o que se pode dizer de uma maneira geral, é que, primeiro, do ponto de vista mais exterior, parece quase impossível, quaisquer que sejam as precauções que se tomem, impedir completamente toda divulgação; e, se as divulgações não forem em todo caso mais que parciais e fragmentárias (já que, em suma, não podem recair mais que sobre o que é relativamente mais acessível), as deformações que seguem delas são muito mais acentuadas. Desde outro ponto de vista mais profundo, poder-se-ia dizer talvez que é mister que tais coisas tenham lugar em algumas circunstâncias, como meio de uma ação que se deva exercer sobre a marcha dos acontecimentos; as «seitas» também têm que jogar seu papel na história da humanidade, ainda que não seja mais que um papel inferior, e é mister não esquecer que toda desordem aparente não é em realidade mais que um elemento da ordem total do mundo. Além do mais, as querelas do mundo exterior perdem certamente muita de sua importância quando se consideram de um ponto de vista onde se conciliam todas as oposições que as suscitam, o que é o caso desde que alguém se coloque no ponto de vista estritamente esotérico e iniciático; mas, precisamente por isso, não poderia ser de maneira nenhuma o papel das organizações iniciáticas mesclar-se a essas querelas, ou, como se diz usualmente, «tomar partido» nelas, enquanto que as «seitas», ao contrário, estão comprometidas nisso indevidamente por sua própria natureza, já que é isso talvez, no fundo, o que constitui toda sua razão de ser.

Notas:

(1) Fabre d’Olivet, em seus Examens des Vers Dorés de Pythagore, diz muito justamente sobre este ponto: «O nome de «pagão» é um termo injurioso e ignóbil, derivado do latim paganus, que significa um rústico, um camponês. Quando o cristianismo triunfou inteiramente sobre o politeísmo grego e romano e quando, por ordem do imperador Teodósio, foram abatidos nas cidades os últimos templos dedicados aos Deuses das Nações, aconteceu que os povos dos campos persistiram ainda bastante tempo no antigo culto, o que fez chamar, por zombaria, pagani a aqueles que lhes imitaram. Esta denominação que podia convir, no século V, aos gregos e aos romanos que se negavam a submeter-se à religião dominante do Império, é falsa e ridícula, quando se estende a outros tempos e a outros povos».

(2) O termo árabe que corresponde à palavra «seita» é firqah, que, como ela, expressa propriamente uma idéia de «divisão».

(3) Vê-se que, embora se trate sempre de uma confusão dos dois domínios esotérico e exotérico, não obstante há nisso uma considerável diferença com a falsa semelhança do esoterismo com o misticismo, da qual falamos em primeiro lugar, tendo em vista que esta, além do mais, parece ser de data mais recente, tende mais precisamente a «anexar» o esoterismo de que a lhe desacreditar, o que é certamente mais hábil e pode dar a pensar que alguns acabaram por dar-se conta da insuficiência de uma atitude de desprezo grosseiro e de negação pura e simples.

(4) Há quem chega tão longe nesse sentido que pretendem que não há mais «ciência sagrada» que a teologia!

(5) Poder-se-ia objetar que, como o dizíamos mais atrás, também se requerem «qualificações» para a ordenação sacerdotal; mas, nesse caso, não se trata mais de uma aptidão para o exercício de algumas funções particulares, enquanto que, no outro, as «qualificações» são necessárias não só para exercer uma função em uma organização iniciática, mas sim para receber a própria iniciação, o que é completamente diferente.

(6) Para a organização iniciática como tal, pelo contrário, há somente vantagens no fato de manter seu recrutamento tão restrito quanto possível, já que, nesta ordem, uma extensão muito grande é, geralmente, uma das primeiras causas de degeneração, assim como o explicaremos mais adiante.

(7) Isto mostra a falsidade radical das concepções daqueles que, como isso se encontra freqüentemente sobretudo entre os escritores «anti-maçônicos», falam de «Seita», no singular e com maiúscula, como de tal «entidade» em que sua imaginação encarna tudo aquilo para o qual hão sentido algum ódio; além do mais, o fato de que as palavras cheguem a perder assim completamente seu sentido legítimo é, repetimo-lo ainda a este propósito, uma das características da desordem mental de nossa época.

