Guenon estudade René Guénon
Título original “Aperçus sur L’Initiation"
Éditions Traditionnelles, Paris - 1946
Tradução de Igor Silva, abril / maio de 2006.

"Considerações sobre a Iniciação"
Capítulos I, II, III e IV

Capítulo I: Via Iniciática e Via Mística

A confusão entre o domínio esotérico e iniciático e o domínio místico, ou, em se preferindo, entre os pontos de vista que respectivamente lhes correspondem, é uma das que mais freqüentemente se cometem hoje em dia, e tal acontece, parece-nos, de uma maneira nem sempre completamente desinteressada; há aqui, em suma, uma atitude nova, ou que, ao menos em certos ambientes, generalizou-se muito nos últimos anos, e desta forma se nos parece necessário começar explicando claramente sobre este ponto. Está agora na moda, se tal pode ser dito, o qualificar de “místicas” às doutrinas orientais, inclusive aquelas onde não há sequer a sombra de uma aparência exterior que pudesse, naqueles que não vêem além, dar lugar a uma qualificação semelhante; a origem desta falsa interpretação é naturalmente imputável a certos orientalistas, que desta forma podem não ter sido induzidos, em princípio, por uma segunda intenção claramente definida, mas tão somente por sua incompreensão e por um preconceito mais ou menos inconsciente, que lhes é habitual, ao pensar só desde pontos de vista ocidentais (1) . Mas logo chegam outros, que se apropriam desta assimilação abusiva, e que, vendo o proveito que poderiam tirar para seus próprios fins, esforçam-se em propagar a idéia fora desse mundo especial, e em resumidas contas bastante restrito, dos orientalistas e de sua clientela; e isto é mais grave, não apenas porque é, antes de tudo, por esse motivo que esta confusão se difunde cada vez mais, mas também porque não é difícil observar os sinais inequívocos de uma tentativa “anexionista” contra a qual é preciso proteger-se. De fato, aqueles aos quais aludimos são os que podem ser considerados como os negadores mais “sérios” do esoterismo; queremos nos referir com isso aos exoteristas religiosos, que se negam a admitir algo além de seu próprio domínio, mas que consideram, sem dúvida, esta assimilação ou esta “anexação” mais hábil que uma negação brutal; e, vendo de que maneira alguns deles se esforçam em transformar em “misticismo” as doutrinas mais claramente iniciáticas, realmente pareceria que este trabalho reveste a seus olhos um caráter particularmente urgente (2) . Para falar a verdade, haveria, não obstante no mesmo domínio religioso ao qual pertence o misticismo, algo que, em certos aspectos, poder-se-ia prestar a uma aproximação ou, melhor dizendo, a uma aparência de aproximação: é o que se designa com o termo “ascética”, pois reveste aqui ao menos um método “ativo”, em lugar da ausência de método e da “passividade” que caracterizam o misticismo e sobre os quais temos que voltar mais adiante (3) ; mas não há dúvida de que estas semelhanças são completamente exteriores e, por outra parte, esta “ascética” tem possivelmente apenas objetivos visivelmente limitados para poder ser vantajosamente utilizada desta forma, enquanto que, com o misticismo, não se sabe jamais exatamente aonde se chega, e esta imprecisão é com segurança propícia às confusões. Apenas aqueles que se entregam a este trabalho deliberadamente, e não quem lhes segue mais ou menos inconscientemente, não parecem duvidar de que, em tudo o que se refere à iniciação, não há na realidade nada de vago nem de nebuloso, mas, pelo contrário, elementos precisos e “positivos”; e, de fato, a iniciação é, por sua própria natureza, incompatível com o misticismo.

Esta incompatibilidade não resulta, por outra, do que originalmente concerne o termo “misticismo”, que está inclusive manifestamente aparentado com a antiga designação dos “mistérios”, ou seja, com algo pertencente, pelo contrário, à ordem iniciática; mas este termo é daqueles pelos quais, longe de se poder referir unicamente à etimologia, está-se rigorosamente obrigado, se alguém quer se fazer compreender, a ter em conta o sentido que lhe foi imposto pelo uso, e que é, de fato, o único ao qual atualmente lhe vincula. Então, é sabido o que se entende por “misticismo”, há já vários séculos, de maneira que não é possível empregar este termo para designar algo distinto; e é isto o que, como dissemos, não tem e não pode ter nada em comum com a iniciação, em primeiro lugar porque este misticismo compete exclusivamente ao domínio religioso, quer dizer, exotérico, e depois porque a via mística difere da via iniciática em todos seus caracteres essenciais, e esta diferença é tal que dela se deriva uma verdadeira incompatibilidade. Observemos, além disso, que se trata mais de uma incompatibilidade de fato do que de princípio, no sentido em que não se busca absolutamente negar o valor, ainda que relativo, do misticismo, nem pôr em dúvida o lugar que legitimamente lhe pertence em certas formas tradicionais; a via iniciática e a via mística podem perfeitamente coexistir (4), mas o que queremos indicar é que é impossível que alguém siga ambas ao mesmo tempo, inclusive sem julgar de antemão o fim ao qual podem conduzir, embora que de qualquer forma se possa já pressentir, em razão da profunda diferença entre os domínios aos quais se referem, que este fim não poderia ser na realidade o mesmo.

