Guenon estuda“Aperçus sur L’Initiation", de René Guénon - Éditions Traditionnelles, Paris - 1946

"Considerações sobre a Iniciação"
Capítulos V, VI, VII e VIII

Tradução: Igor Silva

Capítulo V: Da Regularidade Iniciática

A vinculação a uma organização tradicional regular, dissemos, não é somente uma condição necessária da iniciação, mas também, inclusive, o que constitui a iniciação no sentido mais estrito, tal como a define a etimologia da palavra que a designa, e é o que se representa por toda parte como um «segundo nascimento», ou como uma «regeneração». «Segundo nascimento», porque abre ao ser um mundo diferente daquele onde se exerce a atividade de sua modalidade corporal, mundo que será para ele o campo de desenvolvimento de possibilidades de uma ordem superior; «regeneração», porque assim restabelece a este ser a prerrogativas que eram naturais e normais nas primeiras idades da humanidade, quando esta ainda não se afastara da espiritualidade original para afundar-se cada vez mais na materialidade, como devia fazê-lo no curso das épocas ulteriores, e porque deve lhe conduzir, como primeira etapa essencial de sua realização, à restauração nele do «estado primitivo», que é a plenitude e a perfeição da individualidade humana, e que reside no ponto central, único e invariável, de onde o ser poderá elevar-se depois para os estados superiores.

É-nos mister insistir ainda a este respeito sobre um ponto capital: a vinculação de que se trata deve ser real e efetiva, e que uma suposta vinculação «ideal», tal como alguns se agradaram às vezes em considerá-la em nossa época, é inteiramente vã e de efeito nulo (1). Isso é fácil de compreender, posto que se trata propriamente da transmissão de uma influência espiritual, que deve se efetuar segundo leis definidas; e essas leis, embora sejam evidentemente diferentes daquelas que regem as forças do mundo corporal, não são por isso menos rigorosas, e apresentam inclusive com estas últimas, apesar das diferenças profundas que as separam, uma certa analogia, em virtude da continuidade e da correspondência que existem entre todos os estados, ou graus, da Existência universal. Esta analogia é a que nos permitiu, por exemplo, falar de «vibração» a propósito do Fiat Lux, pelo qual é iluminado e ordenado o caos das potencialidades espirituais, embora não se trate de modo algum de uma vibração de ordem sensível como as que estudam os físicos, como tampouco a «luz» da que se fala pode ser identificada com a que é apreendida pela faculdade visual do organismo corporal (2); mas estas maneiras de falar, embora sejam necessariamente simbólicas, posto que estão fundadas sobre uma analogia ou sobre uma correspondência, por isso não são menos legítimas nem estão menos justificadas, já que esta analogia e esta correspondência existem muito realmente na própria natureza das coisas e vão inclusive, em um certo sentido, muito mais longe do que se poderia supor (3). Teremos que voltar de novo, mais amplamente, sobre estas considerações quando falarmos dos ritos iniciáticos e de sua eficácia; no momento, basta-nos reter que nisso há leis que é mister forçosamente ter em conta, sendo que a falta disso o resultado apontado não poderia ser alcançado, da mesma maneira que um efeito físico não pode ser obtido se algo não se coloca nas condições requeridas em virtude das leis às quais está submetida sua produção; e, desde que se trata de operar efetivamente uma transmissão, isso implica manifestamente um contato real, qualquer que sejam as modalidades pelas quais possa ser estabelecido, modalidades que estarão determinadas naturalmente por essas leis de ação das influências espirituais às quais acabamos de fazer alusão.

Desta necessidade de um vinculação efetivo resultam imediatamente várias conseqüências extremamente importantes, seja no que concerne ao indivíduo que aspira à iniciação, seja no que concerne às próprias organizações iniciáticas; e são essas conseqüências as que nos propomos examinar agora. Sabemos que há pessoas, e muitas inclusive, a quem estas considerações parecerão muito pouco agradáveis, seja porque perturbarão a idéia muito cômoda e «simplista» que formaram da iniciação, seja porque destruirão algumas pretensões injustificadas e algumas asserções mais ou menos interessadas, mas desprovidas de toda autoridade; mas estas são coisas nas quais não poderíamos nos deter por pouco que seja, posto que não temos e não podemos ter, aqui como sempre, nenhuma outra preocupação que a da verdade.

Primeiro, no que concerne ao indivíduo, é evidente que, segundo o que acaba de ser dito, sua intenção de ser iniciado, inclusive admitindo que seja verdadeiramente para ele a intenção de vincular-se a uma tradição da qual pode ter algum conhecimento «exterior», não poderia bastar de maneira nenhuma por si mesma para lhe assegurar a iniciação real (4) . De fato, nisto não se trata de «erudição», que, como tudo o que depende do saber profano, aqui não tem nenhum valor; e não se trata tampouco de sonho ou de imaginação, como tampouco de quaisquer aspirações sentimentais. Se, para poder chamar-se iniciado, bastasse lendo livros, embora sejam as Escrituras sagradas de uma tradição ortodoxa, acompanhadas inclusive, caso se queira, de seus comentários mais profundamente esotéricos, ou pensando mais ou menos vagamente em alguma organização passada, ou presente, à qual alguém atribui complacentemente, e tão mais facilmente quanto pior conhecida seja, seu próprio «ideal» (esta palavra que se emprega em nossos dias para qualquer propósito, e que, significando tudo o que se quer, no fundo, não significa nada), seria verdadeiramente muito fácil; e a questão prévia da «qualificação» se encontraria por isso mesmo inteiramente suprimida, já que cada um, ao ser levado naturalmente a estimar-se «bem e devidamente qualificado», e ao ser assim, ao mesmo tempo, juiz e parte em sua própria causa, descobriria certamente sem esforço excelentes razões (excelentes ao menos a seus próprios olhos e segundo as idéias particulares que se forjou) para se considerar como iniciado sem mais formalidades, e já não vemos sequer por que teria que deter-se em tão boa via, e teria que vacilar em se atribuir de uma vez só os graus mais transcendentes. Aqueles que se imaginam que alguém «se inicia» a si mesmo, como o dizíamos precedentemente, refletiram alguma vez nessas conseqüências mais irritantes que implica sua afirmação? Nessas condições, não mais seleção nem controle, não mais «meios de reconhecimento», no sentido em que já empregamos esta expressão, não mais hierarquia possível, e, bem entendido, não mais transmissão de nada; em uma palavra, não mais nada do que caracteriza essencialmente a iniciação e do que a constitui de fato; e entretanto isso é o que alguns, com uma surpreendente inconsciência, ousam apresentar como uma concepção «modernizada» da iniciação (bem modernizada, de fato, e certamente bem digna dos «ideais» laicos, democráticos e igualitários), sem suspeitar sequer que, em lugar de haver ao menos iniciados virtuais, o que depois de tudo é ainda algo, assim já não haveria mais que simples profanos que se dariam indevidamente por iniciados.

Mas deixemos estas divagações, que podem parecer desdenháveis; se acreditamos dever falar um pouco sobre isso, é porque a incompreensão e a desordem intelectual que caracterizam desafortunadamente a nossa época permitem propagar-se com uma deplorável facilidade. O que é mister compreender bem é que, desde de que se fale de iniciação, tratam-se exclusivamente de coisas sérias e de realidades «positivas», diríamos de boa vontade se os «cientificistas» profanos não tivessem abusado tanto desta palavra; que se aceitem estas coisas tais como são, ou que já não se fale absolutamente de iniciação; não vemos nenhum termo médio possível entre estas duas atitudes, e valeria mais renunciar francamente a toda iniciação que dar seu nome ao que não seria mais que uma vã paródia, sem falar sequer das aparências exteriores que procuram proteger também a algumas outras imposturas das quais teremos que falar em seguida.

