Guenon estuda

Er-Rûh (O Espírito)

René Guénon
1938 in Aperçus sur l'´Esoterisme
Islamique et le Taoïsme.
Cap. V, págs..54-61

Conforme os dados tradicionais da "ciência das letras", Allah criou o mundo não através do alif, que é a primeira das letras, mas por ba, que é a segunda; e, de fato, ainda que a unidade seja necessariamente o princípio primeiro da manifestação, é a dualidade que a pressupõe imediatamente, e é entre os dois termos da dualidade que a criação se produz; do mesmo modo, é entre os dois polos complementares da manifestação, figurados pelas duas extremidades da ba, que se produz toda a multiplicidade indefinida das existências contingentes. É então a ba que está propriamente na origem da criação, e ela se desenvolve por ele e nela, ou seja, ela é ao mesmo tempo o "meio" e o "lugar", segundo os dois sentidos que tem a letra ba quando compõe a preposição bi (1). O ba, nesse papel primordial, representa Er-Rûh, o "Espírito", que é preciso entender como o Espírito total da existência universal, e que se identifica essencialmente à "Luz" (En-Nûr); ele é produzido diretamente pelo "comando divino"(min amri'Llah), e, desde que é produzido torna-se o instrumento pelo qual este "comando" opera todas as coisas, que serão assim "ordenadas" por ele (2); antes dele, só existe el-amr, afirmação do Ser puro e formulação primeira da Vontade suprema, como antes da dualidade só existe a unidade, ou antes da ba só há o alif. Ora, o alif é a letra "polar" (qutbâniyah) (3), cuja forma é aquela do "eixo" segundo o qual descende a "ordem" divina; e a ponta superior do alif, que é o "segredo dos segredos" ( sirr el-asrâr), se reflete no ponto do ba, sendo esse ponto o centro da "circunferência primordial" (ed-dâirah el-awwaliyah) que delimita e envolve o domínio da Existência universal, circunferência que, vista em simultaneidade em todas as direções possíveis, é em realidade uma esfera, a forma primordial e total da qual nascerão por diferenciação todas as formas particulares.

Se considerarmos a forma vertical da alif e a forma horizontal da ba, veremos que sua relação é aquela de um princípio ativo e de um princípio passivo; e isto está em conformidade com os dados da ciência dos números sobre a unidade e a dualidade, não somente no ensinamento pitagórico, que é em geral o mais conhecido sobre esse assunto, mas tembém com aqueles de todas as tradições. O caráter de passividade é efetivamente inerente ao duplo papel de "instrumento" e de "meio" universal do qual falávamos há pouco; além disso, Er-Rûh é, em árabe, um termo feminino; mas é preciso ter em mente que, segundo a lei da analogia, o que é negativo ou passivo em relação à Verdade divina (El-Haqq) torna-se positivo ou ativo em relação à Criação (el-Khalq)(4). É essencial considerarmos aqui as duas faces opostas, porque trata-se precisamente, por assim dizer, do "limite" mesmo entre El-Haqq e el-Khalq, "limite" pelo qual a criação está separada de seu Princípio divino e a ele unida ao mesmo tempo, segundo o ponto de vista que adotemos; é então, em outros termos, a barzakh por excelência (5); e, do mesmo modo que Allah é "O Primeiro e O Último" (El-Awwal wa El-Akhir) no sentido absoluto, Er-Rûh é "o primeiro e o último" em relação à criação.

Com isso não queremos dizer, fique bem claro, que o termo Er-Rûh não seja às vezes usado em acepções mais particulares, como o termo "espírito" ou seus equivalentes mais ou menos exatos em outras línguas; é assim que, em certos textos corânicas notadamente, pode-se pensar que se trata de uma designação de Seyidnâ Jibrail (o anjo Gabriel), ou de um outro anjo ao qual esta denominação de Er-Rûh se aplique mais especialmente; e tudo isso pode seguramente ser verdadeiro segundo o caso ou segundo as aplicações que são feitas, pois tudo o que é participação ou especificação do Espírito universal, ou que lhe desempenha o papel sob certo aspecto e em graus diversos, é também Ruh em um sentido relativo, e supõe o espírito na medida em que ele reside no ser humano ou em outro ser particular. No entanto, há um ponto ao qual muitos comentadores exotéricos parecem não prestar atenção suficiente: quando Er-Rûh é designado expressa e distintamente ao lado dos anjos (el-malâikah) (6), como é possível admitir que, em realidade, se trate simplesmente de um deles? A interpretação esotérica é que se trata então de Seyidnâ Mîtratrûn (o Metatron da Kabbala hebraica); isso permite aliás explicar o equívoco que se produziu a este respeito, pois Metraton é também representado como um anjo, ainda que, estando além do domínio das existências "separadas", ele é verdadeiramente diferente e superior a um anjo; e isto, de resto, corresponde bem ao duplo aspecto do barzakh (7).