(8) Um engano similar, mas ainda agravado, é cometido por aqueles que quereriam fazer sair à iniciação de algo mais exterior ainda, como de uma filosofia por exemplo; o mundo iniciático exerce sua influência «invisível» sobre o mundo profano, direta ou indiretamente, mas pelo contrário, aparte o caso anormal de uma grave degeneração de algumas organizações, não poderia ser influenciado por este.

(9) É mister observar bem que quando dizemos «pontos de contato», isso implica a existência de um limite comum aos dois domínios, pelo que se estabelece sua comunicação, mas isso não entranha nenhuma confusão entre eles.

(10) Ver sobre este tema, O Esoterismo de Dante, concretamente pp. 3-7 e 27-28, ed. francesa. pp. 3-7 e 27-28, ed. francesa.

Capítulo XII: Organizações Iniciáticas e Sociedades Secretas

Sobre a natureza das organizações iniciáticas, há outro engano muito freqüente, que deverá nos reter durante mais tempo que o que consiste em assimilá-las às «seitas» religiosas, já que se refere a um ponto que parece particularmente difícil de compreender pela maior parte de nossos contemporâneos, mas que consideramos completamente essencial: é que tais organizações diferem totalmente, por sua natureza mesma, de tudo o que, em nossos dias, chamam-se «sociedades» ou «associações», já que estas estão definidas por caracteres exteriores que podem faltar inteiramente naquelas e que, inclusive caso às vezes se introduzam nelas, permanecem sempre acidentais e só devem ser considerados, assim como já o indicamos do começo, apenas como os efeitos de uma espécie de degeneração, ou, caso se queira, de «contaminação», no sentido de que nisso se trata da adoção de formas profanas ou ao menos exotéricas, sem nenhuma relação com a meta real destas organizações. Assim, é completamente errôneo identificar, como se faz usualmente, «organizações iniciáticas» e «sociedades secretas»; e, primeiro, é muito evidente que as duas expressões não podem coincidir de maneira nenhuma em sua aplicação, já que, de fato, há muitos tipos de sociedades secretas, muitas das quais não têm, certamente, nada de iniciático; elas podem se constituir devido ao fato de uma simples iniciativa individual, e para uma meta qualquer; além do mais, teremos que voltar sobre isto depois. Por outra parte, e essa é sem dúvida a causa principal do engano que acabamos de mencionar, se ocorrer que uma organização iniciática toma acidentalmente, como o dizíamos faz um momento, a forma de uma sociedade, esta será forçosamente secreta, ao menos num dos sentidos que se dá a esta palavra em parecido caso, e que não sempre se tem o cuidado de distinguir com uma precisão suficiente.

Efetivamente, é mister dizer que, no uso corrente, parecem vincular-se a esta expressão de «sociedades secretas» várias significações bastante diferentes umas das outras, e que não parecem necessariamente ligadas entre elas, daí as divergências de opinião quando se trata de saber se esta designação convém realmente a tal ou a qual caso particular. Alguns querem restringi-la às associações que dissimulam sua existência, ou ao menos o nome de seus membros; outros a estendem àquelas que são simplesmente «fechadas», ou que não guardam o segredo mais que sobre algumas formas especiais, rituais ou não, adotadas por elas, sobre alguns meios de reconhecimento reservados a seus membros, ou sobre outras coisas deste gênero; e, naturalmente, os primeiros protestarão quando os segundos qualifiquem de secreta uma associação que efetivamente não poderia entrar em sua própria definição. Dizemos «protestarão» porque, muito freqüentemente as discussões deste tipo não têm um caráter inteiramente desinteressado: quando os adversários mais ou menos abertamente declarados de uma associação qualquer a chamam secreta, com razão ou sem ela, põem nisso manifestamente uma intenção polêmica e mais ou menos injuriosa, como se o segredo não pudesse ter a seus olhos mais que motivos «inconfessáveis», e inclusive se pode discernir nisso às vezes como uma espécie de ameaça um pouco disfarçada, no sentido de que há nisso uma alusão expressa à «ilegalidade» de tal associação, já que quase não há necessidade de dizer que é sempre sobre o terreno «social», quando não, inclusive, mais precisamente «político», onde se têm preferentemente semelhantes discussões. É muito compreensível que, nestas condições, os membros ou os partidários da associação em causa se esforcem em estabelecer que o epíteto de «secreta» não poderia lhe convir realmente, e que, por esta razão, não queiram aceitar mais que a definição mais limitada, a que, muito evidentemente, não poderia lhe ser aplicável. Além disso, de uma maneira completamente geral, pode-se dizer que a maior parte das discussões não tem outra causa que uma falta de entendimento sobre o sentido dos termos que se empregam; mas, quando há em jogo interesses quaisquer, assim como ocorre aqui, detrás desta divergência no emprego das palavras, é muito provável que a discussão prossiga indefinidamente, sem que os adversários nunca cheguem a ficar de acordo. Em todo caso, as contingências que intervêm nisso estão certamente muito longe do domínio iniciático, o único que nos concerne; se acreditamos dever dizer aqui algumas palavras a respeito, é unicamente para limpar o terreno de certo modo, e também porque isso bastava para mostrar que, em todas as questões que se referem às sociedades secretas ou supostas como tais, ou não se tratam de organizações iniciáticas, ou ao menos não é o caráter destas como tal o que está em causa, o que, além do mais, seria impossível por outras razões mais profundas que a continuação de nossa exposição farão compreender melhor.