Dissemos que a confusão que faz com que alguns vejam misticismo onde não há o menor traço disso, tem seu ponto de partida na tendência de tudo reduzir aos pontos de vistas ocidentais; e é que, de fato, o misticismo propriamente dito é exclusivamente ocidental e, no fundo, especificamente cristão. Por este motivo, vamos aproveitar a ocasião para indicar algo que nos parece o bastante curioso como para o mencionarmos aqui: em um livro do qual já falamos em outro luga (5)r , o filósofo Bergson, opondo o que chama de “religião estática” à “religião dinâmica”, vê a mais alta expressão desta última no misticismo, que entretanto quase não compreende, e ao qual admira especialmente por tudo aquilo que nós poderíamos, pelo contrário, encontrar de vago e inclusive, sob certos aspectos, de defeituoso; mas o que pode parecer realmente estranho por parte de um “não cristão” é que, para ele, o “misticismo completo”, por pouco satisfatória que seja a idéia que de fato se faz, não é mais que o dos místicos cristãos. Para falar a verdade, por uma conseqüência necessária da pouca estima que ele sente pela “religião estática”, esquece que aqueles são cristãos antes inclusive de serem místicos, ou ao menos, para lhes justificar o serem cristãos, situa indevidamente o misticismo na própria origem do Cristianismo; e, para estabelecer a neste sentido uma espécie de continuidade entre este e o Judaísmo, chega a transformar em “místicos” os profetas judeus; evidentemente, do caráter da missão dos profetas e da natureza de sua inspiração não tem a menor idéia (6) . Seja como for, se o misticismo cristão, por deformada ou minguada que seja sua concepção, é a seus olhos o próprio tipo do misticismo, a razão disso é, no fundo, bem fácil de compreender: é que, de fato e estritamente falando, quase não existe outro misticismo que este; e inclusive os místicos que se chamaram “independentes”, e que de bom grau qualificaríamos de “aberrantes”, inspiram-se na realidade, devido a sua ignorância, apenas em idéias cristãs desnaturalizadas e mais ou menos inteiramente vazias de seu conteúdo original. Porém isto também, como tantas outras coisas, escapa a nosso filósofo, que se esforça em descobrir, anteriormente ao Cristianismo, os “esboços do futuro misticismo”, quando se trata de coisas totalmente diferentes; há aqui particularmente, sobre a Índia, algumas páginas que testemunham uma incompreensão inaudita. Também as há sobre os mistérios gregos, e aqui a aproximação, fundada sobre o parentesco etimológico que assinalávamos, reduz-se em suma a um mau trocadilho; de qualquer forma, Bergson se vê obrigado a reconhecer que “a maior parte dos mistérios não tinha nada de místico”; mas então, por que fala deles sob este vocábulo? Quanto ao que foram os mistérios, faz deles a representação mais “profana” possível; ignorando tudo a respeito da iniciação, como poderia compreender que havia ali, tanto como na Índia, algo que em primeiro lugar não era absolutamente de ordem religiosa, e que ia incomparavelmente mais longe que seu “misticismo”, e inclusive, é preciso dizê-lo, que o autêntico misticismo, que ao manter-se no domínio puramente exotérico tem forçosamente suas limitações? (7)

Não nos propomos atualmente expor em detalhe, e de forma completa, todas as diferenças que separam na realidade os pontos de vista iniciático e místico, pois para isso seria necessário um volume todo; nossa intenção é, sobretudo, insistir aqui sobre a diferença em virtude da qual a iniciação, em seu próprio processo, apresenta caracteres totalmente distintos daqueles do misticismo, inclusive opostos, o que basta para demonstrar que há aqui duas “vias” não somente diferentes, mas também incompatíveis no sentido que indicamos. O que freqüentemente se diz a este respeito é que o misticismo é “passivo”, enquanto que a iniciação é “ativa”; isto é, de toda forma, muito verdadeiro, sob a condição de determinar exatamente a acepção em que deve ser entendido. Isto significa principalmente que, no caso do misticismo, o indivíduo se limita simplesmente a receber o que se lhe apresenta, e tal como se lhe apresenta, sem que ele mesmo atue para nada; e, digamo-lo a seguir, nisto reside para ele o principal perigo, no fato de que esteja assim “aberto” a todas as influências, sejam da ordem que sejam, e que, desta forma, em geral e salvo raras exceções, não tem a preparação doutrinal que seria necessária para lhe permitir estabelecer entre elas uma discriminação qualquer (8). No caso da iniciação, pelo contrário, é ao indivíduo a quem corresponde a iniciativa de uma “realização” que perseguirá metodicamente, sob um controle rigoroso e incessante, e que deverá levá-lo normalmente a superar as possibilidades próprias do indivíduo como tal; é indispensável acrescentar que esta iniciativa não é suficiente, pois é muito evidente que o indivíduo não poderia superar-se a si Mesmo por seus próprios meios, mas, e isto é o que nos importa no momento, é ela o que constitui obrigatoriamente o ponto de partida de toda “realização” para o iniciado, enquanto que o místico não tem nenhuma, inclusive para o que não vai absolutamente além do domínio das possibilidades individuais. Esta distinção pode já parecer bastante clara, já que demonstra bem que não poderiam ser seguidas ao mesmo tempo as vias iniciática e mística, porém, não obstante, esta não poderia ser suficiente; poderíamos inclusive dizer que apenas responde ao aspecto mais “exotérico” da questão, e, em todo caso, é muito incompleta no que concerne à iniciação, da qual está bem longe de incluir todas as condições necessárias; mas, antes de abordar o estudo destas condições, ficam ainda algumas confusões por dissipar.

Notas:

1) É assim como, especialmente depois de que ao orientalista inglês Nicholson lhe ocorresse traduzir taçawwuf por misticismo, conveio-se no Ocidente que o esoterismo islâmico é algo essencialmente “místico”; ou inclusive, neste caso, não se fala de esoterismo, mas tão somente de misticismo, quer dizer, que se chegou a uma verdadeira substituição de pontos de vista. O melhor do caso é que, nas questões desta ordem, a opinião dos orientalistas, que apenas conhecem pelos livros, conta significativamente muito mais, aos olhos da imensa maioria dos ocidentais, que a opinião dos que têm um conhecimento direto e efetivo.

2) Outros se esforçam também em transformar as doutrinas orientais em "filosofia", mas esta falsa assimilação é possivelmente, no fundo, menos perigosa que a outra, em razão da estreita limitação do próprio ponto de vista filosófico; estes somente conseguem, pela maneira especial em que apresentam ditas doutrinas, apenas fazer algo totalmente desprovido de interesse, e o que se desprende de seus trabalhos é, sobretudo, uma prodigiosa impressão de "aborrecimento".

3) Podemos citar, como exemplo de "ascética", os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, cujo espírito é, incontestavelmente, tão pouco místico quanto é possível, e para os quais é ao menos verossímil que se inspirou, em parte, em certos métodos iniciáticos de origem islâmica, mas, é obvio, aplicando-os a um objetivo completamente diferente.

4)Poderia ser interessante a este respeito fazer uma comparação com a "via seca" e a "via úmida" dos alquimistas, mas isto sairia dos limites do presente estudo.

5) As duas fontes da moral e da religião. Ver este respeito O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos, cap. XXXIII.