Para voltar de novo para o que foi o ponto de partida desta digressão, diremos que é mister que o indivíduo tenha não só a intenção de ser iniciado, mas também seja «aceito» por uma organização tradicional regular, que tenha qualidade para lhe conferir a iniciação (5), quer dizer, para lhe transmitir a influência espiritual sem cujo concurso, apesar de todos seus esforços, seria-lhe impossível chegar a se liberar das limitações e das travas do mundo profano. Pode acontecer que, em razão de sua falta de «qualificação», sua intenção, por sincera que possa ser, não encontre nenhuma resposta, já que a questão não é essa, e em tudo isto não se trata em modo algum de «moral», mas sim unicamente de regras «técnicas» que se referem a leis «positivas» (repetimos esta palavra a falta de encontrar outra mais adequada para isso), e que se impõem com uma necessidade tão inelutável como se impõem, em outra ordem, as condições físicas e mentais indispensáveis para o exercício de algumas profissões.

Em caso parecido, jamais poderá considerar-se como iniciado, sejam quais forem os conhecimentos teóricos que chegue a adquirir em outras partes; e, além do mais, terá que supor que, inclusive sob este aspecto, nunca irá muito longe (falamos naturalmente de uma compreensão verdadeira, embora ainda exterior, e não da simples erudição, quer dizer, de uma acumulação de noções que chama apenas pela memória, tal como acontece no ensino profano), já que o conhecimento teórico mesmo, para ultrapassar um certo grau, supõe já normalmente a «qualificação» requerida para se obter a iniciação que lhe permitirá transformar-se, pela «realização» interior, em conhecimento efetivo, e assim a ninguém poderia se impedir de desenvolver as possibilidades que leva verdadeiramente em si mesmo; em definitivo, não são descartados mais que aqueles que se iludem por sua própria conta, acreditando poder obter algo que, na realidade, encontra-se como incompatível com sua natureza individual.

Passando agora ao outro lado da questão, quer dizer, ao que se refere às organizações iniciática mesmas, diremos isto: é muito evidente que não se pode transmitir mais que aquilo que se possui; por conseguinte, é mister necessariamente que uma organização seja efetivamente depositária de uma influência espiritual para poder comunicá-la aos indivíduos que se vinculam a ela; e isto exclui imediatamente todas as formações pseudo-iniciáticas, tão numerosas em nossa época, e desprovidas de todo caráter autenticamente tradicional. De fato, nestas condições uma organização iniciática não poderia ser o produto de uma fantasia individual; não pode estar fundada, à maneira de uma associação profana, sobre a iniciativa de algumas pessoas que decidem reunir-se adotando umas formas quaisquer; e, inclusive se essas formas não são inventadas completamente, mas sim tiradas de ritos realmente tradicionais dos quais seus fundadores tenham tido algum conhecimento por «erudição», por isso não serão mais válidas, já que, a falta de filiação regular, a transmissão da influência espiritual é impossível e inexistente, de sorte que, em semelhante caso, não se trataria mais que de uma vulgar falsificação da iniciação.

Com maior razão é assim quando não se trata mais que de reconstituições puramente hipotéticas, por não dizer imaginárias, de formas tradicionais desaparecidas de um tempo mais ou menos remoto, como as do antigo o Egito ou as da Caldéia, por exemplo; e, inclusive se houvesse no emprego de tais formas uma vontade séria de vincular-se à tradição a qual pertenceram, não seriam, por causa disso, mais eficazes, já que alguém só pode se vincular, na realidade, a algo que tem uma existência atual, e ainda é mister para tal, como o dizíamos no que concerne aos indivíduos, ser «aceito» pelos representantes autorizados da tradição referente, de tal sorte que uma organização aparentemente nova só poderá ser legítima se for como um prolongamento de uma organização lhe preexista, de maneira que mantenha, sem nenhuma interrupção, a continuidade da «cadeia» iniciática.

Em tudo isto, só fazemos, em suma, apenas expressar em outros termos e mais explicitamente o que já dissemos logo acima sobre a necessidade de uma vinculação efetiva e direta e sobre a vaidade de uma vinculação «ideal»; e, a este respeito, é mister não se deixar enganar pelas denominações que se atribuem algumas organizações, denominações às quais não têm nenhum direito, mas com as quais tentam dar uma aparência de autenticidade. Assim, para retomar um exemplo que já citamos em outras ocasiões, existe uma multidão de agrupamentos, de origem muito recente, que se intitulam «rosacrucianos», sem ter tido jamais o menor contato com os Rosa-Cruzes, bem entendido, ainda que por alguma via indireta e desviada, e sem sequer saber o que estes foram na realidade, posto que são representados quase invariavelmente como tendo constituído uma «sociedade», o que é um engano grosseiro e também especificamente moderno. Freqüentemente, é mister não ver aí mais que a necessidade de se adornar com um título impressionante ou a vontade de se impor aos ingênuos; mas, inclusive, em se considerando o caso mais favorável, quer dizer, ao se admitir que a constituição de alguns desses agrupamentos procede de um desejo sincero de vincular-se «idealmente» aos Rosa-Cruzes, isso não será ainda, sob o ponto de vista iniciático, mais que puro nada. Além disso, o que dizemos sobre este exemplo particular se aplica igualmente a todas as organizações inventadas pelos ocultistas e demais «neo-espiritualistas» de todo gênero e de todas denominações, organizações que, sejam quais sejam suas pretensões, não podem, em toda verdade, ser qualificadas mais que de «pseudo-iniciáticas», já que não têm absolutamente nada real que transmitir, e já que o que apresentam não é mais que uma contrafação, e inclusive, muito freqüentemente, uma paródia ou uma caricatura da iniciação (6).

Adicionamos ainda, como outra conseqüência do precedente, que, ainda que se trate de uma organização autenticamente iniciática, seus membros não têm o poder de trocar suas formas a seu gosto ou de as alterar no que têm de essencial; isso não exclui algumas possibilidades de adaptação às circunstâncias, que, aliás, impõem-se aos indivíduos antes que derivadas de sua vontade, mas que, em todo caso, estão limitadas pela condição de não atentar contra os meios pelos quais são asseguradas a conservação e a transmissão da influência espiritual da qual é depositária a organização considerada; se esta condição não fosse observada, resultaria disso uma verdadeira ruptura com a tradição, o que faria com que esta organização perdesse sua «regularidade». Além disso, uma organização iniciática não pode incorporar validamente a seus ritos elementos tomados de formas tradicionais diferentes daquela segundo a qual está constituída regularmente (7); tais elementos, cuja adoção teria um caráter completamente artificial, não representariam mais que simples fantasias redundantes, sem nenhuma eficácia do ponto de vista iniciático, e que, por conseguinte, não adicionariam absolutamente nada real, senão que, melhor dizendo, sua presença só poderia ser inclusive, em razão de sua heterogeneidade, uma causa de perturbação e de desarmonia; aliás, o perigo de tais mesclas está longe de estar limitado unicamente ao domínio iniciático, e se trata de um ponto bastante importante para merecer ser tratado à parte. As leis que presidem o manejo das influências espirituais são algo muito complexo e muito delicado como para que aqueles que não têm disso um conhecimento suficiente possam permitir-se impunemente contribuir com modificações mais ou menos arbitrárias a formas rituais nas quais tudo tem sua razão de ser, e cujo alcance exato corre muito risco de se lhes escapar.