Colocando-nos inteiramente fora dessas discussões e de um ponto de vista que não pode ser mais que o de um conhecimento completamente desinteressado, podemos dizer isto: uma organização, revestindo ou não suas formas particulares e, além do mais, completamente exteriores, que permitam defini-la como sociedade, poderá ser qualificada de secreta, no sentido mais amplo desta palavra, e sem que isso implique a menor intenção desfavorável (1), quando essa organização possua um segredo, de qualquer natureza que seja, e que seja tal pela força mesma das coisas ou só em virtude de uma convenção mais ou menos artificial e mais ou menos expressa. Esta definição, pensamos, é bastante ampla para que se possam fazer entrar nela todos os casos possíveis, desde o das organizações iniciáticas mais afastadas de toda manifestação exterior, até o de simples sociedades com uma meta qualquer, política ou outra, e que não têm, como o dizíamos mais atrás, nada de iniciático, e nem sequer nada de tradicional. Assim, é no interior do domínio que abrange, e nos apoiando para isso tanto quanto seja possível em seus próprios termos, como devemos fazer as distinções necessárias, e isso de uma maneira dupla, quer dizer, por uma parte, entre as organizações que são sociedades e as que não o são e, por outra, entre as que têm um caráter iniciático e as que estão desprovidas dele, já que, devido ao fato da «contaminação» que assinalamos, estas duas distinções não podem coincidir exatamente; coincidiriam apenas se as contingências históricas não tivessem conduzido, em alguns casos, uma intrusão de formas profanas em organizações que, por sua origem e por sua meta essencial, são, não obstante, de natureza incontestavelmente iniciática.

Sobre o primeiro dos dois pontos que acabamos de indicar, não há lugar para insistir muito demoradamente, já que, em suma, todo mundo sabe o que é uma «sociedade», quer dizer, uma associação que tem estatutos, regulamentos, reuniões em data e lugar fixos, que tem registro de seus membros, que possui arquivos, atas de suas sessões e outros documentos escritos, em uma palavra que está rodeada de todo um aparato exterior um pouco embaraçoso (2). Tudo isso, repetimo-lo, é perfeitamente inútil para uma organização iniciática, que, quanto a formas exteriores, não tem necessidade de nada mais que de certo conjunto de ritos e de símbolos, que, do mesmo modo que o ensino que os acompanha e os explica, devem se transmitir regularmente por tradição oral. Recordaremos também, a este propósito, que, inclusive se ocorrer às vezes que estas coisas sejam postas por escrito, isso nunca pode ser mais que a título de simples «ajuda para a memória», e que isso não poderia dispensar em nenhum caso da transmissão oral e direta, posto que somente ela permite a comunicação de uma influência espiritual, o que constitui a razão de ser fundamental de toda organização iniciática; um profano que conhecesse todos os ritos, por ter lido sua descrição nos livros, não estaria iniciado por isso, já que, é bem evidente, desse modo, a influência espiritual vinculada a esses ritos não teria sido transmitida de maneira nenhuma.