6) De fato, não se pode encontrar misticismo judeu propriamente dito até o Hassidismo, quer dizer, numa época muito recente.

7) Alfred Loisy quis responder a Bergson e sustentar contra ele que não há uma só "origem" da moral e da religião; em sua qualidade de especialista da "história das religiões", prefere as teorias do Frazer às de Durkheim, e a idéia de uma "evolução" contínua à de uma "evolução" por mutações bruscas; a nossos olhos, ambas são equivalentes; mas há ao menos um ponto sobre o qual devemos lhe dar a razão, e possivelmente se deva a sua educação eclesiástica: graças a ela conhece os místicos muito melhor que Bergson, e assinala que jamais tiveram o menor pingo de algo que se parecesse, até de longe, ao "elán vital"; evidentemente, Bergson quis fazer "bergsonianos" "avant la lettre", o que não está muito de acordo com a simples verdade histórica; e Loisy se assombra também com razão ao ver Joana D’Arc incluída entre os místicos. Assinalemos de passagem, pois é bom indicá-lo, que seu livro começa com uma engenhosa confissão: "O autor do presente opúsculo declara que não tem uma particular inclinação pelas questões de ordem puramente especulativa". Eis aqui ao menos uma muito louvável franqueza; e, já que é ele mesmo quem o diz, e de maneira totalmente espontânea, acreditam sem dificuldade suas palavras.

8) É também esse caráter de “passividade” o que explica, não os justificando absolutamente, os enganos modernos que tendem a confundir aos místicos, seja com os médiuns e outros sensitivos, no sentido que os psiquistas dão a esta palavra, seja inclusive com simples doentes

Capítulo II: Magia e Misticismo

A confusão da iniciação com o misticismo se deve sobretudo ao fato daqueles que, por razões quaisquer, querem negar mais ou menos expressamente a realidade da própria iniciação reduzindo-a a algo diferente; por outro lado, nos meios que têm, ao contrário, pretensões iniciáticas injustificadas, como os meios ocultistas, tem-se a tendência de considerar como formando parte integrante do domínio da iniciação, inclusive a constituindo essencialmente, uma multidão de coisas de outro gênero que, elas também, são-lhe completamente estranhas, e entre as quais a magia ocupa o mais freqüentemente o primeiro lugar. As razões deste equívoco são também, ao mesmo tempo, as razões pelas quais a magia apresenta perigos especialmente graves para os ocidentais modernos, o primeiro dos quais é sua tendência a atribuir uma importância excessiva a tudo o que são «fenômenos», como dá testemunho disso por toda parte o desenvolvimento que deram às ciências experimentais; se são seduzidos tão facilmente pela magia e, iludindo-se até tal ponto sobre seu alcance real, é porque a magia é também uma ciência experimental, embora bastante diferente, certamente, daquelas que o ensino universitário conhece sob esta denominação. Assim, é mister não se enganar a seu respeito: nisso se trata de uma ordem de coisas que não tem em si mesma absolutamente nada de «transcendente»; e, se uma ciência como tal pode ser legitimada, como toda outra, por sua vinculação aos princípios superiores dos quais tudo depende, segundo a concepção geral das ciências tradicionais, não obstante, ela não se colocará então mais que na última fila das aplicações secundárias e contingentes, entre aquelas que estão mais afastadas dos princípios e que, por conseguinte, devem ser consideradas como as mais inferiores de todas. É assim como a magia é considerada em todas as civilizações orientais: que existe nelas, é um fato que não há motivo para dúvida, mas está muito longe de ser tida em tanta honra como se imaginam muito freqüentemente os ocidentais, que emprestam tão prazerosamente a outros suas próprias tendências e suas próprias concepções. No próprio Tibete, tanto quanto na Índia ou na China, a prática da magia, enquanto «especialidade», caso se possa dizer assim, é abandonada àqueles que são incapazes de se elevarem a uma ordem superior; isto, bem entendido, não quer dizer que outros não possam produzir também, às vezes, excepcionalmente e por razões particulares, fenômenos exteriormente semelhantes aos fenômenos mágicos, mas o propósito e, inclusive, os meios postos em obra são então completamente diferentes na realidade. Além disso, para se ater ao que se conhece no próprio mundo ocidental, somente se deverá tomar histórias de Santos e de bruxos, e ver quantos feitos similares se encontram por uma parte e pela outra; e isso mostra bem que, contrariamente à crença dos modernos «cientificistas», os fenômenos, quaisquer que sejam, não poderiam provar absolutamente nada por si mesmos. (1)

Agora, é evidente que o fato de se iludir sobre o valor destas coisas, e sobre a importância que convém lhes atribuir, aumenta grandemente seu perigo; o que é particularmente penoso para os ocidentais que querem se meter a «fazer magia», é a ignorância completa em que estão necessariamente, no estado atual das coisas e na ausência de todo ensino tradicional, daquilo com o que tratam em parecido caso. Inclusive deixando de lado os prestidigitadores e os enganadores, tão numerosos em nossa época, que não fazem em suma nada mais que explorar a credulidade dos ingênuos, e também os simples fantasiosos que acreditam poder improvisar uma «ciência» à sua maneira, aqueles mesmos que querem tentar seriamente estudar esses fenômenos, ao não terem dados suficientes para lhes guiar, nem organização constituída para lhes apoiar e lhes proteger, são reduzidos por isso a um empirismo muito grosseiro; atuam verdadeiramente como meninos que, liberados a si mesmos, querem dirigir forças temíveis sem conhecer nada delas e, se de semelhante imprudência resultam muito freqüentemente acidente deploráveis, certamente não há lugar para se surpreender muito com isso.

