A vinculação a uma organização tradicional regular, dissemos, não é somente uma condição necessária da iniciação, mas também, inclusive, o que constitui a iniciação no sentido mais estrito, tal como a define a etimologia da palavra que a designa, e é o que se representa por toda parte como um «segundo nascimento», ou como uma «regeneração». «Segundo nascimento», porque abre ao ser um mundo diferente daquele onde se exerce a atividade de sua modalidade corporal, mundo que será para ele o campo de desenvolvimento de possibilidades de uma ordem superior; «regeneração», porque assim restabelece a este ser a prerrogativas que eram naturais e normais nas primeiras idades da humanidade, quando esta ainda não se afastara da espiritualidade original para afundar-se cada vez mais na materialidade, como devia fazê-lo no curso das épocas ulteriores, e porque deve lhe conduzir, como primeira etapa essencial de sua realização, à restauração nele do «estado primitivo», que é a plenitude e a perfeição da individualidade humana, e que reside no ponto central, único e invariável, de onde o ser poderá elevar-se depois para os estados superiores.
É-nos mister insistir ainda a este respeito sobre um ponto capital: a vinculação de que se trata deve ser real e efetiva, e que uma suposta vinculação «ideal», tal como alguns se agradaram às vezes em considerá-la em nossa época, é inteiramente vã e de efeito nulo (1). Isso é fácil de compreender, posto que se trata propriamente da transmissão de uma influência espiritual, que deve se efetuar segundo leis definidas; e essas leis, embora sejam evidentemente diferentes daquelas que regem as forças do mundo corporal, não são por isso menos rigorosas, e apresentam inclusive com estas últimas, apesar das diferenças profundas que as separam, uma certa analogia, em virtude da continuidade e da correspondência que existem entre todos os estados, ou graus, da Existência universal. Esta analogia é a que nos permitiu, por exemplo, falar de «vibração» a propósito do Fiat Lux, pelo qual é iluminado e ordenado o caos das potencialidades espirituais, embora não se trate de modo algum de uma vibração de ordem sensível como as que estudam os físicos, como tampouco a «luz» da que se fala pode ser identificada com a que é apreendida pela faculdade visual do organismo corporal (2); mas estas maneiras de falar, embora sejam necessariamente simbólicas, posto que estão fundadas sobre uma analogia ou sobre uma correspondência, por isso não são menos legítimas nem estão menos justificadas, já que esta analogia e esta correspondência existem muito realmente na própria natureza das coisas e vão inclusive, em um certo sentido, muito mais longe do que se poderia supor (3). Teremos que voltar de novo, mais amplamente, sobre estas considerações quando falarmos dos ritos iniciáticos e de sua eficácia; no momento, basta-nos reter que nisso há leis que é mister forçosamente ter em conta, sendo que a falta disso o resultado apontado não poderia ser alcançado, da mesma maneira que um efeito físico não pode ser obtido se algo não se coloca nas condições requeridas em virtude das leis às quais está submetida sua produção; e, desde que se trata de operar efetivamente uma transmissão, isso implica manifestamente um contato real, qualquer que sejam as modalidades pelas quais possa ser estabelecido, modalidades que estarão determinadas naturalmente por essas leis de ação das influências espirituais às quais acabamos de fazer alusão.
Desta necessidade de um vinculação efetivo resultam imediatamente várias conseqüências extremamente importantes, seja no que concerne ao indivíduo que aspira à iniciação, seja no que concerne às próprias organizações iniciáticas; e são essas conseqüências as que nos propomos examinar agora. Sabemos que há pessoas, e muitas inclusive, a quem estas considerações parecerão muito pouco agradáveis, seja porque perturbarão a idéia muito cômoda e «simplista» que formaram da iniciação, seja porque destruirão algumas pretensões injustificadas e algumas asserções mais ou menos interessadas, mas desprovidas de toda autoridade; mas estas são coisas nas quais não poderíamos nos deter por pouco que seja, posto que não temos e não podemos ter, aqui como sempre, nenhuma outra preocupação que a da verdade.