Uma conseqüência imediata do que acabamos de dizer, é que uma organização iniciática, enquanto que não toma a forma acidental de uma sociedade, com todas as manifestações exteriores que esta implica, é em certo modo «inapreensível» para o mundo profano; e se pode compreender sem esforço que ela não deixa nenhum rastro acessível às investigações dos historiadores ordinários, cujo método tem como caráter essencial se referir unicamente aos documentos escritos, que são inexistentes em parecido caso. Pelo contrário, toda sociedade, por secreta que possa ser, apresenta «exteriores» que estão forçosamente ao alcance das investigações dos profanos, «exteriores» pelos quais sempre é possível que estes cheguem a ter conhecimento dela de certa forma, inclusive se forem incapazes de penetrar sua natureza mais profunda. Não será necessário dizer que esta última restrição concerne às organizações iniciáticas que tomaram tal forma, ou diríamos de boa vontade, que degeneraram em sociedades por causa das circunstâncias e do meio onde se encontram situadas; e adicionaremos que este fenômeno nunca se produziu tão claramente como no mundo ocidental moderno, onde afeta a tudo o que subsiste ainda das organizações que podem reivindicar um caráter autenticamente iniciático inclusive se, como se constata muito freqüentemente, este caráter, em seu estado atual, chegou a ser desconhecido ou incompreendido pela maior parte de seus próprios membros. Não queremos procurar aqui as causas deste desconhecimento, que são diversas e múltiplas, e que se devem em grande parte à natureza especial da mentalidade moderna; assinalaremos apenas que esta forma de sociedade pode não ser inócua em si mesma, já que, posto o exterior tomar nelas indevidamente uma importância desproporcionada com seu valor real, o acidental acaba por ocultar completamente o essencial; e, além do mais, as semelhanças aparentes com as sociedades profanas podem ocasionar também muitos equívocos sobre a verdadeira natureza destas organizações.

Não daremos mais que um só exemplo desses equívocos, que toca muito de perto o próprio fundo de nosso tema: quando se trata de uma sociedade profana, a pessoa pode sair dela do mesmo modo que entrou, e se encontra então pura e simplesmente com o que era antes; uma demissão ou uma expulsão basta para que todo laço seja quebrado, posto que esse laço é evidentemente de uma natureza completamente exterior e não implica nenhuma modificação profunda do ser. Pelo contrário, desde que se foi admitido em uma organização iniciática, qualquer que seja, jamais, por nenhum meio, pode-se deixar de estar vinculado a ela, posto que a iniciação, por isso mesmo de que consiste essencialmente na transmissão de uma influência espiritual, é necessariamente conferida de uma vez por todas e possui um caráter propriamente indelével; trata-se de um fato da ordem «interior» contra o que nenhuma formalidade administrativa nada pode. Mas, por toda parte onde há uma sociedade, há por isso mesmo formalidades administrativas, e pode haver também demissões ou expulsões, pelas quais, segundo as aparências, deixar-se-á de formar parte da sociedade considerada; e se vê imediatamente o equívoco que resultará disso no caso onde esta não represente em suma mais que a «exterioridade» de uma organização iniciática. Por conseguinte, como todo o rigor, seria necessário fazer então, sob esta relação, uma distinção entre a sociedade e a organização iniciática como tal; e, posto que a primeira não é, como o dissemos, mais que uma simples forma acidental e «sobreposta», da qual a segunda, em si mesma e em tudo o que constitui sua essência, permanece inteiramente independente, a aplicação desta distinção apresenta na realidade muito menos dificuldades do que poderia parecer com primeira vista.