O que resulta claramente de tudo isso, é a nulidade das iniciativas individuais quanto à constituição das organizações iniciáticas, seja no que concerne a sua prórpia origem, seja sob a relação das formas que revestem; e se pode destacar a propósito disto que, de fato, não existem formas rituais tradicionais às quais se lhes possa atribuir como autores indivíduos determinados. É fácil compreender que isso seja assim, ao se refletir que a meta essencial e final da iniciação ultrapassa o domínio da individualidade e de suas possibilidades particulares, o que seria impossível se para isso se estivesse reduzido a meios de ordem puramente humano; assim, desta simples consideração, e sem ir sequer ao fundo das coisas, pode-se concluir imediatamente que é mister a presença de um elemento «não-humano», e tal é, de fato, o caráter da influência espiritual cuja transmissão constitui a iniciação propriamente dita.

Notas:

(1) Para alguns exemplos desta suposta vinculação «ideal», pela qual alguns chegam até pretender fazer reviver formas tradicionais inteiramente desaparecidas, ver O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXVI; pelo resto, voltaremos sobre isso um pouco mais adiante.

(2) Aliás, expressões como as de «Luz inteligível» e «Luz espiritual», ou outras expressões equivalentes a essas, são bem conhecidas em todas as doutrinas tradicionais, tanto ocidentais quanto orientais; e, a este propósito, recordaremos somente, de uma maneira mais particular, a assimilação na tradição islâmica, do Espírito (Er-Rûh), em sua própria essência, à luz (En-Nûr).

(3) É a incompreensão de uma tal analogia, tomada equivocadamente por uma identidade, a qual, junto à constatação de uma certa semelhança nos modos de ação e nos efeitos exteriores, levou alguns a fazer uma concepção errônea e mais ou menos grosseiramente materializada, não só das influências psíquicas ou sutis, mas também das influências espirituais mesmas, assimilando-as pura e simplesmente a forças «físicas», no sentido mais restrito desta palavra, tais como a eletricidade ou o magnetismo; e desta mesma incompreensão pôde vir também, ao menos em parte, a idéia muito estendida de procurar estabelecer aproximações entre os conhecimentos tradicionais e os pontos de vista da ciência moderna e profana, idéia absolutamente vã e ilusória, posto que são coisas que não pertencem ao mesmo domínio, e posto que, além disso, o ponto de vista profano em si mesmo é propriamente ilegítimo. — Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XVII.

(4) Com isso entendemos não só a iniciação plenamente efetiva, mas também, inclusive, a simples iniciação virtual, segundo a distinção que há lugar a fazer a este respeito e sobre a qual teremos que voltar mais adiante de uma maneira mais precisa.

(5) Com isso não queremos dizer somente que se deve tratar de uma organização propriamente iniciática, a exclusão de qualquer outra variedade de organização tradicional, o que é em suma muito evidente, mas também que esta organização não deve depender de uma forma tradicional a qual, em sua parte exterior, o indivíduo em questão seja estranho; há casos inclusive nos quais o que se poderia chamar a «jurisdição» de uma organização iniciática é ainda mais limitada, como o de uma iniciação baseada sobre um ofício, e que só pode ser conferida a indivíduos pertencentes a dito ofício ou que tenham com ele ao menos alguns laços bem definidos.

(6) Investigações que devemos fazer sobre este tema, em um tempo já longínquo, conduziram a uma conclusão formal e indubitável que devemos expressar aqui claramente, sem nos preocupar dos furores que a mesma pode arriscar-se a suscitar por diversos lados: se ficar à parte o caso da sobrevivência possível de alguns raros agrupamentos de hermetismo cristão da idade Média, aliás, extremamente restritas, é um fato que, de todas as organizações com pretensões iniciáticas que estão atualmente estendidas no mundo ocidental, não há mais que duas que, por decadentes que estejam uma e outra, conseqüência da ignorância e da incompreensão da imensa maioria de seus membros, podem reivindicar uma origem tradicional autêntica e uma transmissão iniciática real; estas duas organizações, que, para falar a verdade, não foram primitivamente mais que uma só, embora com ramos múltiplos, são o Companheirismo e a Maçonaria. Todo o resto não é mais que fantasia ou charlatanismo, quando não serve inclusive para dissimular algo pior; e nesta ordem de idéias, não há invenção, por absurda ou por extravagante que seja, que não tenha em nossa época alguma possibilidade de triunfar e de ser tomada a sério, dos delírios ocultistas sobre as «iniciações no astral» até o sistema americano, de intenções sobretudo «comerciais», das pretendidas «iniciações por correspondência»!

(7) É assim como, bastante recentemente, alguns quiseram tentar introduzir na Maçonaria, que é uma forma iniciática propriamente ocidental, elementos tomados a doutrinas orientais, dos que, aliás, não tinham mais que um conhecimento completamente exterior; encontrar-se-á um exemplo disso citado no Esoterismo de Dante Dêem, P. 20, ed. francesa.

Capítulo VI: Síntese e Sincretismo

Dizíamos há pouco que não só é inútil, mas também às vezes perigoso, mesclar elementos rituais pertencentes a formas tradicionais diferentes e que, além disso, isto não é verdade unicamente para o domínio iniciático ao qual o aplicamos aqui em primeiro lugar; efetivamente, a coisa é assim, na realidade, para todo o conjunto do domínio tradicional, e não acreditamos que careça de interesse considerar aqui esta questão em sua generalidade, embora isso possa parecer nos afastar um pouco das considerações que se referem mais diretamente à iniciação. Como a mescla da que se trata não representa mais que um caso particular do que se pode chamar propriamente «sincretismo», deveremos começar, sob este propósito, por precisar bem o que é necessário se entender por isso, tanto mais quanto que aqueles de nossos contemporâneos que pretendem estudar as doutrinas tradicionais sem penetrar de modo algum sua essência, e sobretudo aqueles que as consideram de um ponto de vista «histórico» e de pura erudição, têm freqüentemente uma fastidiosa tendência a confundir «síntese» e «sincretismo». Esta precisão se aplica, de uma maneira completamente geral, tanto ao estudo «profano» das doutrinas de ordem exotérica, quanto às de ordem esotérica; além disso, a distinção entre umas e outras raramente se faz aí como deveria sê-lo, e é assim como a suposta «ciência das religiões» trata uma multidão de coisas que não têm nada de «religiosas», como por exemplo, assim como já o indicávamos mais atrás, os mistérios iniciáticos da Antigüidade. Esta «ciência» afirma claramente seu caráter «profano», no pior sentido da palavra, ao propor como princípio que aquele que está fora de toda religião, e que, por conseguinte, não pode ter da religião (e diríamos, melhor, da tradição, sem especificar nenhuma modalidade particular da mesma) mais que um conhecimento completamente exterior, é o único qualificado para ocupar-se dela «cientificamente». A verdade é que, sob um pretexto de conhecimento desinteressado, dissimula-se uma intenção claramente anti-tradicional: trata-se de uma «crítica» destinada acima de tudo, no espírito de seus promotores, e menos conscientemente talvez naqueles que lhes seguem, a destruir toda tradição, posto que, expressamente, não querem ver nela mais que um conjunto de fatos psicológicos, sociais ou outros, mas em todo caso puramente humanos. Além disso, não insistiremos mais sobre isto, já que, além de que já tivemos bastante freqüentemente a ocasião de falar disso em outras partes, no presente não nos propomos mais que assinalar uma confusão que, embora muito característica dessa mentalidade especial, evidentemente pode existir também independentemente desta intenção anti-tradicional.