Ao falar aqui de acidentes, queremos fazer alusão sobretudo aos riscos de desequilíbrio aos quais se expõem aqueles que atuam assim; este desequilíbrio é efetivamente uma conseqüência muito freqüente da comunicação com o que alguns chamaram o «plano vital» e que não é suma outra coisa que o domínio da manifestação sutil, considerada, sobretudo, além do mais, naquelas de suas modalidades que estão mais próximas da ordem corporal, e por isso mesmo as mais facilmente acessíveis ao homem ordinário. A explicação disso é simples: nisso se trata exclusivamente de um desenvolvimento de algumas possibilidades individuais e, inclusive, de um ordem bastante inferior; se este desenvolvimento se produzir de uma maneira anormal, desordenada e inarmônica, e em detrimento de possibilidades superiores, é natural, e em certo modo inevitável, que deva desembocar em tal resultado, sem falar sequer das reações, que tampouco são desdenháveis e que às vezes são, inclusive, terríveis, das forças de todo gênero com as quais o indivíduo fica em contato tão inadvertidamente. Dizemos «forças», sem procurar precisar mais, já que isso importa pouco para o que nos propomos; preferimos aqui esta palavra, por vaga que seja, à de «entidades», que, ao menos para aqueles que não estão suficientemente habituados a algumas maneiras simbólicas de falar, corre o risco de dar lugar muito facilmente a «personificações» mais ou menos fantasiosas. Além disso, como já o explicamos freqüentemente, este «mundo intermediário» é muito mais complexo e mais extenso que o mundo corporal; mas, o estudo de um e do outro entra, sob o mesmo título, no que se pode chamar de «ciências naturais», no sentido mais verdadeiro desta expressão; querer ver nisso algo mais é, repetimo-lo, iludir-se da mais estranha maneira. Nisso não há absolutamente nada de «iniciático», como tampouco, além disso, de «religioso»; de uma maneira geral, encontram-se inclusive muitos mais obstáculos que apoios para chegar ao conhecimento verdadeiramente transcendente, que é muito diferente dessas ciências contingentes e que, sem nenhum rastro de um «fenomenismo» qualquer, não depende mais que da intuição intelectual pura, a única que é também a espiritualidade pura.

Alguns, depois de se dedicarem mais ou menos tempo a esta busca dos fenômenos extraordinários, ou supostos como tal, acabam não obstante por cansar-se dela, por uma razão qualquer, ou por estarem decepcionados ante a insignificância dos resultados que obtêm e que não respondem a sua expectativa e, coisa bastante digna de nota, ocorre freqüentemente que esses se voltam, então, para o misticismo (2); é que, por surpreendente que isso possa parecer à primeira vista, este responde também, embora sob uma forma diferente, a necessidades ou a aspirações similares. Certamente, estamos bem longe de responder que o misticismo tenha, em si mesmo, um caráter notavelmente mais elevado que a magia; mas, apesar de tudo, indo até o fundo das coisas, qualquer um pode se dar conta de que, sob certa relação ao menos, a diferença é menor do que se poderia acreditar: efetivamente, aí também, não se trata, em suma, mais que de «fenômenos», visões ou outros, manifestações sensíveis e sentimentais de todo gênero, com as quais sempre se permanece exclusivamente no domínio das possibilidades individuais (3). Quer dizer, que os perigos de ilusão e de desequilíbrio estão longe de terem sido transcendidos e, se revestirem aqui com formas bastante diferentes, talvez não sejam menores por isso; e, num sentido, estão inclusive agravados pela atitude passiva do místico que, como o dizíamos mais atrás, deixa a porta aberta a todas as influências que podem se apresentar, enquanto que o mago está pelo menos guarnecido, até certo ponto, pela atitude ativa que se esforça em conservar a respeito dessas mesmas influências, o que não quer dizer, certamente, que o obtenha sempre e que não acabe muito freqüentemente por ser submerso por elas. Daí vem também, por outra parte, que o místico, quase sempre, é muito facilmente enganado por sua imaginação, cujas produções, sem que o suspeite, vêm freqüentemente se mesclar aos resultados reais de suas «experiências» de uma maneira quase inextricável. Por esta razão, é necessário não exagerar a importância das «revelações» dos místicos ou, pelo menos, nunca devem ser aceitas sem controle (4); o que constitui todo o interesse de algumas visões, é que estão em acordo, sobre numerosos pontos, com dados tradicionais evidentemente ignorados pelo místico que teve essas visões (5); mas seria um engano, e inclusive uma inversão das relações normais, querer encontrar nisso uma «confirmação» desses dados que, por outra parte, não têm nenhuma necessidade disso e que são, pelo contrário, a única garantia de que há realmente nessas visões outra coisa que um simples produto da imaginação ou da fantasia individual.

Notas:

(1) Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXIX.

(2) É necessário dizer que também ocorreu às vezes que outros, depois de terem entrado realmente na via iniciática, e não só nas ilusões da pseudo-iniciação, como aqueles de quem falamos aqui, abandonaram esta via pelo misticismo; os motivos são então, naturalmente, bastante diferentes, e principalmente da ordem sentimental, mas, quaisquer que possam ser, é mister ver sobretudo, em parecidos casos, a conseqüência de um defeito qualquer sob a relação das qualificações iniciáticas, ao menos no que concerne à aptidão para realizar a iniciação efetiva; um dos exemplos mais típicos que se pode citar neste gênero é o do L. Cl. de Saint-Martin.

(3) Certamente, isso não quer dizer de modo algum que os fenômenos tratados sejam unicamente da ordem psicológica como pretendem alguns modernos.

(4) Além disso, esta atitude de reserva prudente, que se impõe em razão da tendência natural dos místicos à «divagação» no sentido próprio desta palavra, é a que o catolicismo observa invariavelmente a seu respeito.

(5) Podem-se citar aqui como exemplo as visões da Anne-Catherine Emmerich.

Capítulo III: Erros Diversos Concernentes à Iniciação

Para limpar o terreno de alguma maneira, não acreditamos supérfluo assinalar também, a partir de agora, alguns outros enganos concernentes à natureza e à meta da iniciação, já que tudo o que tivemos a ocasião de ler sobre este tema, durante muitos anos, contribuiu-nos quase diariamente com provas de uma incompreensão quase geral. Naturalmente, não podemos pensar em fazer aqui uma espécie de «registro» no qual manifestaríamos todos esses enganos, um a um e em detalhe, o que seria muito fastidioso e desprovido de interesse; será melhor nos limitarmos a considerar alguns casos de certo modo «típicos», o que, ao mesmo tempo, tem a vantagem de nos dispensar de fazer alusões muito diretas a tal autor ou a tal escola, posto que se deva entender bem que estas considerações têm para nós um alcance completamente independente de toda questão de «personalidades», como se diz usualmente, ou melhor, para falar em uma linguagem mais exata, de individualidades.