Outra conseqüência à que somos levados logicamente por estas considerações seria esta: uma sociedade, inclusive secreta, sempre pode ser o alvo de atentados provenientes do exterior, porque, em sua constituição, há elementos que se situam, caso se possa dizer, no mesmo nível que estes; assim, concretamente, poderia ser dissolvida pela ação de um poder político. Pelo contrário, a organização iniciática, por sua própria natureza mesma, escapa a tais contingências, e nenhuma força exterior pode suprimi-la; neste sentido também, é verdadeiramente «inapreensível». Efetivamente, posto que a qualidade de seus membros nunca pode ser perdida, nem lhes ser arrebatada, conserva uma existência efetiva enquanto um dentre eles permaneça vivo, e só a morte do último implicará seu desaparecimento; mas, mesmo nesta eventualidade, supõe-se que seus representantes autorizados, por razões cujos únicos juizes são eles mesmos, terão renunciado a assegurar a continuação da transmissão da qual são os depositários; e, assim, a única causa possível de sua supressão, ou melhor, de sua extinção, encontra-se necessariamente em seu próprio interior.

Enfim, toda organização iniciática é também «inapreensível» do ponto de vista de seu segredo, posto que este é tal por natureza e não por convenção, e posto que, por conseguinte, não pode ser penetrado em nenhum caso pelos profanos, hipótese que implicaria em si mesma uma contradição, já que o verdadeiro segredo iniciático não é nada mais que o «incomunicável», e só a iniciação pode dar acesso a seu conhecimento. Mas isto se refere mais à segunda das duas distinções que indicamos logo atrás, a das organizações iniciáticas e das sociedades secretas que não têm, de modo algum, esse caráter; além do mais, esta distinção, parece, deveria ser feita muito facilmente pela própria diferença da meta a que se propõem umas e outras; mas, de fato, a questão é mais complexa do que parece à primeira vista. Não obstante, há um caso que não pode oferecer nenhuma dúvida: quando alguém se encontra em presença de um agrupamento constituído para fins quaisquer e cuja origem é inteiramente conhecida, da qual se sabe que foi criada completamente por individualidades cujos nomes podem ser citados, e que não possui por conseguinte nenhuma vinculação tradicional, a pessoa pode estar segura de que este agrupamento, quaisquer que sejam, além disso, suas pretensões, não tem absolutamente nada de iniciático. A existência de formas rituais em alguns desses agrupamentos não muda nada a respeito, já que tais formas, tomadas ou imitadas das organizações iniciáticas, não são então mais que simples paródia desprovida de todo valor real; e, por outra parte, isto não se aplica apenas a organizações cujos fins são unicamente políticos ou, mais geralmente, «sociais», em qualquer um dos sentidos que se podem atribuir a esta palavra, mas também a todas essas formações modernas que chamamos pseudo-iniciáticas, compreendidas nisso aquelas que invocam uma vaga vinculação «ideal» a uma tradição qualquer.