O «sincretismo», entendido em seu verdadeiro sentido, não é nada mais que uma simples justaposição de elementos de proveniências diversas, juntados «desde fora», por assim dizer, sem que nenhum princípio de ordem mais profunda venha a lhes unificar. É evidente que tal «ensambladura» não pode constituir realmente uma doutrina, como tampouco um montão de pedras constitui um edifício; e, se der às vezes a ilusão disso a quem não considera mais que levianamente, esta ilusão não poderia resistir a um exame que fora um pouco sério. Não há necessidade de ir muito longe para encontrar autênticos exemplos deste sincretismo: as modernas contrafações da tradição, como o ocultismo e o teosofismo, não são outra coisa no fundo (1): noções fragmentárias tomadas a diferentes formas tradicionais, e geralmente mal compreendidas e mais ou menos deformadas, encontram-se mescladas aí a concepções pertencentes à filosofia e à ciência profana. Há também teorias filosóficas formadas quase inteiramente de fragmentos de outras teorias, e aqui o sincretismo toma habitualmente o nome de «ecletismo»; mas este caso é em suma menos grave que o precedente, porque não se trata mais que de filosofia, quer dizer, de um pensamento profano que, ao menos, não procura fazer-se passar por outra coisa que o que é.

O sincretismo, em todos os casos, é sempre um procedimento essencialmente profano, por sua própria «exterioridade»; e não só não é uma síntese, mas sim, num certo sentido, é justamente o contrário. Efetivamente, a síntese, por definição, parte dos princípios, quer dizer, pelo que há mais interior; poder-se-ia dizer que vai do centro à circunferência, enquanto que o sincretismo fica na própria circunferência, na pura multiplicidade, de certo modo «atômica», e de detalhe indefinido de elementos tomados um a um, considerados em si mesmos e por si mesmos, e separados de seu princípio, quer dizer, de sua verdadeira razão de ser. Assim, o sincretismo tem um caráter completamente analítico, queira-o ou não; é certo que ninguém fala tão freqüentemente nem tão prazerosamente de síntese como alguns «sincretistas», mas isso não prova mais que uma coisa: que sentem que, se reconhecessem a natureza real de suas teorias compostas, confessariam por isso mesmo que não são os depositários de nenhuma tradição, e que o trabalho ao qual se livraram não difere em nada do que poderia fazer o primeiro «buscador» recém-chegado que juntasse, mal ou bem, as noções variadas que tivesse tirado dos livros.

Se esses têm um interesse evidente em fazer passar um sincretismo por uma síntese, o engano daqueles de quem falávamos no começo se produz geralmente em sentido inverso: quando se encontram em presença de uma verdadeira síntese, rara vez deixam de qualificá-la de sincretismo. A explicação de tal atitude é muito simples no fundo: ao ficar no ponto de vista mais estreitamente profano e mais exterior que se pode conceber, não têm nenhuma consciência do que é de uma ordem diferente e, como não querem ou não podem admitir que algumas coisas se lhes escapam, procuram naturalmente reduzir tudo aos procedimentos que estão ao alcance de sua própria compreensão. Imaginando-se que toda doutrina é unicamente a obra de um ou de vários indivíduos humanos, sem nenhuma intervenção de elementos superiores (já que é mister não esquecer que esse é o postulado fundamental de toda sua «ciência»), atribuem a esses indivíduos o que eles seriam capazes de fazer em parecido caso; e, além disso, não se precisa dizer que não se preocupam de maneira nenhuma em saber se a doutrina que estudam a seu modo é ou não é a expressão da verdade, já que tal questão, não sendo «histórica», nem sequer é suscitada. Inclusive, é duvidoso que se lhes tenha vindo alguma vez a idéia de que possa haver uma verdade de uma ordem diferente que a simples «verdade de fato», a única que pode ser objeto de erudição; quanto ao interesse que tal estudo pode apresentar para eles nessas condições, devemos confessar que, para nós, é completamente impossível nos darmos conta disso, tendo em vista que isso depende de uma mentalidade que nos é estranha.

Seja como for, o que é particularmente importante destacar, é que a falsa concepção que quer ver sincretismo nas doutrinas tradicionais tem como conseqüência direta e inevitável o que se pode chamar a teoria das «apropriações»: quando se constata a existência de elementos similares em duas formas tradicionais diferentes, apressam-se a supor que uma delas deve havê-los tirado da outra. Bem entendido, nisso não se trata da origem comum das tradições, nem de sua filiação autêntica, com a transmissão regular e as adaptações sucessivas que ela implica; tudo isso, ao escapar inteiramente aos meios de investigação de que dispõe o historiador profano, não existe literalmente para ele. Quer falar unicamente de apropriações no sentido mais grosseiro da palavra, de uma espécie de cópia ou de plágio de uma tradição por outra com a qual tenha entrado em contato a conseqüência de circunstâncias completamente contingentes, de uma incorporação acidental de elementos desvinculados, que não respondem a nenhuma razão profunda (2); e é isso, efetivamente, o que implica a definição mesma do sincretismo. Além disso, ninguém se pergunta se é normal que uma mesma verdade receba expressões mais ou menos semelhantes ou ao menos comparáveis entre elas, independentemente de toda apropriação, e não podem perguntar-lhe posto que, como o dizíamos faz um momento, resolveu-se ignorar a existência desta verdade como tal. Por outra parte, esta última explicação seria insuficiente sem a noção da unidade tradicional primitiva, mas ao menos representaria certo aspecto da realidade; adicionaremos que não deve ser confundida de maneira nenhuma com outra teoria, não menos profana que a das «apropriações», embora de outro gênero, e que tem por objeto o que se conveio chamar a «unidade do espírito humano», entendendo-o num sentido exclusivamente psicológico, onde, de fato, não existe tal unidade, e implicando, aí também, que toda doutrina não é mais que um simples produto desse «espírito humano», de sorte que este «psicologismo» não considera em maior medida a questão da verdade doutrinal do que o faz o «historicismo» dos partidários da explicação sincrética (3).

Assinalaremos também que a mesma idéia do sincretismo e das «apropriações», aplicada mais especialmente às Escrituras tradicionais, dá nascimento à busca de «fontes» hipotéticas, assim como à hipótese das «interpolações», que é, como se sabe, um dos maiores recursos da «crítica» em sua obra destrutiva, cuja única meta real é a negação de toda inspiração «supra-humana». Isto se vincula estreitamente à intenção anti-tradicional que indicávamos no começo; e o que é mister reter sobretudo aqui é a incompatibilidade de toda explicação «humanista» com o espírito tradicional, incompatibilidade que, no fundo, é, além de tudo, evidente, posto que não ter em conta o elemento «não humano» é desconhecer propriamente o que é a essência mesma da tradição, aquilo sem o qual já não há nada que mereça levar este nome. Por outra parte, basta recordar, para refutar a concepção sincretista, que toda doutrina tradicional tem necessariamente como centro e como ponto de partida o conhecimento dos princípios metafísicos, e que tudo o que comporta além disso, a título mais ou menos secundário, não é em definitivo mais que a aplicação desses princípios em diferentes domínios; isso equivale a dizer que é essencialmente sintética, e, segundo o que explicamos mais atrás, a síntese, por sua natureza mesma, exclui todo sincretismo.

Pode-se ir mais longe: se é impossível que haja sincretismo nas próprias doutrinas tradicionais, é igualmente impossível que o haja entre aqueles que as compreenderam verdadeiramente e que, por isso mesmo, compreenderam forçosamente também a vaidade de tal procedimento, assim como a [vaidade] de todos os outros que são próprios do pensamento profano; e não têm [aqueles que as compreenderam], além disso, nenhuma necessidade de recorrer a eles. Tudo o que está realmente inspirado pelo conhecimento tradicional procede sempre «do interior» e não «do exterior»; qualquer pessoa que tenha consciência da unidade essencial de todas as tradições pode, para expor e interpretar a doutrina, ter a seu dispor, segundo os casos, meios de expressão provenientes de formas tradicionais diversas, se estima que haja nisso alguma vantagem; mas nisso não haverá nunca nada que possa ser semelhante, de perto ou de longe, a um sincretismo qualquer ou ao «método comparativo» dos eruditos.