Recordaremos primeiro, sem insistir muito nisso, as concepções enormemente estendidas segundo as quais a iniciação seria algo de ordem simplesmente «moral» e «social» ; essas são muito limitadas e «terrestres», se assim pode ser expresso, e, como o dizemos freqüentemente com outros propósitos, o engano mais grosseiro está longe de ser sempre o mais perigoso. Para cortar toda confusão, diremos apenas que tais concepções não se aplicam realmente sequer a essa primeira parte da iniciação que a Antigüidade designava sob o nome de «mistérios menores»; estes, assim como o explicaremos mais adiante, concernem à individualidade humana, mas no desenvolvimento integral de suas possibilidades e, por conseguinte, além da modalidade corporal cuja atividade se exerce no domínio que é comum a todos os homens. Não vemos verdadeiramente qual poderia ser o valor ou inclusive a razão de ser de uma pretendida iniciação que se limitaria a repetir, disfarçando-o sob uma forma mais ou menos enigmática, o mais banal que há na educação profana, o que está mais vulgarmente «ao alcance de todo mundo». Desta forma, com isso não entendemos negar de modo algum que o conhecimento iniciático possa ter aplicações na ordem social, tanto como em não importa qual outra ordem; mas isso é outra questão: primeiro, essas aplicações contingentes não constituem de modo algum o fim da iniciação, como tampouco as ciências tradicionais secundárias constituem a essência de uma tradição; e depois, têm em si mesmos um caráter completamente diferente deste do qual acabamos de falar, já que partem de princípios que não têm nada que ver com preceitos de «moral» corrente, sobretudo quando se trata da muito famosa «moral laica», tão querida por tantos de nossos contemporâneos, e, além disso, procedem por vias inapreensíveis aos profanos, em virtude da natureza mesma das coisas; por conseguinte, está bastante longe do que alguém chamava um dia, em termos próprios, «a preocupação de viver convenientemente». Enquanto que alguém se limite a «moralizar» sobre os símbolos, com intenções tão louváveis quanto se queira, não se fará certamente obra de iniciação; mas voltaremos sobre isto mais adiante, quando teremos que falar mais particularmente do ensino iniciático.
Enganos mais sutis e, por conseguinte, mais temíveis, produzem-se às vezes quando se fala, a propósito da iniciação, de uma «comunicação» com estados superiores ou «mundos espirituais»; e, acima de tudo, nisso há freqüentemente a ilusão que consiste em tomar por «superior» o que não o é verdadeiramente, simplesmente porque aparece como mais ou menos extraordinário ou «anormal». Seria necessário, em suma, que repetíssemos aqui tudo o que já dissemos em outra parte sobre a confusão do psíquico e do espiritual , já que, a este respeito, é essa a que se comete mais freqüentemente; de fato, os estados psíquicos não têm nada de «superior» nem de «transcendente», posto que formem parte unicamente do estado individual humano ; e, quando falamos de estados superiores do ser, com isso entendemos, sem nenhum abuso de linguagem, os estados supra-individuais exclusivamente. Alguns vão inclusive ainda mais longe à confusão e fazem de «espiritual» quase sinônimo de «invisível», quer dizer, que tomam por tal, indistintamente, tudo o que não é perceptível aos sentidos ordinários e «normais»; vimos qualificar assim até o mundo «etérico», ou seja, simplesmente a parte menos grosseira do mundo corporal! Nestas condições, é muito temeroso que a «comunicação» aqui tratada se reduza definitivamente à «clarividência», a «clariaudiência», ou ao exercício de alguma outra faculdade psíquica do mesmo gênero e não menos insignificante, inclusive quando for real. Desta forma, isso é o que ocorre sempre de fato, e, no fundo, todas as escolas pseudo-iniciáticas do ocidente moderno estão mais ou menos aí; algumas, inclusive, colocam expressamente como meta o «desenvolvimento dos poderes psíquicos latentes no homem»; a seguir, ainda teremos que tornar de novo sobre esta questão dos pretendidos «poderes psíquicos» e das ilusões às quais dão lugar.

Mas isso não é tudo: admitamos que, no pensamento de alguns, trate-se verdadeiramente de uma comunicação com os estados superiores; isso estará ainda muito longe de bastar para caracterizar a iniciação. Com efeito, tal comunicação é estabelecida também pelos ritos de ordem puramente exotérica, concretamente pelos ritos religiosos; é necessário não esquecer que, neste caso igualmente, entram em jogo influências espirituais e não já simplesmente psíquicas, embora para fins completamente diferentes daqueles que se referem ao domínio iniciático. A intervenção de um elemento «não humano» pode definir, de uma maneira geral, tudo o que é autenticamente tradicional; mas a presença deste caractere comum não é uma razão suficiente para não sejam feitas, depois, as distinções necessárias, e em particular para confundir o domínio religioso e o domínio iniciático, ou para ver entre eles apenas uma simples diferença de grau, enquanto que há realmente uma diferença de natureza e, inclusive, podemos dizer, de natureza profunda. Esta confusão é muito freqüente também, sobretudo entre aqueles que pretendem estudar a iniciação «de fora», com intenções que, além do mais, podem ser muito diversas; assim, é indispensável denunciá-la formalmente: o esoterismo é essencialmente outra coisa que a religião, e não a parte «interior» de uma religião como tal, inclusive quando toma sua base e seu ponto de apoio nesta como ocorre em algumas formas tradicionais, no islamismo, por exemplo ; a iniciação não é tampouco uma espécie de religião especial reservada a uma minoria, como parecem imaginá-lo, por exemplo, aqueles que falam dos mistérios antigos qualificando-os de «religiosos» . Não nos é possível desenvolver aqui todas as diferenças que separam os dois domínios, religioso e iniciático, pois, ainda mais que quando se tratava apenas do domínio místico - que não é mais que uma parte do primeiro, isso nos levaria certamente muito longe; mas, para o que tratamos no momento, bastará precisar que a religião considera o ser unicamente no estado individual humano e não aponta de maneira nenhuma a saída dele, mas sim, pelo contrário, a garantia de condições mais favoráveis neste próprio estado , enquanto que a iniciação tem como meta essencialmente transcender as possibilidades deste estado e fazer efetivamente possível a passagem aos estados superiores, e inclusive, finalmente, conduzir o ser além de todo estado condicionado, qualquer que seja.