Pelo contrário, pode haver dúvida desde que se trate de uma organização cuja origem se apresenta um pouco enigmática, e que não poderia ser atribuída a individualidades definidas; efetivamente, inclusive se suas manifestações conhecidas não têm evidentemente nenhum caráter iniciático, pode ser, não obstante, que represente uma separação ou uma degeneração de algo que era tal primitivamente. Esta separação, que pode produzir-se sobretudo sob a influência de preocupações de ordem social, supõe que a incompreensão da primeira meta e essencial aconteceu na generalidade dos membros de dita organização; além disso, pode ser mais ou menos completa, e o que subsiste ainda de organizações iniciáticas no ocidente representa, de certo modo, em seu estado atual, um estágio intermediário a este respeito. O caso extremo será aquele onde, embora se conservam não obstante as formas rituais e simbólicas, ninguém tem já a menor consciência de seu verdadeiro caráter iniciático, de sorte que apenas as interpreta em função de alguma aplicação contingente qualquer; além do mais, legítima ou não, essa não é a questão, posto que a degeneração consiste propriamente no fato de que não se considera nada além desta aplicação e do domínio mais ou menos exterior ao que ela se refere especialmente. Está bem claro que, em parecido caso, aqueles que não vêem as coisas mais que «do exterior» serão incapazes de discernir aquilo do que se trata na realidade e de fazer a distinção entre tais organizações e aquelas das quais falávamos em primeiro lugar, ainda mais que, quando estas chegarem a não ter, conscientemente ao menos, mais que uma meta similar àquela pela qual as outras foram criadas artificialmente, disso resulta uma espécie de «afinidade» de fato, em virtude da qual umas e outras podem entrar em contato mais ou menos direto, e inclusive acabar às vezes por se misturarem de maneira um pouco inextricável.
Para fazer compreender melhor o que acabamos de dizer, convém apoiarmo-nos em casos precisos; citaremos assim o exemplo de duas organizações que, exteriormente, podem parecer bastante comparáveis entre elas e que, entretanto, diferem claramente por suas origens, de tal sorte que entram respectivamente em ambas as categorias que acabamos de distinguir: os Iluminados da Baviera e os Carbonários. No que concerne aos primeiros, os fundadores são conhecidos, e se sabe de que maneira elaboraram o «sistema» por sua própria iniciativa, à margem de toda vinculação, não preexistente; sabe-se também por quais etapas sucessivas aconteceram os graus e os rituais, dos quais alguns nunca foram praticados e não existiram mais que sobre o papel; pois tudo foi posto por escrito desde o começo, e à medida que se desenvolviam e se ajustavam as idéias dos fundadores - e isso é inclusive o que fez fracassar seus planos, que, bem entendido, referiam-se exclusivamente ao domínio social e não lhe transpunham sob nenhum aspecto. Assim, não é de se duvidar que nisso não se trate mais do que a obra artificial de alguns indivíduos, e que as formas que tinham adotado não podiam constituir mais que um simulacro ou uma paródia de iniciação, posto que faltava a vinculação tradicional, e posto que a meta realmente iniciática era estranha a suas preocupações. Caso se considere, pelo contrário, o Carbonarismo, constata-se, por uma parte, que é impossível lhe atribuir uma origem «histórica» deste gênero e, por outra, que seus rituais apresentam claramente o caráter de uma «iniciação de ofício», aparentado como tal à Maçonaria e ao Companheirismo; mas, enquanto que estes guardaram sempre uma certa consciência de seu caráter iniciático, por diminuída que esteja devido à intrusão de preocupações da ordem contingente, e à parte cada vez maior que [estas preocupações] se lhes foi ocupando, parece (embora nunca se possa ser absolutamente afirmativo a este respeito, posto que um pequeno número de membros, e que não são forçosamente os chefes aparentes, podem constituir sempre a exceção à incompreensão geral, sem deixar aparentá-lo em nada) (3) que o Carbonarismo tenha levado finalmente a degeneração ao extremo, até o ponto de não ser nada mais de fato que aquela simples associação de conspiradores políticos cuja ação é conhecida na história do século XIX. Os Carbonários se mesclaram então a outras associações de fundação completamente recente e que nunca tinham tido nada de iniciático, enquanto que, por outro lado, muitos dentre eles pertenciam ao mesmo tempo à Maçonaria, o que pode explicar-se por sua vez pela afinidade das duas organizações, e por uma espécie de degeneração da própria Maçonaria, que vai no mesmo sentido, embora menos longe, que a do Carbonarismo. Quanto aos Iluminados, suas relações com a Maçonaria tiveram um caráter completamente diferente: aqueles que entraram nela não o fizeram mais que com a intenção bem determinada de adquirir uma influência preponderante e de servir-se dela como de um instrumento para a realização de seus intuitos particulares, o que fracassou, além do mais, como todo o resto; e, para dizer de passagem, por isso se vê bastante bem quão longe estão da verdade aqueles que pretendem fazer dos próprios Iluminados uma organização «maçônica». Adicionaremos também que a ambigüidade desta denominação de «Iluminados» não deve iludir a ninguém: a mesma não era tomada aí mais que em uma acepção estritamente «racionalista», e é mister não esquecer que, no século XVIII, as «luzes» tinham na Alemanha uma significação quase equivalente à da «filosofia» na França, quer dizer, que não se poderia conceber nada mais profano e inclusive mais formalmente contrário a todo espírito iniciático ou somente tradicional.
Abriremos ainda um parêntese a propósito desta última consideração: se ocorrer que idéias «filosóficas» e mais ou menos «racionalistas» se infiltrem em uma organização iniciática, é necessário não ver nisso mais que o efeito de um engano individual (ou coletivo) de seus membros, devido a sua incapacidade de compreender sua verdadeira natureza e, por conseguinte, de se guardar de toda «contaminação» profana; este engano, bem entendido, não afeta de modo algum o princípio mesmo da organização, mas é um dos sintomas desta degeneração de fato da qual falamos, degeneração que, além do mais, pode alcançar um grau mais ou menos avançado. Diremos outro tanto do «sentimentalismo» e do «moralismo», sob todas suas formas, coisas não menos profanas por sua própria natureza; além do mais, em geral, tudo isso está ligado um pouco estreitamente a um predomínio das preocupações sociais; mas é sobretudo quando estas chegam a tomar uma forma especificamente «política», no sentido mais estreito da palavra, quando a degeneração corre o risco de ser irremediável. Um dos fenômenos mais estranhos neste gênero, é a penetração das idéias «democráticas» nas organizações iniciáticas ocidentais (e naturalmente, aqui pensamos, sobretudo, na Maçonaria, ou ao menos em algumas de suas frações), sem que seus membros pareçam dispor-se de que nisso há uma contradição pura e simples, e inclusive, sob um duplo aspecto: efetivamente, por definição mesma, toda organização iniciática está em oposição formal com a concepção «democrática» e «igualitária», primeiro em relação ao mundo profano, frente ao qual ela constitui, na acepção mais exata do termo, uma «elite» separada e fechada, e depois em si mesma, pela hierarquia de graus e de funções que estabelece necessariamente entre seus próprios membros. Além disso, este fenômeno não é mais que uma das manifestações da separação do espírito ocidental moderno, que se estende e penetra por toda parte, inclusive ali onde deveria encontrar a resistência mais irredutível; e isto, por outra parte, não se aplica unicamente ao ponto de vista iniciático, mas também ao ponto de vista religioso, quer dizer, em suma, a tudo o que possui um caráter verdadeiramente tradicional.