Primeiro, no que concerne ao indivíduo, é evidente que, segundo o que acaba de ser dito, sua intenção de ser iniciado, inclusive admitindo que seja verdadeiramente para ele a intenção de vincular-se a uma tradição da qual pode ter algum conhecimento «exterior», não poderia bastar de maneira nenhuma por si mesma para lhe assegurar a iniciação real (4) . De fato, nisto não se trata de «erudição», que, como tudo o que depende do saber profano, aqui não tem nenhum valor; e não se trata tampouco de sonho ou de imaginação, como tampouco de quaisquer aspirações sentimentais. Se, para poder chamar-se iniciado, bastasse lendo livros, embora sejam as Escrituras sagradas de uma tradição ortodoxa, acompanhadas inclusive, caso se queira, de seus comentários mais profundamente esotéricos, ou pensando mais ou menos vagamente em alguma organização passada, ou presente, à qual alguém atribui complacentemente, e tão mais facilmente quanto pior conhecida seja, seu próprio «ideal» (esta palavra que se emprega em nossos dias para qualquer propósito, e que, significando tudo o que se quer, no fundo, não significa nada), seria verdadeiramente muito fácil; e a questão prévia da «qualificação» se encontraria por isso mesmo inteiramente suprimida, já que cada um, ao ser levado naturalmente a estimar-se «bem e devidamente qualificado», e ao ser assim, ao mesmo tempo, juiz e parte em sua própria causa, descobriria certamente sem esforço excelentes razões (excelentes ao menos a seus próprios olhos e segundo as idéias particulares que se forjou) para se considerar como iniciado sem mais formalidades, e já não vemos sequer por que teria que deter-se em tão boa via, e teria que vacilar em se atribuir de uma vez só os graus mais transcendentes. Aqueles que se imaginam que alguém «se inicia» a si mesmo, como o dizíamos precedentemente, refletiram alguma vez nessas conseqüências mais irritantes que implica sua afirmação? Nessas condições, não mais seleção nem controle, não mais «meios de reconhecimento», no sentido em que já empregamos esta expressão, não mais hierarquia possível, e, bem entendido, não mais transmissão de nada; em uma palavra, não mais nada do que caracteriza essencialmente a iniciação e do que a constitui de fato; e entretanto isso é o que alguns, com uma surpreendente inconsciência, ousam apresentar como uma concepção «modernizada» da iniciação (bem modernizada, de fato, e certamente bem digna dos «ideais» laicos, democráticos e igualitários), sem suspeitar sequer que, em lugar de haver ao menos iniciados virtuais, o que depois de tudo é ainda algo, assim já não haveria mais que simples profanos que se dariam indevidamente por iniciados.
Mas deixemos estas divagações, que podem parecer desdenháveis; se acreditamos dever falar um pouco sobre isso, é porque a incompreensão e a desordem intelectual que caracterizam desafortunadamente a nossa época permitem propagar-se com uma deplorável facilidade. O que é mister compreender bem é que, desde de que se fale de iniciação, tratam-se exclusivamente de coisas sérias e de realidades «positivas», diríamos de boa vontade se os «cientificistas» profanos não tivessem abusado tanto desta palavra; que se aceitem estas coisas tais como são, ou que já não se fale absolutamente de iniciação; não vemos nenhum termo médio possível entre estas duas atitudes, e valeria mais renunciar francamente a toda iniciação que dar seu nome ao que não seria mais que uma vã paródia, sem falar sequer das aparências exteriores que procuram proteger também a algumas outras imposturas das quais teremos que falar em seguida.