Disso resulta que, no concernente à iniciação, a simples comunicação com os estados superiores não pode ser considerada como um fim, mas tão somente como um ponto de partida: se esta comunicação deve ser estabelecida primeiro pela ação de uma influência espiritual, é para permitir depois tomar a posse efetiva desses estados, e não simplesmente, como na ordem religiosa, para fazer descender sobre o ser uma «graça» que o liga a eles de uma certa maneira, mas sem lhe fazer penetrar neles. Para expressá-lo de uma maneira que será talvez mais facilmente compreensível, diremos que se, por exemplo, alguém pode entrar em relação com os anjos, sem deixar por isso de estar encerrado em sua condição de indivíduo humano, por isso não estará mais avançado do ponto de vista iniciático ; aqui não se trata de comunicar com outros seres que estão em um estado «angélico», mas sim de alcançar e de realizar a própria pessoa tal estado supra-individual, não, bem entendido, enquanto indivíduo humano, o que seria evidentemente absurdo, excetuando que o ser que se manifesta como indivíduo humano em certo estado, tem também nele as possibilidades de todos outros estados. Por conseguinte, toda realização iniciática é essencial e puramente «interior», ao contrário dessa «saída de si» que constitui o «êxtase» no sentido próprio e etimológico desta palavra ; e essa não é certamente a única diferença, mas ao menos uma das grandes diferenças que existem entre os estados místicos, que pertencem inteiramente ao domínio religioso, e os estados iniciáticos. De fato, é a isso ao qual é necessário voltar sempre em definitivo, já que a confusão do ponto de vista iniciático com o ponto de vista místico, cujo caráter particularmente insidioso tivemos que sublinhar do começo, tem a natureza de confundir alguns espíritos que não se deixariam apanhar nas deformações mais grosseiras das pseudo-iniciações modernas, e que inclusive poderiam talvez chegar a compreender sem muita dificuldade o que é verdadeiramente a iniciação, se não encontrassem em seu caminho estes enganos sutis que bem parecem estar postos aí expressamente para lhes desviar de tal compreensão.

Notas:

1) Este ponto de vista é concretamente o da maioria dos maçons atuais, e, ao mesmo tempo, é também sobre o mesmo terreno exclusivamente «social» onde se colocam a maior parte daqueles que lhes combatem, o que prova também que as organizações iniciáticas não dão pé aos ataques do exterior a não ser na medida mesma de sua degeneração.

2) Cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XXXV.

3) Segundo a representação geométrica que expusemos no Simbolismo da Cruz, estas modalidades de um mesmo estado são simples extensões que se desenvolvem no sentido horizontal, quer dizer, num mesmo nível, e não no sentido vertical segundo o que se marca a hierarquia dos estados superiores e inferiores do ser.

4) É para marcar bem isto e para evitar todo equívoco pelo que convém dizer «esoterismo islâmico» ou «esoterismo cristão», e não, como fazem alguns, «islamismo esotérico» ou «cristianismo esotérico»; é fácil compreender que nisso há algo mais que um simples matiz.

5) Sabe-se que a expressão «religião de mistérios» é uma das que aparecem constantemente na terminologia especial adotada pelos «historiadores das religiões».

6) Bem entendido, aqui se trata do estado humano considerado em sua integralidade, que compreende a extensão indefinida de seus prolongamentos extra-corporais.

7) Por isso é possível ver quanto se iludem aqueles que, por exemplo, querem atribuir um valor propriamente iniciático a alguns escritos como os de Swendenborg.

8) Além do mais, não se precisará dizer que esta «saída de si» não tem absolutamente nada de comum com a pretendida «saída em astral», que tem um papel tão grande nos delírios ocultistas.

Capítulo IV: Das Condições da Iniciação

Podemos voltar agora à questão das condições da iniciação, e diremos primeiro, embora a coisa possa parecer evidente, que a primeira destas condições é certa aptidão ou disposição natural, sem a qual todo esforço permaneceria vão, já que o indivíduo não pode desenvolver evidentemente mais que as possibilidades que leva nele desde a origem; esta aptidão, que faz o que alguns chamam o «iniciável», constitui propriamente a «qualificação» requerida por todas as tradições iniciáticas (1). Além disso, esta condição é a única que, em certo sentido, é comum à iniciação e ao misticismo, já que está claro que o místico deve ter, ele também, uma aptidão especial, embora inteiramente diferente da do «iniciável» e, inclusive, por alguns lados, até oposta; mas esta condição, para o místico, se for igualmente necessária, é mais que suficiente; não há nenhuma outra que deva ser adicionada a ela, e as circunstâncias fazem todo o resto, fazendo passar a sua discrição, da «potência» ao «ato», tais ou quais das possibilidades que comporte a disposição de que se trate. Isto resulta diretamente desse caráter de «passividade» de que falamos mais atrás: efetivamente, em parecido caso, não poderia tratar-se de um esforço ou de um trabalho pessoal qualquer, que o místico nunca terá que efetuar, e do qual, inclusive, deverá guardar-se cuidadosamente, como de algo que estaria em oposição com sua «via» (2), enquanto que, ao contrário, no que respeita à iniciação, e em razão de seu caráter «ativo», tal trabalho constitui outra condição não menos estritamente necessária que a primeira, e sem a qual a passagem da «potência» ao «ato», que é propriamente a «realização», não poderia cumprir-se de maneira nenhuma .(3)