Notas:

1) Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXVI.

2) Como exemplo de aplicação desta maneira de ver as coisas que dependem do domínio esotérico e iniciático, podemos citar a teoria que quer ver no taçawwuf islâmico uma apropriação feita a a Índia, sob pretexto de que métodos similares se encontram em uma e outra parte; evidentemente, os orientalistas que sustentam esta teoria jamais tiveram a idéia de perguntar se esses métodos não eram impostos, igualmente nos dois casos, pela natureza mesma das coisas, o que, não obstante, parece que deveria ser bastante fácil de compreender, ao menos para quem não tem nenhuma idéia preconcebida.

3) Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XIII.

Capítulo VII: Contra a Mescla das Formas Tradicionais

Como já dissemos em outra parte (1), segundo a tradição hindu, há duas maneiras opostas, uma inferior e a outra superior, de estar fora das castas: pode-se ser «sem casta» (avarna), no sentido «privativo», quer dizer, abaixo delas; e se pode ser «além das castas» (ativarna) ou acima delas, embora este segundo caso seja incomparavelmente mais raro que o primeiro, sobretudo nas condições da época atual (2). De uma maneira análoga, pode-se estar também aquém ou além das formas tradicionais: o homem «sem religião», por exemplo, tal como se encontra correntemente no mundo ocidental moderno, está incontestavelmente no primeiro caso; o segundo, pelo contrário, aplica-se exclusivamente àqueles que tomaram efetivamente consciência da unidade e da identidade fundamentais de todas as tradições; e, aqui também, este segundo caso apenas pode ser, atualmente, muito excepcional. Aliás, ter-se-á que compreender bem que, ao falar de consciência efetiva, queremos dizer que as noções simplesmente teóricas sobre esta unidade e esta identidade, embora estejam já certamente muito longe de ser desdenháveis, são completamente insuficientes para que alguém possa estimar ter ultrapassado a etapa onde é necessário aderir-se a uma forma determinada e ater-se estritamente a ela. Isto, bem entendido, não significa que aquele que está neste caso não deva esforçar-se ao mesmo tempo em compreender as outras formas tão completa e tão profundamente como é possível, mas sim apenas que, virtualmente, não deve fazer uso dos meios rituais ou outros pertencentes em propriedade a várias formas diferentes, o que, como o dizíamos logo acima, não só seria inútil e vão, mas também -inclusive- prejudicial e perigoso sob diversos aspectos (3).

As formas tradicionais podem ser comparadas a vias que vão todas a uma mesma meta (4), mas que, enquanto via, por isso não são menos distintas; é evidente que não podem seguir-se várias de uma vez, e que, quando alguém se comprometeu com uma delas, convém segui-la até o final sem apartar-se dela, já que querer passar de uma a outra seria o melhor meio de não avançar, na realidade, e também, inclusive, de correr o risco de se extraviar completamente. Somente aquele que chegou ao término que, por isso mesmo, domina todas as vias, e isso porque já não tem que as seguir; desta forma, se houver lugar para isso, poderá praticar indistintamente todas as formas, mas precisamente porque as ultrapassou e porque, para ele, estão unificadas adiante, em seu princípio comum. Além disso, geralmente, continuará então exteriormente em uma forma definida, embora não fora mais que a título de «exemplo» para os que lhe rodeiam e que não chegaram ao mesmo ponto que ele; mas, se algumas circunstâncias particulares vierem a exigi-lo, poderá assim participar de outras formas, posto que, desde o ponto onde ele está, já não há entre elas nenhuma diferença. Aliás, desde que essas formas estão unificadas para ele, de modo algum poderia haver nisso mescla ou confusão qualquer, o que supõe necessariamente a existência da diversidade como tal; e, ainda uma vez mais, trata-se só daquele que está efetivamente além desta diversidade: para ele, as formas já não têm o caráter de vias ou de meios, dos quais já não tem necessidade, e já não subsistem a não ser enquanto que expressões da Verdade una, expressões das quais é completamente legítimo servir-se segundo as circunstâncias, como é falar em diferentes línguas para fazer-se compreender por aqueles a quem alguém se dirige (5).

Em suma, entre este caso e o de uma mescla ilegítima das formas tradicionais, há toda a diferença que indicamos como sendo, de uma maneira geral, a da síntese e do sincretismo e é por isso que era necessário, a este respeito, precisar bem esta primeiro. Com efeito, aquele que considera todas as formas na unidade mesma de seu princípio, como acabamos de dizê-lo, tem delas por isso mesmo uma visão essencialmente sintética, no sentido mais rigoroso da palavra; só pode colocar-se no interior de todas igualmente, e inclusive, deveríamos dizer, no ponto que é para todas o mais interior, posto que é verdadeiramente seu centro comum. Para retomar a comparação que empregamos faz um momento, todas as vias, partindo de pontos diferentes, vão aproximando-se cada vez mais, mas permanecendo sempre diferentes, até que desembocam nesse centro único (6); mas, vista do próprio centro , já são apenas, na realidade outros tantos raios que emanam dele e pelos quais ele está em relação com os múltiplos pontos da circunferência (7). Estes dois sentidos, inverso um do outro, segundo os quais as mesmas vias podem ser consideradas, correspondem muito exatamente ao que são os pontos de vista respectivos de quem está «a caminho» para o centro e de que chegou a ele, e cujos estados, precisamente, são freqüentemente descritos assim, no simbolismo tradicional, como os do «viajante» e do «sedentário». Este último é comparável também a aquele que, estando no cume de uma montanha, vê igualmente, e sem ter que deslocar-se, suas diferentes vertentes, enquanto que aquele que escala essa mesma montanha, não vê dela senão a parte mais próxima a ele; é muito evidente que só a visão que tem dela o primeiro é a única que pode chamar-se sintética.

Por outra parte, aquele que não está no centro está sempre forçosamente em uma posição mais ou menos «exterior», inclusive com respeito a sua própria forma tradicional, e com maior razão ainda em relação às outras; por conseguinte, se quiser, por exemplo, cumprir ritos pertencentes a várias formas diferentes, pretendendo utilizar concorrentemente uns e outros como meios ou «suportes» de seu desenvolvimento espiritual, realmente não poderá associá-los assim a não ser «de fora», o que equivale a dizer que o que fará não será outra coisa que sincretismo, posto que este consiste justamente em tal mescla de elementos díspares aos que nada unifica verdadeiramente. Tudo o que dissemos contra o sincretismo em geral vale pois, neste caso particular, e inclusive, poder-se-ia dizer, com alguns agravantes: com efeito, enquanto que não se trate mais do que de teorias, o sincretismo ritual pode, embora seja perfeitamente insignificante e ilusório e embora não represente mais que um esforço dispensado em pura perda, ser ao menos ainda relativamente inofensivo; mas aqui, pelo contato direto que está comprometido com realidades de uma ordem mais profunda, corre o risco de arrastar, a aquele que atua assim, a uma separação ou a uma detenção desse desenvolvimento interior para o que, ao contrário, ele acreditava, bem equivocadamente, procurar-se com isso maiores facilidades. Tal caso é bastante comparável ao de alguém que, sob o pretexto de obter mais certamente uma cura, empregará de uma vez vários medicamentos, cujos efeitos não fizessem outra coisa que neutralizar-se e destruir-se, e que pudessem inclusive, às vezes, ter entre eles reações imprevistas e mais ou menos perigosas para o organismo; há coisas das quais cada uma é eficaz quando alguém se serve delas separadamente, mas que por isso não são menos radicalmente incompatíveis.