Uma outra consideração que concorda inteiramente com esta interpretação: na figuração do "Trono"( El-Arsh) , Er-Rûh está colocado ao centro, e este lugar é efetivamente o de Metatron; o "Trono" é o lugar da "presença divina", ou seja da Shekinah que, na tradição hebraica, é o aspecto complementar de Metatron. Aliás, pode-se mesmo dizer que, de certa forma, Er—Ruh se identifica ao "Trono" mesmo, pois este, cercando e envolvendo todos os mundos (de onde o epíteto El-Muhît que lhe é dado) , coincide portanto com a "circunferência primordial" da qual falamos acima. Reencontramos aqui as duas faces do barzakh: do lado de El'Haqq, é Er-Rahmân que repousa sobre o "Trono" (8); mas, do lado de El-Khalq, ele só aparece como que por refração através de Er-Ruh, o que está em conexão direta com o sentido do hadîth: "Aquele que me vê, vê a Verdade" (man raanî faqad raa el-Haqq). É este, de fato, o mistério da manifestação "profética" (9); e sabe-se que, segundo a tradição hebraica igualmente, Metatron 4 o agente das "teofanias" e o princípio mesmo da profecia (10), o que, expresso em linguagem islâmica, eqüivale a dizer que ele não e outro senão Er-Rûh el-mohommediyah, no qual todos os profetas e enviados divinos são um, e que têm, no "mundo de baixo", sua expressão última naquele que é seu "selo" (Khâtam el-anbiâi wa'l-mursalîn), ou seja, que os reúne em uma síntese final que e o reflexo de sua unidade principiai no "mundo do alto" (onde ele é "awwal khalqi 'Llah", aquele que é o último na ordem manifestada sendo analogicamente o primeiro na ordem principial), e que e assim o "senhor dos primeiros e dos últimos" (sayid el-awwalîna wa'l-akhirîn). É dessa maneira somente que podem realmente ser compreendidos no seu sentido profundo, todos os nomes e os títulos do Profeta, que são, em definitivo, aqueles mesmos do "Homem Universal"(El-Insan el Kâmil), totalizando finalmente em si todos os graus da Existência, como ele os contem todos desde a origem:"aiayi çalatu Rabbil-Arshi dawman", "que sobre ele a prece do Senhor do Trono esteja perpetuamente"!

Notas:

(l) É por isso que a ba ou seu equivalente é a letra inicial dos Livros sagrados: a Thorah começa por Bereshitb, o Alcorão por Bismi'Llah e, apesar de não termos atualmente o texto do Evangelho em uma língua sagrada, pode-se ao menos observar que a primeira palavra do Evangelho de São João, em hebraico, é também Bereshith.

(2} É da raiz amr que deriva em hebraico o verbo yâmer empregado na Gênese para exprimir a ação criativa representada, como "palavra" divina.

(3) Como nós já indicamos em outra parte, alif=qutb=lll ("Um hieróglifo do Polo"); acrescentamos que o nome Aâlâ, "Altíssimo", tem também o mesmo numero.

(4) Este duplo aspecto corresponde em certo sentido, na Kabbala hebraica, àquele da Shekinah, feminina, é de Metatron, masculino, como ficará mais claro a seguir.

(5) Cf. Titus Burckhardt, Da "barzakh" ( Études Traditionnelles, dezembro de 1937).

(6) Por exemplo na Surata El-Qadr (XCVII, 4): "tahazzalu'l-malâikatu wa'r-rûhu fthâ...".

(7) Em certas fórmulas esotéricas, o nome de Er-Rûh é associado aos nomes de quatro anjos em relação aos quais ele é, na ordem celeste, o que é, na ordem terrestre, o Profeta em relação aos quatro primeiros kholafâ (califas); isso convém bem a Mitatrûn, que aliás se identifica assim claramente a Er-Ruh el-mohammediyah.

(8) Segundo este versículo da Surata Tahâ (XX,5):"Er-Rahmânu al'arshi estawâ".

(9) Pode-se observar que assim se reconciliam de certa forma a concepção do Profeta e aquela do Avatâra, que procedem em sentido inverso um do outro, o segundo partindo da consideração do princípio que se manifesta, enquanto que o primeiro parte do "suporte" desta manifestação (é o "Trono" e também o "suporte" da Divindade).

(10) Cf. Le Roi du Monde, pags. 30-33.