Entretanto, isso não é ainda tudo: não fizemos, em suma, mais que desenvolver a distinção, exposta por nós ao começo, da «atividade» iniciática e da «passividade» mística, para tirar dela a conseqüência de que, para a iniciação, há uma condição que não existe e que não poderia existir no que concerne ao misticismo; mas há ainda outra condição não menos necessária da qual não falamos, e que se coloca de certo modo entre aquelas que acabamos de tratar. Esta condição, sobre a qual é necessário insistir, tanto mais quanto que os ocidentais, em geral, são bastante dados a ignorá-la ou a desconhecer sua importância, é inclusive, na verdade, a mais característica de todas, a que permite definir a iniciação sem equívoco possível, e não confundi-la com nenhuma outra coisa; por ela, este caso da iniciação está muito melhor delimitado do que o poderia estar no misticismo, para o qual não existe nada disso. É freqüentemente muito difícil, quando não completamente impossível, distinguir o falso misticismo do verdadeiro; o místico é, por definição mesma, um isolado e um «irregular», e às vezes nem ele mesmo sabe o que é verdadeiramente; e o fato de que nele não se trata de conhecimento em estado puro, mas sim, inclusive, o que é conhecimento real está sempre afetado por uma mescla de sentimento e de imaginação, está ainda muito longe de simplificar a questão; em todo caso, nisso há algo que escapa a todo controle, o que poderíamos expressar dizendo que, para o místico, não há nenhum «meio de reconhecimento» (4). Poder-se-ia dizer também que o místico não tem «genealogia», que é apenas uma espécie de «geração espontânea», e pensamos que estas expressões são fáceis de compreender sem mais explicações; após, como se atreveria alguém a afirmar sem nenhum gênero de dúvidas que alguma pessoa é autenticamente mística e que outra não é, quando todas as aparências podem ser sensivelmente as mesmas? Pelo contrário, as contrafações da iniciação sempre podem ser descobertas infalivelmente pela ausência da condição à qual acabamos de fazer alusão, e que não é outra que a vinculação a uma organização tradicional regular.

Há ignorantes que imaginam que alguém «se inicia» a si mesmo, o que é em certo modo uma contradição nos termos; esquecem, se é que o souberam alguma vez, que a palavra initium significa «entrada» ou «começo», confundem o fato mesmo da iniciação, entendida em seu sentido estritamente etimológico, com o trabalho que terá que levar a cabo ulteriormente para que essa iniciação, de virtual que foi a princípio, torne-se mais ou menos plenamente efetiva. Compreendida assim, a iniciação é o que todas as tradições concordam em designar como o «segundo nascimento»; e, como um ser poderia atuar por si mesmo antes de ter nascido? (5) Sabemos bem o que se poderá objetar a isso: se o ser estiver verdadeiramente «qualificado», leva já nele as possibilidades que se tratam de ser desenvolvidas; por que, se isso for assim, não as poderia realizar por seu próprio esforço, sem nenhuma intervenção exterior? Isso, efetivamente, uma coisa que é permissível considerar teoricamente, a condição de concebê-la como o caso de um homem «duas vezes nascido» do primeiro momento de sua existência individual; mas, se nisso não há impossibilidade de princípio, ainda assim não há menos uma impossibilidade de fato, no sentido de que isso é contrário à ordem estabelecida para nosso mundo, ao menos em suas condições atuais. Não estamos na época primitiva em que todos os homens possuíam normal e espontaneamente um estado que hoje em dia está vinculado a um alto grau de iniciação (6); e além disso, para falar a verdade, a própria palavra iniciação, em tal época, não podia ter nenhum sentido. Estamos no Kali-Yuga, quer dizer, em um tempo onde o conhecimento espiritual tornou-se oculto, e onde somente alguns podem lhe alcançar ainda, providenciado que se coloquem nas condições requeridas para lhe obter; agora bem, uma dessas condições é precisamente esta da qual falamos, tal como outra condição é um esforço que os homens das primeiras idades tampouco tinham necessidade alguma, posto que o desenvolvimento espiritual se cumpria neles tão naturalmente como o desenvolvimento corporal.

Assim, trata-se de uma condição cuja necessidade se impõe de conformidade com as leis que regem nosso mundo atual; e, para fazê-lo compreender melhor, podemos recorrer aqui a uma analogia: todos os seres que se desenvolverão no curso de um ciclo estão contidos no começo, no estado de germens sutis, no «Ovo do Mundo»; após, por que não foram nascer no estado corporal por si mesmos e sem pais? Isso tampouco é uma impossibilidade absoluta, e se pode conceber um mundo onde isso seja assim; mas, de fato, esse mundo não é o nosso. Reservamos, bem entendido, a questão das anomalias; pode que haja casos excepcionais de «geração espontânea», e, na ordem espiritual, nós mesmos aplicamos faz um momento esta expressão ao caso místico; mas dissemos também que este é um «irregular», enquanto que a iniciação é algo essencialmente «regular», que não tem nada que ver com as anomalias. Também seria mister saber exatamente até onde podem chegar estas; elas também, devem entrar em definitivo em alguma lei, já que todas as coisas só podem existir como elementos da ordem total e universal. Isso apenas, caso se queira refletir nisso, poderia bastar para fazer pensar que os estados realizados pelo místico não são precisamente os mesmos que os do iniciado, e que, se sua realização não está submetida às mesmas leis, é porque se trata efetivamente de algo diferente; mas podemos deixar agora inteiramente de lado o caso do misticismo, sobre o que já dissemos o bastante para aquilo que nos propomos estabelecer, para apenas considerar já exclusivamente o da iniciação.

Efetivamente, fica apurar o papel da vinculação a uma organização tradicional que, bem entendido, não poderia dispensar de maneira nenhuma do trabalho interior que cada um só pode cumprir por si mesmo, mas que é requerido, como condição prévia, para que este próprio trabalho possa produzir efetivamente seus frutos. Deve se compreender bem, a partir de agora, que aqueles que foram constituídos como os depositários do conhecimento iniciático não podem lhe comunicar de uma maneira mais ou menos comparável à maneira em que um professor, no ensino profano, comunica a seus alunos fórmulas livrescas que eles não terão mais que armazenar em sua memória; aqui se trata de algo que, em sua essência mesma, é propriamente «incomunicável», posto que são estados que deverão ser realizados interiormente. O que se pode ensinar, são unicamente métodos preparatórios para a obtenção desses estados; o que pode ser proporcionado desde fora a este respeito é, em suma, uma ajuda, um apoio que facilita grandemente o trabalho que terá que cumprir, e também um controle que descarta os obstáculos e os perigos que podem se apresentar; tudo isso está muito longe de ser desdenhável, e aquele que seja privado disso correria muito risco de desembocar em um fracasso, mas isso não justificaria ainda inteiramente o que dissemos quando falamos que uma condição necessária. Assim, não é isso o que temos em vista, ao menos de uma maneira imediata; tudo isso apenas intervém secundariamente, e de certo modo a título de conseqüências, depois da iniciação entendida em seu sentido mais estrito, tal como o indicamos mais atrás, e quando se trata de desenvolver efetivamente a virtualidade que ela constitui; mas ainda é necessário, acima de tudo, que esta virtualidade preexista. Assim, é de outro modo como deve ser entendida a transmissão iniciática propriamente dita, e não poderíamos caracterizar melhor senão dizendo que ela é essencialmente a transmissão de uma influência espiritual; teremos que voltar de novo sobre isto mais amplamente, mas, no momento, limitar-nos-emos a determinar mais exatamente o papel que tem esta influência, entre a aptidão natural previamente inerente ao indivíduo, e o trabalho de realização que cumprirá a seguir.

