N as diversas tradições, fala-se com freqüência de uma linguagem misteriosa denominada "linguagem dos pássaros", designação evidentemente simbólica, pois a importância atribuída a ela, como prerrogativa de uma alta iniciação, não permite que seja tomada de forma literal. Tanto é, que se lê ainda no Alcorão: "E Salomão foi o herdeiro de Davi; e disse: Ó homens, temos sido instruídos na linguagem dos pássaros (ullimna mantiqat-tayri) e cumulados de todas as coisas..." (XXVII, 15). Por outro lado, vê-se que os heróis vencedores do dragão, como Siegfried na lenda nórdica, compreendem também a linguagem dos pássaros, o que nos permite interpretar facilmente o simbolismo em questão. De fato, a vitória sobre o dragão tem por conseqüência imediata a conquista da imortalidade, representada por algum objeto que o dragão defendia de qualquer aproximação. Essa conquista da imortalidade implica essencialmente a reintegração no centro do estado humano, isto é, no ponto em que se estabeleceu a comunicação com os estados superiores do ser. Tal comunicação é representada pela compreensão da linguagem dos pássaros, pois, de fato, os pássaros são tomados com freqüência como símbolo dos anjos, ou seja, precisamente dos estados superiores. Já tivemos ocasião de citar, em outra parte,(1) a parábola evangélica na qual se fala, nesse sentido, de "pássaros do céu" que vêm pousar sobre os ramos da árvore, a mesma árvore que representa o eixo que passa pelo centro de cada estado de ser, ligando todos os estados entre si.(2)
No texto do Alcorão, que reproduzimos acima, considera-se o termo eç-çâffât designa literalmente os pássaros, mas que se aplica simbolicamente aos anjos (el-malaïkah); assim, o primeiro versículo significa a constituição das hierarquias celestes ou espirituais.(3) O segundo versículo exprime a luta dos anjos contra os demônios, das potências celestes contra as potências infernais, ou seja, a oposição entre os estados superiores e os inferiores.(4)
É a mesma luta, na tradição hindu, dos Devas contra os Asuras, e também, de acordo com um simbolismo inteiramente semelhante ao que estamos tratando, do combate de Garuda contra o Naga, no qual encontramos ainda a serpente ou o dragão de que falávamos. Garuda é a águia, às vezes substituída por outros pássaros como o íbis, a cegonha e a garça, todos destruidores de répteis.(5) Enfim, no terceiro versículo, vê-se os anjos recitando o dhikr, que, na interpretação mais comum, é considerado como sendo a recitação do Alcorão, não, bem entendido, do Alcorão expresso em linguagem humana, mas de seu protótipo eterno inscrito na "tábua guardada" (el-lawhul-mahfûz), que, como a escada de Jacó, estende-se do céu à terra, portanto através de todos os graus da Existência Universal. (6)
Do mesmo modo, na tradição hindu, diz-se que os Devas, em sua luta contra os Asuras, protegeram-se (achhan dayan) pela recitação dos hinos do Veda, motivo pelo qual esses hinos receberam o nome chhandas, palavra que designa precisamente o "ritmo". A mesma idéia está ainda contida na palavra dhikr, que, no esoterismo islâmico, aplica-se às fórmulas ritmadas que correspondem de modo exato aos mantras hindus. Trata-se de fórmulas cuja repetição tem por objetivo produzir uma harmonização dos diferentes elementos do ser e de determinar as vibrações capazes de estabelecer, por sua repercussão, através da série de estados em hierarquia indefinida, uma comunicação com os estados superiores o que é, aliás, de modo geral, a razão de ser essencial e primordial de todos os ritos.
Somos assim reconduzidos, como se vê, ao que dizíamos no início sobre a "linguagem dos pássaros", que também podemos chamar "linguagem angélica", cuja imagem no mundo humano é a linguagem ritmada, pois é na "ciência do ritmo", a qual comporta múltiplas aplicações, que se baseiam em definitivo todos os meios que podem ser colocados em ação para estabelecermos comunicação com os estados superiores. É por isso que uma tradição islâmica diz que Adão, no Paraíso Terrestre, falava em versos, isto é, em linguagem ritmada. Trata-se da "língua siríaca" (loghah sûryâniyah) da qual falamos em nosso estudo precedente sobre a "ciências das letras" e que deve ser vista como tradução direta da "iluminação solar" e "angélica", tal como se manifesta no centro do estado humano. É também por isso que os Livros Sagrados são escritos em linguagem ritmada, o que os torna completamente diferentes de simples "poemas", no sentido profano do termo, como quer o preconceito antitradicional dos "críticos" modernos. Aliás, a poesia não era; na origem, essa vã "literatura" que surgiu da degradação que se explica pela marcha descendente do ciclo humano, e tinha um verdadeiro caráter sagrado (7). Vestígios do que estamos dizendo podem ser encontrados até na Antigüidade ocidental clássica, quando a poesia era ainda denominada "língua dos Deuses", expressão equivalente à que já indicamos, visto que os "Deuses", isto é, os Devas, (8) são, como os anjos, a representação dos estados su¬periores. Em latim, os versos eram denominados carmina, designação que se referia à sua utilização no cumprimento dos ritos; a palavra carmem é idêntica ao sânscrito Karma, que deve aqui ser tomado em seu sentido especial de "ação ritual" (9). Desse modo, o poeta, intérprete da "língua sagrada", através da qual transparece o Verbo Divino, era vates, palavra que o caracterizava como dotado de inspiração de algum modo profética. Mais tarde, por uma outra degeneração o vates reduziu-se a um vulgar "adivinho" (10), e o carmem (que deu a palavra francesa "charme") tornou-se um "encantamento", isto é, uma operação de baixa magia. Aí está um exemplo do fato de que a magia, e mesmo a feitiçaria, é o que subsiste como último vestígio de tradições desaparecidas.
Essas poucas indicações bastarão, acreditamos, para mostrar o quanto estão errados aqueles que zombam das narrativas que tratam da "linguagem dos pássaros". É, na verdade muito fácil e muito simples tratar com desdém, como "superstições", tudo aquilo que não se compreende. Mas os antigos sabiam muito bem o que diziam quando empregavam a linguagem simbólica. A verdadeira "superstição", no sentido estritamente etimológico (quod superstat), é o que sobrevive a si mesmo, ou seja, numa palavra, a "letra morta". Mas essa conservação, por menos digna de interesse que possa parecer, não é, contudo, uma coisa tão desdenhável, pois o espírito que "sopra onde quer" e quando quer pode sempre vir revivificar os símbolos e os ritos, e restituir-lhes, com seu sentido perdido, a plenitude de sua virtude original.