Assim, ao lado de organizações que permaneceram puramente iniciáticas, há aquelas que, por uma razão ou por outra, degeneraram ou se desviaram mais ou menos completamente, mas que, não obstante, permanecem ainda iniciáticas em sua essência profunda, por incompreendida que esta seja em seu estado presente. Há depois aquelas que não são mais que sua contrafação ou sua caricatura, quer dizer, as organizações pseudo-iniciáticas; e finalmente há outras organizações de caráter igualmente um pouco secreto, mas que não têm nenhuma pretensão desta ordem, e que se propõem apenas metas que não têm evidentemente nenhuma relação com o domínio iniciático; mas deve-se entender bem que, sejam quais forem as aparências, as organizações pseudo-iniciáticas são na realidade tão profanas quanto estas últimas e que, assim, umas e outras não formam verdadeiramente mais que um só grupo, por oposição ao das organizações iniciáticas, puras ou «poluídas» de influências profanas. Mas, a tudo isso, é necessário adicionar ainda outra categoria, a das organizações que dependem da «contra-iniciação», e que têm certamente, no mundo atual, uma importância muito mais considerável do que se estaria tentando supor usualmente; limitar-nos-emos aqui às mencionar, sem o que nossa enumeração apresentaria uma grave lacuna, e assinalaremos apenas uma nova complicação que resulta de sua existência: ocorre em alguns casos que exercem uma influência mais ou menos direta sobre as organizações profanas, e especialmente pseudo-iniciáticas (4); daí surge uma dificuldade mais para determinar exatamente o caráter real de tal ou qual organização; mas, bem entendido, não nos vamos ocupar aqui do exame dos casos particulares, e nos basta ter indicado com suficiente claridade a classificação que convém estabelecer de uma maneira geral.