Fizemos observar em outra parte que as fases da iniciação, do mesmo modo que as da «Grande Obra» hermética, que não é no fundo mais que uma de suas expressões simbólicas, reproduzem as do processo cosmogônico (7); esta analogia, que se funda diretamente sobre a do «microcosmo» com o «macrocosmo», permite, melhor que toda outra consideração, esclarecer a questão tratada no presente. Pode-se dizer, efetivamente, que as aptidões ou possibilidades incluídas na natureza individual são primeiro, em si mesmas, apenas uma matéria prima, quer dizer, uma pura potencialidade, onde não há nada de desenvolvido ou diferenciado (8) ; é então o estado caótico e tenebroso que o simbolismo iniciático faz corresponder precisamente ao mundo profano, e no qual se encontra o ser que não chegou ainda ao «segundo nascimento». Para que esse caos possa começar a tomar forma e a organizar-se, é mister que uma vibração inicial lhe seja comunicada pelas potências espirituais, que a Gênese hebraica designa como os Elohim; esta vibração, é o Fiat Lux que ilumina o caos, e que é o ponto de partida necessário de todos os desenvolvimentos ulteriores; e, do ponto de vista iniciático, esta iluminação está constituída precisamente pela transmissão da influência espiritual da qual acabamos de falar (9) . Após, e pela virtude desta influência, as possibilidades espirituais do ser já não são a simples potencialidade que eram antes; tornaram-se uma virtualidade disposta a desenvolver-se em ato nas diversas etapas da realização iniciática.

Podemos resumir tudo o que precede dizendo que a iniciação implica três condições que se apresentam em modo sucessivo, e que se poderiam fazer corresponder respectivamente aos três termos de «potencialidade», de «virtualidade» e de «atualidade»: 1.º a «qualificação», constituída por algumas possibilidades inerentes à natureza própria do indivíduo, e que são a matéria prima sobre a qual deverá efetuar o trabalho iniciático; 2.º, a transmissão, mediante a vinculação a uma organização tradicional, de uma influência espiritual que dá ao ser a «iluminação» que lhe permitirá ordenar e desenvolver essas possibilidades que leva nele; 3.º, o trabalho interior pelo qual, com a participação de «ajudas» ou de «suportes» exteriores, se houver lugar para isso, e sobretudo nas primeiras etapas, este desenvolvimento será realizado gradualmente, fazendo passar o ser, de degrau em degrau, através dos diferentes graus da hierarquia iniciática, para lhe conduzir à meta final da «Liberação» ou da «Identidade Suprema».

Notas:

1) Além disso, pelo estudo especial que faremos a seguir da questão das qualificações iniciáticas, ver-se-á que esta questão apresenta, na realidade, aspectos muito mais complexos do que se poderia acreditar a primeira vista e se alguém se ativesse unicamente à noção muito geral que damos aqui dela.

2) Também os teólogos vêem de boa vontade, e não sem razão, um «falso místico» naquele que busca, por um esforço qualquer, obter visões ou outros estados extraordinários, embora esse esforço se limite sozinho à manutenção de um simples desejo.

3) Disso resulta, entre outras conseqüências, que os conhecimentos da ordem doutrinal, que são indispensáveis ao iniciado, e cuja compreensão teórica é para ele uma condição preliminar de toda «realização», pode lhe faltar inteiramente ao místico; daí vem freqüentemente, neste, além da possibilidade de enganos e de confusões múltiplas, uma estranha incapacidade de expressar-se inteligivelmente. Além disso, deve se entender bem que os conhecimentos tratados não têm absolutamente nada que ver com tudo o que apenas é instrução exterior ou «saber» profano, que aqui não tem nenhum valor, assim como o explicaremos também depois, e que inclusive, tendo em conta o que é a educação moderna, seria mais um obstáculo que uma ajuda em muitos casos; um homem pode muito bem não saber ler nem escrever e alcançar não obstante os graus mais altos da iniciação, e tais casos não são extremamente raros no oriente, enquanto que há «sábios» e inclusive «gênios», segundo a maneira de ver do mundo profano, que não são «iniciáveis» em nenhum grau.

4) Com isto não entendemos palavras ou signos exteriores e convencionais, mas sim aquilo do que tais meios não são em realidade mais que a representação simbólica.

5) Recordamos aqui o elementar adágio escolástico: «para atuar, é mister ser».

6) É o que indica, na tradição hindu, a palavra Hamsa, dada como o nome da casta única que existia na origem, e que designa propriamente um estado que é ativarna, quer dizer, além da distinção das castas atuais.

7) Ver O Esoterismo do Dante, concretamente pp. 63-64 e 94, (ed. francesa).

8)Não se precisará dizer que, falando rigorosamente, não é uma materia prima mais que num sentido relativo, não no sentido absoluto; mas esta distinção não importa sob o ponto de vista no qual nos colocamos aqui, e além disso é a mesma coisa para a materia prima de um mundo tal como o nosso que, ao estar já determinada de certa maneira, não é na realidade, em relação à substância universal, mais que uma matéria secunda (cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. II), de sorte que, inclusive sob esta relação, a analogia com o desenvolvimento de nosso mundo a partir do caos inicial é verdadeiramente exata.

9) Daí vêm expressões como as de «dar a luz» e «receber a luz», empregadas para designar, em relação ao iniciador e ao iniciado respectivamente, a iniciação no sentido restrito, quer dizer, a própria transmissão tratada aqui. Observar-se-á também, no que concerne aos Elohim, que o número setenário que lhes é atribuído está em relação com a constituição das organizações iniciáticas, que deve ser efetivamente uma imagem da própria ordem cósmica.