Isto nos leva a levar em conta ainda outro ponto: é que, além da razão propriamente doutrinal que se opõe à validade de toda mescla das formas tradicionais, há uma consideração que, embora seja de uma ordem mais contingente, mesmo assim não é menos importante do ponto de vista que se pode chamar «técnico». Desta forma, caso alguém se encontre nas condições requeridas para cumprir ritos que dependem de várias formas, de tal maneira que uns e outros tenham efeitos reais, o que implica naturalmente que tenha ao menos alguns laços efetivos com cada uma das formas, poderá ocorrer, e inclusive ocorrerá quase indevidamente na maioria dos casos, que esses ritos farão entrar em ação não só influências espirituais, mas também, e inclusive em primeiro lugar, influências psíquicas que, ao não se harmonizarem entre si, chocarão e provocarão um estado de desordem e de desequilíbrio que afetará mais ou menos gravemente aquele que as tenha suscitado imprudentemente; concebe-se sem esforço que tal perigo é daqueles aos quais não convém expor-se irrefletidamente. Além disso, o choque das influências psíquicas deverá ser temido mais particularmente, por uma parte, como conseqüência do emprego dos ritos mais exteriores, quer dizer, daqueles que pertencem ao lado exotérico das diferentes tradições, posto que é evidentemente sob este aspecto, sobretudo, como estas se apresentam como exclusivas umas das outras, sendo a divergência das vias tanto maior quanto mais longe do centro se consideram; e, por outra parte, embora isso possa parecer paradoxal a quem não reflita sobre isso suficientemente, a oposição é então tanto mais violenta quantos mais caracteres comuns tenham as tradições consideradas, como, por exemplo, no caso daquelas que revestem exotericamente a forma religiosa propriamente dita, já que coisas que são muito diferentes, não entram em conflito entre elas senão dificilmente, devido ao fato desta própria diferença; neste domínio, como em todo outro, não pode haver luta a não ser sob a condição de se colocar sobre o mesmo terreno. Não insistiremos mais sobre isto, mas há que se desejar que, ao menos esta advertência, seja suficiente para aqueles que poderiam estar tentados de operar tais meios discordantes; que não esqueçam que o domínio espiritual é o único onde a gente está ao abrigo de todo alcance, porque as próprias oposições já não têm aí nenhum sentido, e que, enquanto que o domínio psíquico não está completa e definitivamente transbordado, as piores desventuras permanecem sempre possíveis, e, talvez deveríamos dizê-lo, sobretudo para aqueles que fazem muito resolutamente profissão de não acreditar nelas.

Notas:

1) Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. IX.

2) Segundo o que indicamos em uma nota precedente, este era, ao contrário, o caso normal para os homens da época primitiva.

3) Isto deve permitir compreender melhor o que dizíamos mais atrás da «jurisdição» das organizações iniciáticas que dependem de uma forma tradicional determinada: posto que a iniciação, no sentido estrito, obtida pela vinculação a tal organização, é propriamente um «começo»; é evidente que aquele que a recebe está ainda muito longe de poder estar efetivamente além das formas tradicionais.

4) Para ser completamente exato, convirá adicionar aqui: a condição de que sejam completas, quer dizer, de que suportem não só a parte exotérica, mas também a parte esotérica e iniciática; aliás, a coisa é sempre assim em princípio, mas, de fato, pode ocorrer que, por uma sorte de degeneração, esta segunda parte esteja esquecida e, de certa forma, perdida.

5) É precisamente isso o que significa na realidade, do ponto de vista iniciático, o que se chama o «dom de línguas», sobre o qual voltaremos de novo mais adiante.

6) No caso de uma forma tradicional devinda e incompleta, como o explicávamos mais atrás, poder-se-ia dizer que a via se encontra interrompida em certo ponto antes de alcançar o centro, ou, talvez, mais exatamente ainda, que é impraticável de fato a partir desse ponto, que marca o passado do domínio exotérico ao domínio esotérico.

7) Entenda-se bem que, desde este ponto de vista central, as vias que, como tais, não são viáveis até o final, assim como acabamos de dizê-lo na nota precedente, não constituem de modo algum uma exceção.

Capítulo VIII: Da Transmissão Iniciática

Dissemos precedentemente que a iniciação propriamente dita consiste essencialmente na transmissão de uma influência espiritual, transmissão que apenas se pode efetuar por meio de uma organização tradicional regular, de tal sorte que não se poderia falar de iniciação fora da vinculação a uma organização dessas. Precisamos que a «regularidade» devia ser entendida excluindo todas as organizações pseudo-iniciáticas, quer dizer, todas aquelas que, quaisquer que sejam suas pretensões e de qualquer aparência que se revistam, não sejam efetivamente depositárias de nenhuma influência espiritual e, por conseqüência, não podem transmitir nada na realidade. Depois disso, é fácil compreender a importância capital que todas as tradições dão ao que se designa como a «cadeia» (1) iniciática , quer dizer, a uma sucessão que assegura de uma maneira ininterrupta a transmissão de que se trata; fora desta sucessão, efetivamente, a própria observação das formas rituais seria vã, já que faltaria o elemento vital essencial para sua eficácia.

Voltaremos depois, mais especialmente, sobre a questão dos ritos iniciáticos, mas devemos responder a partir de agora a uma objeção que se pode apresentar aqui: esses ritos, dir-se-á, não têm por si mesmos uma eficácia que lhes é inerente? Sim a têm, efetivamente, posto que, se não forem observados, ou se são alterados em algum de seus elementos essenciais, não se poderá obter nenhum resultado efetivo; mas, se essa for uma condição necessária, não obstante não é suficiente, e é mister além disso, para que estes ritos tenham seu efeito, que sejam cumpridos por aqueles que têm qualidade para cumpri-los. Além do mais, isto não é, de nenhum modo, particular aos ritos iniciáticos, mas sim se aplica também aos ritos de ordem exotérica, como por exemplo aos ritos religiosos, que têm igualmente sua eficácia própria, mas que tampouco podem ser cumpridos validamente por não importa quem; assim, se um rito religioso requerer uma ordenação sacerdotal, aquele que não recebeu esta ordenação, por mais que observe todas as formas e contribuindo inclusive com a intenção requerida (2) , não obterá nenhum resultado, porque não é portador da influência espiritual que deve operar tomando estas formas rituais como suporte (3).

Inclusive em ritos de uma ordem muito inferior e que não concernem mais que a aplicações tradicionais secundárias, como os ritos de ordem mágica, por exemplo, ritos nos quais intervém uma influência que já não tem nada de espiritual, mas que é simplesmente psíquica (entendendo por isso, no sentido mais geral, o que pertence ao domínio dos elementos sutis da individualidade humana e do que lhe corresponde na ordem «macrocósmico»), a produção de um efeito real está condicionada, em muitos dos casos, por uma transmissão; e a mais vulgar bruxaria dos campos proporcionaria a este respeito numerosos exemplos (4). Além disso, não vamos insistir sobre este último ponto, que está fora de nosso tema; indicamo-lo somente para fazer compreender melhor que, com maior razão, uma transmissão regular é indispensável para permitir cumprir validamente os ritos que implicam a ação de uma influência de ordem superior, que pode se chamar propriamente «não-humana», o que é ao mesmo tempo o caso dos ritos iniciáticos e o dos ritos religiosos.