Entretanto, isso ainda não é tudo: há organizações que, embora não tenham em si mesmas mais que uma meta de ordem contingente, possuem, não obstante, uma verdadeira vinculação tradicional, porque procedem de organizações iniciáticas das quais, de certo modo, não são mais que uma emanação, e pelas quais são dirigidas «invisivelmente», embora seus chefes aparentes sejam inteiramente estranhos ao assunto. Este caso, como já o indicamos, encontra-se em particular nas organizações secretas extremo-orientais: constituídas unicamente em vista de uma meta, especial, geralmente não têm mais que uma existência passageira, e desaparecem sem deixar rastro desde que sua missão esteja cumprida; mas, na realidade, representam o último degrau, e o mais exterior de uma hierarquia que se eleva, de grau em grau, até as organizações iniciáticas mais puras e mais inacessíveis aos olhares do mundo profano. Assim, aqui não se trata em modo algum de uma degeneração das organizações iniciáticas, mas sim mais de formações expressamente desejadas por estas, sem que elas mesmas descendam a esse nível contingente e se mesclem à ação que se exerce nele, e isso para fins que, naturalmente, são muito diferentes de tudo o que pode ver ou supor um observador superficial. Recordaremos o que já dissemos mais atrás sobre este tema, ou seja, que as mais exteriores destas organizações podem se encontrar às vezes em oposição e inclusive em luta umas com outras e ter, não obstante, uma direção ou uma inspiração comum, posto que essa direção está além do domínio onde se afirma sua oposição e é a única pela qual é válida; e possivelmente isto encontraria também sua aplicação em outras partes, além do extremo oriente, embora tal hierarquização de organizações sobrepostas não se encontra, sem dúvida, em parte alguma de uma maneira tão clara e tão completa como na que depende da tradição taoísta. Têm-se aí organizações de um caráter «misto», de certo modo, das quais não se pode dizer que sejam propriamente iniciáticas, embora tampouco que sejam simplesmente profanas, posto que sua vinculação às organizações superiores confere uma participação, embora seja indireta e inconsciente, em uma tradição cuja essência é puramente iniciática (5); e algo desta essência se reencontra sempre em seus ritos e em seus símbolos para aqueles que sabem penetrar seu sentido mais profundo.

Todas as categorias de organizações que consideramos quase não têm em comum mais que o único fato de ter um segredo, qualquer que seja, além do mais, sua natureza; não será necessário dizer que, de uma a outra, esta natureza pode ser extremamente diferente: entre o verdadeiro segredo iniciático e um intuito político que se deixa oculto, ou ainda a dissimulação da existência de uma associação ou dos nomes de seus membros por razões de simples prudência, não há evidentemente nenhuma comparação possível. E ainda não falamos nisso desses agrupamentos de fantasia, como existem tantos em nossos dias e concretamente nos países anglo-saxões, que, para «arremedar» às organizações iniciáticas, adotam formas que não recobrem absolutamente nada, que estão realmente desprovidas de todo alcance e inclusive de toda significação, e sobre as quais pretendem guardar um segredo que não se justifica por nenhuma razão séria. Este último caso não tem outro interesse que mostrar bastante claramente o equívoco que se produz correntemente, no espírito do público profano, sobre a natureza do segredo iniciático; imagina-se, efetivamente, que este recaia simplesmente sobre os ritos, assim como sobre palavras e sinais empregados como meios de reconhecimento, o que faria dele um segredo tão exterior e artificial como não importa qual outro, um segredo que o seria, em suma, apenas por convenção. Agora, se tal segredo existir de fato na maior parte das organizações iniciáticas, não obstante, é apenas um elemento completamente secundário e acidental, e, para falar a verdade, não tem mais que um valor de símbolo em relação ao verdadeiro segredo iniciático, que é tal pela natureza mesma das coisas, e que, por conseguinte, nunca poderia ser traído de maneira nenhuma, posto que é de ordem puramente interior e posto que, como já o dissemos, reside propriamente no «incomunicável».

Notas:

(1) De fato, a intenção desfavorável que se lhe atribui de forma usual procede unicamente desse traço característico da mentalidade moderna que definimos, em outra parte, como o «ódio ao segredo» sob todas suas formas. (Ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XII).

(2) É necessário não esquecer de mencionar o lado «financeiro» exigido pelo razão deste próprio aparato, já que como se sabe muito bem, a questão das «cotações» tem uma importância considerável em todas as sociedades, compreendidas aí as organizações iniciáticas ocidentais que tomaram a forma exterior.

(3) Além do mais, ninguém poderia lhes reprovar tal atitude, se a incompreensão tiver sido tal que seja virtualmente impossível reagir contra ela.

(4) Cf. o Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXVI.

(5) Recordaremos que o Taoísmo representa unicamente o lado esotérico da tradição extremo oriental, cujo lado exotérico está constituído pelo confucionismo.