Para voltar de novo para o que foi o ponto de partida desta digressão, diremos que é mister que o indivíduo tenha não só a intenção de ser iniciado, mas também seja «aceito» por uma organização tradicional regular, que tenha qualidade para lhe conferir a iniciação (5), quer dizer, para lhe transmitir a influência espiritual sem cujo concurso, apesar de todos seus esforços, seria-lhe impossível chegar a se liberar das limitações e das travas do mundo profano. Pode acontecer que, em razão de sua falta de «qualificação», sua intenção, por sincera que possa ser, não encontre nenhuma resposta, já que a questão não é essa, e em tudo isto não se trata em modo algum de «moral», mas sim unicamente de regras «técnicas» que se referem a leis «positivas» (repetimos esta palavra a falta de encontrar outra mais adequada para isso), e que se impõem com uma necessidade tão inelutável como se impõem, em outra ordem, as condições físicas e mentais indispensáveis para o exercício de algumas profissões.
Em caso parecido, jamais poderá considerar-se como iniciado, sejam quais forem os conhecimentos teóricos que chegue a adquirir em outras partes; e, além do mais, terá que supor que, inclusive sob este aspecto, nunca irá muito longe (falamos naturalmente de uma compreensão verdadeira, embora ainda exterior, e não da simples erudição, quer dizer, de uma acumulação de noções que chama apenas pela memória, tal como acontece no ensino profano), já que o conhecimento teórico mesmo, para ultrapassar um certo grau, supõe já normalmente a «qualificação» requerida para se obter a iniciação que lhe permitirá transformar-se, pela «realização» interior, em conhecimento efetivo, e assim a ninguém poderia se impedir de desenvolver as possibilidades que leva verdadeiramente em si mesmo; em definitivo, não são descartados mais que aqueles que se iludem por sua própria conta, acreditando poder obter algo que, na realidade, encontra-se como incompatível com sua natureza individual.
Passando agora ao outro lado da questão, quer dizer, ao que se refere às organizações iniciática mesmas, diremos isto: é muito evidente que não se pode transmitir mais que aquilo que se possui; por conseguinte, é mister necessariamente que uma organização seja efetivamente depositária de uma influência espiritual para poder comunicá-la aos indivíduos que se vinculam a ela; e isto exclui imediatamente todas as formações pseudo-iniciáticas, tão numerosas em nossa época, e desprovidas de todo caráter autenticamente tradicional. De fato, nestas condições uma organização iniciática não poderia ser o produto de uma fantasia individual; não pode estar fundada, à maneira de uma associação profana, sobre a iniciativa de algumas pessoas que decidem reunir-se adotando umas formas quaisquer; e, inclusive se essas formas não são inventadas completamente, mas sim tiradas de ritos realmente tradicionais dos quais seus fundadores tenham tido algum conhecimento por «erudição», por isso não serão mais válidas, já que, a falta de filiação regular, a transmissão da influência espiritual é impossível e inexistente, de sorte que, em semelhante caso, não se trataria mais que de uma vulgar falsificação da iniciação.
Com maior razão é assim quando não se trata mais que de reconstituições puramente hipotéticas, por não dizer imaginárias, de formas tradicionais desaparecidas de um tempo mais ou menos remoto, como as do antigo o Egito ou as da Caldéia, por exemplo; e, inclusive se houvesse no emprego de tais formas uma vontade séria de vincular-se à tradição a qual pertenceram, não seriam, por causa disso, mais eficazes, já que alguém só pode se vincular, na realidade, a algo que tem uma existência atual, e ainda é mister para tal, como o dizíamos no que concerne aos indivíduos, ser «aceito» pelos representantes autorizados da tradição referente, de tal sorte que uma organização aparentemente nova só poderá ser legítima se for como um prolongamento de uma organização lhe preexista, de maneira que mantenha, sem nenhuma interrupção, a continuidade da «cadeia» iniciática.