Efetivamente, esse é o ponto essencial, e nos é necessário ainda insistir um pouco sobre ele: já dissemos que a constituição das organizações iniciáticas regulares não está à disposição de simples iniciativas individuais, e se pode dizer o mesmo no que concerne às organizações religiosas, porque num e noutro caso, é necessário a presença de algo que não poderia vir dos indivíduos, posto que está mais à frente do domínio das possibilidades humanas. Além do mais, podem-se reunir estes dois casos dizendo que se trata aqui, de fato, de todo o conjunto das organizações que podem ser qualificadas verdadeiramente de tradicionais; compreender-se-á após, sem que haja sequer necessidade de fazer intervir outras considerações, porque nos negamos, assim como o dissemos em várias ocasiões, a aplicar o nome de tradição a coisas que são apenas puramente humanas, como o faz abusivamente a linguagem profana; a este respeito, não será inútil destacar que esta palavra mesma de «tradição», em seu sentido original, não expressa nada mais que a idéia de transmissão que consideramos agora e, além disso, essa é uma questão sobre a qual teremos que voltar um pouco mais adiante.

Agora, para mais comodidade, poder-se-iam dividir as organizações tradicionais em «exotéricas» e «esotéricas», embora estes dois termos, acaso se queira entendê-los em seu sentido mais preciso, não se aplicam possivelmente por toda parte com uma exatidão igual; mas, para o que temos atualmente em vista, bastar-nos-á entender por «exotéricas» as organizações que, numa certa forma de civilização, estão abertas a todos indistintamente, e por «esotéricas» aquelas que estão reservadas a uma elite ou, em outros termos, onde são admitidos apenas aqueles que possuem uma «qualificação» particular. Estas últimas são propriamente as organizações iniciáticas; quanto às outras, não só compreendem as organizações especificamente religiosas, mas também, como se vê nas civilizações orientais, organizações sociais que não têm esse caráter religioso, embora estejam vinculadas igualmente a um princípio de ordem superior, o que é em todos os casos a condição indispensável para que possam ser reconhecidas como tradicionais. Além disso, como não vamos considerar aqui as organizações exotéricas em si mesmas, senão só para comparar seu caso ao das organizações esotéricas ou iniciáticas, podemos nos limitar à consideração das organizações religiosas, porque são as únicas desta ordem que são conhecidas no ocidente, e porque assim o que se referir a elas será mais imediatamente compreensível.
Assim, diremos isto: toda religião, no verdadeiro sentido desta palavra, tem uma origem «não humana» e está organizada para conservar o depósito de um elemento igualmente «não humano» que tem dessa origem; este elemento, que é da ordem do que chamamos as influências espirituais, exerce sua ação efetiva pela mediação de ritos apropriados, e o cumprimento desses ritos, para ser válido, quer dizer, para proporcionar um suporte real à influência de que se trata, requer uma transmissão direta e ininterrupta no seio da organização religiosa. Se isto é assim na ordem simplesmente exotérica (e entenda-se bem que o que dizemos não se dirige aos «críticos» negadores aos quais fizemos alusão precedentemente, que pretendem reduzir a religião a um «fato humano», e cuja opinião não vamos tomar em consideração, como tampouco tudo o que procede igualmente dos preconceitos anti-tradicionais), com maior razão deverá ser o mesmo numa ordem mais elevada, quer dizer, na ordem esotérica. Os termos dos quais acabamos de nos servir são muito amplos para serem aplicados também aqui sem nenhuma mudança, substituindo unicamente a palavra «religião» por «iniciação»; toda a diferença recairá sobre a natureza das influências espirituais que entram em jogo (já que terá que fazer ainda muitas distinções neste domínio, no qual compreendemos, em suma, tudo o que se refere às possibilidades da ordem supra-individual), e sobretudo sobre as finalidades respectivas da ação que exercem num e noutro caso.

Se, para nos fazer compreender melhor ainda, referimo-nos mais particularmente ao caso do cristianismo na ordem religiosa, poderemos adicionar isto: os ritos de iniciação, que têm como incumbência imediata a transmissão da influência espiritual de um indivíduo a outro que, em princípio ao menos, poderá transmiti-la depois por sua vez, são exatamente comparáveis sob este aspecto aos ritos de ordenação (5); e se pode destacar inclusive que uns e outros são similarmente suscetíveis de comportar vários graus, posto que a plenitude da influência espiritual não se comunica forçosamente de uma só vez com todas as prerrogativas que implica, especialmente no que concerne à aptidão efetiva para exercer tais ou quais funções na organização tradicional (6) . Agora, sabe-se que importância tem, para as igrejas cristãs, a questão da «sucessão apostólica», e isso se compreende sem esforço, posto que, se esta sucessão viesse a ser interrompida, nenhuma ordenação poderia já ser válida e, por conseguinte, a maior parte dos ritos já não seriam senão vãs formalidades sem alcance efetivo (7) . Aqueles que admitem muito injustamente a necessidade de tal condição na ordem religiosa não deveriam ter a menor dificuldade para compreender que ela não se impõe menos rigorosamente na ordem iniciática ou, em outros termos, que uma transmissão regular, que constitui a «cadeia» da qual falávamos mais atrás, é aqui também estritamente indispensável.

Dizíamos faz um momento que a iniciação deve ter uma origem «não humana», já que, sem isso, não poderia alcançar de maneira nenhuma sua meta final, que transcende o domínio das possibilidades individuais; é por isso pelo que os verdadeiros ritos iniciáticos, como o indicamos precedentemente, não podem ser referidos a autores humanos e, de fato, nunca são conhecidos tais autores (8) , como tampouco se conhecem inventores dos símbolos tradicionais, e pela mesma razão, já que os símbolos são igualmente «não humanos» em sua origem e em sua essência (9); e, além disso, entre os ritos e os símbolos, há uns laços muito estreitos que examinaremos mais tarde. Com todo rigor, pode-se dizer que, em casos como esses, não há origem «histórica», posto que a origem real se situa em um mundo ao qual não se aplicam as condições de tempo e de lugar, que definem os fatos históricos como tais; e é por isso pelo que estas coisas escaparão sempre indevidamente aos métodos de investigação profanos, que, de certo modo por definição, não podem dar resultados relativamente válidos mais que na ordem puramente humana (10).
Em tais condições, é fácil compreender que o papel do indivíduo que confere a iniciação a outro é verdadeiramente um papel de «transmissor», no sentido mais exato desta palavra; ele não atua como indivíduo, mas sim como suporte de uma influência que não pertence à ordem individual; ele é unicamente um elo da «cadeia» cujo ponto de partida está fora e além da humanidade. É por isso que não pode atuar em seu próprio nome, mas sim em nome da organização à qual está vinculado e da qual tem seus poderes ou, mais exatamente ainda, em nome do princípio que esta organização representa visivelmente. Além do mais, isso explica que a eficácia do rito completo por um indivíduo seja independente do valor próprio desse indivíduo como tal, o que é verdade igualmente para os ritos religiosos; e não o entendemos no sentido «moral», o que, evidentemente, não teria nenhuma importância em uma questão que é na realidade de ordem exclusivamente «técnica», mas sim no sentido de que, inclusive se o indivíduo considerado não possui o grau de conhecimento necessário para compreender o sentido profundo do rito e a razão essencial de seus diversos elementos, esse rito não terá por isso minorado seu efeito pleno se, estando regularmente investido da função de «transmissor», cumpre-lhe observando todas as regras prescritas, e com uma intenção que baste para determinar a consciência de sua vinculação à organização tradicional. Daí deriva imediatamente a conseqüência de que, inclusive uma organização onde não se encontrassem já em certo momento mais que o que chamamos iniciados «virtuais» (e voltaremos de novo sobre isto depois) por isso não seguirá sendo menos capaz de continuar transmitindo realmente a influência espiritual de que é depositária; para isso basta que a «cadeia» não esteja interrompida; e, a este respeito, a fábula bem conhecida do «asno que leva relíquias» é suscetível de uma significação iniciática digna de ser meditada (11).

Pelo contrário, o conhecimento completo de um rito, se tiver sido obtido fora das condições regulares, está inteiramente desprovido de todo valor efetivo; para tomar um exemplo simples (posto que o rito se reduz aí essencialmente à pronúncia de uma palavra ou uma fórmula), é assim como, na tradição hindu, o mantra que foi aprendido de outro modo que da boca de um guru autorizado não tem nenhum efeito, porque não está «vivificado» pela presença da influência espiritual à qual está destinado unicamente como veículo (12) . Além do mais, isto se estende num grau ou noutro, a tudo aquilo no que está vinculada uma influência espiritual: assim, o estudo dos textos sagrados de uma tradição, feito nos livros, nunca poderá suprir a sua comunicação direta; e é por isso que, ali mesmo onde os ensinos tradicionais já foram mais ou menos completamente postos por escrito, nem por isso deixam de continuar sendo menos regularmente o objeto de uma transmissão oral, que, ao mesmo tempo em que é indispensável para lhes dar seu pleno efeito (desde que já não se trata de ficar num conhecimento simplesmente teórico), assegura a perpetuação da «cadeia» à qual está ligada a própria vida da tradição. De outro modo, já não se trataria mais que de uma tradição morta, à qual já não é possível nenhuma vinculação efetiva; e, se o conhecimento do que fica de uma tradição pode ter ainda certo interesse teórico (bem entendido, fora do ponto de vista da simples erudição profana, cujo valor aqui é nulo, e enquanto for suscetível de ajudar à compreensão de algumas verdades doutrinais), esse conhecimento não poderia ser de nenhum benefício direto em vista de uma «realização» qualquer (13).

Em tudo isto, trata-se da comunicação de algo tão «vital» que, na Índia, nenhum discípulo jamais pode sentar-se frente ao guru, e isso a fim de evitar que a ação do prâna que está ligado ao sopro e à voz, ao exercer-se muito diretamente, produza um choque muito violento e que, por conseguinte, poderia não estar isento de perigo, psíquica e fisicamente, inclusive (14). Efetivamente, esta ação é tão mais poderosa quanto que o próprio prana, em parecido caso, não é mais que o veículo ou o suporte sutil da influência espiritual que se transmite do guru ao discípulo; e o guru, em sua função própria, não deve ser considerado como uma individualidade (posto que esta desaparece então verdadeiramente, salvo enquanto simples suporte), mas sim unicamente como o representante da tradição mesma, e que ele encarna de certo modo em relação a seu discípulo, o que constitui muito exatamente essa função de «transmissor» da qual falávamos mais atrás.

Notas:

(1) A palavra «cadeia» é o que traduz o hebraico shelsheletk, o árabe silsilah, e também, o sânscrito paramparâ, que expressa essencialmente a idéia de uma sucessão regular e ininterrupta.

(2) Formulamos expressamente aqui esta condição da intenção para precisar bem que os ritos não poderiam ser um objeto de «experiências» no sentido profano desta palavra; aquele que queira cumprir um rito, de qualquer ordem que seja além disso, por simples curiosidade ou por experimentar seu efeito, poderá estar bem seguro de antemão de que esse efeito será nulo.

(3) Os ritos mesmos que não requerem especialmente tal ordenação tampouco podem ser cumpridos por todo mundo indistintamente, já que a adesão expressa à forma tradicional à qual pertencem, é, em todos os casos, uma condição indispensável de sua eficácia.

(4)Por conseguinte, esta condição da transmissão se encontra até nas separações da tradição ou em seus vestígios degenerados, e inclusive também, devemos acrescentar, na subversão propriamente dita que é o fato do que chamamos de «contra-iniciação». — Cf. a este respeito O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXIV e XXXVIII.

(5) Dizemos «sob este aspecto», já que, desde outro ponto de vista, a primeira iniciação, enquanto «segundo nascimento», seria comparável ao rito do batismo; não se precisará dizer que as correspondências que se podem considerar entre coisas pertencentes a ordens tão diferentes devem ser forçosamente bastante complexas e não se deixam reduzir a uma espécie de esquema unilinear.

(6) Dizemos «aptidão efetiva» para precisar que aqui se trata de algo mais que da «qualificação» prévia, que pode ser designada também como uma aptidão; assim, poder-se-á dizer que um indivíduo é apto para o exercício das funções sacerdotais se não tiver nenhum dos impedimentos que obstaculizem o acesso a elas, mas não será mais efetivamente apto para tal ainda que receba a ordenação de fato. Destacamos também, a este propósito, que a ordenação é o único sacramento para o qual se exigem «qualificações» particulares, no qual é comparável também à iniciação, a condição, bem entendido, de ter sempre em conta a diferença essencial dos dois domínios exotérico e esotérico.

(7) De fato, as igrejas protestantes que não admitem as funções sacerdotais suprimiram quase todos os ritos, ou não os guardaram mais que a título de simples simulacros «comemorativos»; e, dada a constituição própria da tradição cristã, não podem efetivamente ser nada mais em parecido caso. Sabe-se por outra parte a que discussões dá lugar a questão da «sucessão apostólica» no que concerne à legitimidade da igreja anglicana; e é curioso notar que os próprios teosofistas, quando quiseram constituir sua igreja «livre-católica», procuraram acima de tudo lhe assegurar o benefício de uma «sucessão apostólica» regular.

(8) Algumas atribuições a personagens legendários, ou mais exatamente simbólicos, não poderiam considerar-se de maneira nenhuma como tendo um caráter «histórico», mas sim, ao contrário, confirmam plenamente o que dissemos aqui.

(9) As organizações esotéricas islâmicas se transmitem um sinal de reconhecimento que, segundo a tradição, foi comunicado ao Profeta pelo próprio arcanjo Gabriel; não se poderia indicar mais claramente a origem «não humana» da iniciação.

(10) Observamos a este propósito onde os que, com intenções «apologéticas», insistem sobre o que eles chamam, com um termo, além do mais, bastante bárbaro, de «historicidade» de uma religião, até o ponto de ver nisso algo completamente essencial e inclusive de lhe subordinar às vezes as considerações doutrinais (enquanto que, ao contrário, os fatos históricos mesmos não valem verdadeiramente senão enquanto puderem ser tomados como símbolos de realidades espirituais) cometem um grave engano em detrimento da «transcendência» dessa religião. Um engano tal, que, além de tudo, dá testemunho de uma concepção fortemente «materializada» e da incapacidade de se elevar a uma ordem superior, pode ser considerado como uma perniciosa concessão ao ponto de vista «humanista», quer dizer, individualista e anti-tradicional, que caracteriza propriamente o espírito ocidental moderno.

(11) A este propósito, é digno de destacar que as relíquias são precisamente um veículo de influências espirituais; nisso reside a verdadeira razão do culto de que são objeto, inclusive se esta razão não é sempre consciente nos representantes das religiões exotéricas, que às vezes parecem não se darem conta do caráter muito «positivo» das forças que dirigem, o que, além de tudo, não impede a estas forças atuarem efetivamente, inclusive sem que eles saibam, embora talvez com menos amplitude do que se estivessem melhor dirigidas «tecnicamente».

(12) Assinalaremos por alto, a propósito desta «vivificação», caso se possa dizer assim, que a consagração dos templos, das imagens e dos objetos rituais tem como encargo essencial fazer deles o receptáculo efetivo das influências espirituais, sem a presença das quais, os ritos aos quais devem servir estariam desprovidos de eficácia.

(13) Isto completa e precisa também o que dizíamos mais atrás da vaidade de uma pretendida vinculação «ideal» às formas de uma tradição desaparecida.

(14) Essa é também a explicação da disposição especial das cadeiras em uma loja maçônica, explicação que a maior parte dos maçons atuais estão certamente muito longe de suspeitar.