Em tudo isto, só fazemos, em suma, apenas expressar em outros termos e mais explicitamente o que já dissemos logo acima sobre a necessidade de uma vinculação efetiva e direta e sobre a vaidade de uma vinculação «ideal»; e, a este respeito, é mister não se deixar enganar pelas denominações que se atribuem algumas organizações, denominações às quais não têm nenhum direito, mas com as quais tentam dar uma aparência de autenticidade. Assim, para retomar um exemplo que já citamos em outras ocasiões, existe uma multidão de agrupamentos, de origem muito recente, que se intitulam «rosacrucianos», sem ter tido jamais o menor contato com os Rosa-Cruzes, bem entendido, ainda que por alguma via indireta e desviada, e sem sequer saber o que estes foram na realidade, posto que são representados quase invariavelmente como tendo constituído uma «sociedade», o que é um engano grosseiro e também especificamente moderno. Freqüentemente, é mister não ver aí mais que a necessidade de se adornar com um título impressionante ou a vontade de se impor aos ingênuos; mas, inclusive, em se considerando o caso mais favorável, quer dizer, ao se admitir que a constituição de alguns desses agrupamentos procede de um desejo sincero de vincular-se «idealmente» aos Rosa-Cruzes, isso não será ainda, sob o ponto de vista iniciático, mais que puro nada. Além disso, o que dizemos sobre este exemplo particular se aplica igualmente a todas as organizações inventadas pelos ocultistas e demais «neo-espiritualistas» de todo gênero e de todas denominações, organizações que, sejam quais sejam suas pretensões, não podem, em toda verdade, ser qualificadas mais que de «pseudo-iniciáticas», já que não têm absolutamente nada real que transmitir, e já que o que apresentam não é mais que uma contrafação, e inclusive, muito freqüentemente, uma paródia ou uma caricatura da iniciação (6).
Adicionamos ainda, como outra conseqüência do precedente, que, ainda que se trate de uma organização autenticamente iniciática, seus membros não têm o poder de trocar suas formas a seu gosto ou de as alterar no que têm de essencial; isso não exclui algumas possibilidades de adaptação às circunstâncias, que, aliás, impõem-se aos indivíduos antes que derivadas de sua vontade, mas que, em todo caso, estão limitadas pela condição de não atentar contra os meios pelos quais são asseguradas a conservação e a transmissão da influência espiritual da qual é depositária a organização considerada; se esta condição não fosse observada, resultaria disso uma verdadeira ruptura com a tradição, o que faria com que esta organização perdesse sua «regularidade». Além disso, uma organização iniciática não pode incorporar validamente a seus ritos elementos tomados de formas tradicionais diferentes daquela segundo a qual está constituída regularmente (7); tais elementos, cuja adoção teria um caráter completamente artificial, não representariam mais que simples fantasias redundantes, sem nenhuma eficácia do ponto de vista iniciático, e que, por conseguinte, não adicionariam absolutamente nada real, senão que, melhor dizendo, sua presença só poderia ser inclusive, em razão de sua heterogeneidade, uma causa de perturbação e de desarmonia; aliás, o perigo de tais mesclas está longe de estar limitado unicamente ao domínio iniciático, e se trata de um ponto bastante importante para merecer ser tratado à parte. As leis que presidem o manejo das influências espirituais são algo muito complexo e muito delicado como para que aqueles que não têm disso um conhecimento suficiente possam permitir-se impunemente contribuir com modificações mais ou menos arbitrárias a formas rituais nas quais tudo tem sua razão de ser, e cujo alcance exato corre muito risco de se lhes escapar.
O que resulta claramente de tudo isso, é a nulidade das iniciativas individuais quanto à constituição das organizações iniciáticas, seja no que concerne a sua prórpia origem, seja sob a relação das formas que revestem; e se pode destacar a propósito disto que, de fato, não existem formas rituais tradicionais às quais se lhes possa atribuir como autores indivíduos determinados. É fácil compreender que isso seja assim, ao se refletir que a meta essencial e final da iniciação ultrapassa o domínio da individualidade e de suas possibilidades particulares, o que seria impossível se para isso se estivesse reduzido a meios de ordem puramente humano; assim, desta simples consideração, e sem ir sequer ao fundo das coisas, pode-se concluir imediatamente que é mister a presença de um elemento «não-humano», e tal é, de fato, o caráter da influência espiritual cuja transmissão constitui a iniciação propriamente dita.