E quando a verdade parece ficção?

Breves considerações sobre mitos, lendas e fábulas
Luiz Pontual

Todos que, crianças, assistimos aos filmes “A Bela Adormecida” ou “A Branca de Neve e os Sete Anões” certamente nos recordamos do indescritível arrebatamento de que fomos presa: olhos e ouvidos atentos, coração aos pulos, não estávamos mais no cinema e sim transportados para outro lugar e outro tempo, mistério e maravilha mais tarde enxovalhados por nossa “esclarecida” maturidade...

É muito curioso observar que “conto da carochinha”, “lenda” “fábula” ou “mito” (mitômano: mentiroso doentio e contumaz) freqüentemente são termos usados como sinônimo de mentira ou falsidade em nossos tempos modernos.

Mitos, lendas e fábulas remontam a outros tempos e outras circunstâncias, da Idade Média “para trás”, portanto, a um mundo tradicional em que Oriente e Ocidente guardavam entre si mais semelhanças que diferenças. A palavra “tradição” designa etimologicamente “o que é transmitido oralmente” e, mais precisamente, a transmissão do conhecimento metafísico, ou seja, a Sophia Perennis.

O tempo a que nos referimos remonta a apenas cinco ou seis séculos, que, em termos de história, não é lá muita coisa; havia então, abrangendo todo o mundo, uma unidade transcendente entre várias religiões e doutrinas, algo inteiramente diverso da “globalização” atual.

O poder temporal (e material) subordinava-se ao espiritual e cada religião ou doutrina eram diferentes formas de uma mesma verdade, adaptada a povos e lugares distintos. Claro que há diferentes níveis de compreensão deste “ambiente medieval” e, como dizia o magistral Dante, testemunho exemplar do Ocidente tradicional, “minha obra pode ser lida em vários planos: literário, histórico, político, filosófico, religioso ou metafísico”, nesta ordem.

Neste quadro, podemos compreender melhor qual a natureza e a função dos mitos, lendas, contos e fábulas. Antes de tudo, é necessário lembrar que a linguagem religiosa e doutrinal é simbólica por excelência e isto se deve ao fato de as verdades metafísicas serem intraduzíveis em linguagem discursiva.

Metafísica, como nos ensina René Guénon, designa “o que está para além da física”, entendendo “física” em sua acepção mais ampla, isto é, physis ou “natureza” ou seja, o mundo manifestado. A metafísica, portanto, está acima do tempo e do espaço e, assim, não pode ser apreendida ou descrita pela linguagem “comum”, que é expressão limitada ao nosso mundo, tão bem descrito por Platão em sua célebre exposição “A Caverna”.

O que segue, em vista do que dissemos acima, talvez não seja tão desconcertante: a palavra “mito”, cuja etimologia remonta ao grego “muthos” (latim mutus, em português mudo) significa silêncio e, mais precisamente, o que não deve e/ou não pode ser dito. Entendemos assim que os relatos míticos são essencialmente simbólicos: remetem, por analogia, ao mundo espiritual, isto é, transcendente.

As lendas ou fábulas recolhidas e compiladas por Grimm e La Fontaine, entre outros, se enquadram perfeitamente como relatos tradicionais simbólicos transmitidos popularmente de geração a geração ao longo de séculos. A tradição oral, por surpreendente que possa parecer, preserva com inacreditável exatidão (conteúdo) e precisão (forma) um inestimável legado em um meio quase que inteiramente iletrado.

Podemos dizer que tais lendas e fábulas, para além de sua aparência às vezes inocente, “guardam” (é a palavra exata no caso) grandes mistérios (cuja raiz é idêntica à de mito), que se revelam aos que, qualificados, são capazes e merecedores de os conhecer. Tais mistérios são a própria essência espiritual da humanidade, fonte inesgotável e única verdadeira sustentação deste mundo.

Muitos elementos simbólicos tradicionais, originalmente transmitidos oralmente, sobreviveram até nossos dias como jogos, brincadeiras infantis, folclore e “histórias para crianças”.

No caso das “histórias para crianças” muitas vezes temos de ver por detrás do véu das intenções moralizantes e educativas do escritor que as reconta. Não que tais intenções não sejam válidas, mas como aplicações contingentes podem enfraquecer um pouco o impacto simbólico dos elementos presentes na narrativa. Outro ponto a se observar é que muitas vezes em versões modernas de tais fábulas, situações violentas ou “politicamente incorretas” são alteradas, como se as crianças não percebessem de imediato que o “ambiente” das fábulas é todo um mundo à parte. Aí sim existe uma perda irreparável. Pois as fábulas são na verdade mapas simbólicos de diferentes tipos de transformação interior, de volta ao centro, de descoberta de verdades primordiais. Elas não são mais assustadoras que os desafios reais que temos de enfrentar, seja como crianças em desenvolvimento para se tornarem adultos, seja como adultos buscando realizações mais profundas.

Aí está a importância de uma tradução como esta, que nos aproxima do compilador original e da força simbólica da fábula.

A fábula “O Pássaro Dourado” ilustra bem essa função de “mapa de crescimento”. Seus múltiplos elementos dariam um estudo extenso. Só o antiqüíssimo símbolo da árvore de pomos de ouro....Mas prefiro destacar a dinâmica da estória, o papel do filho mais novo do jardineiro e sua interação com os demais elementos. Eis outro tema muito freqüente: o herói é o filho mais novo e mais querido. Ele reflete a inocência e pureza de intenções, assim como a ausência de orgulho. Os irmãos mais velhos são tolos arrogantes, se deixam dominar por seus desejos (a incapacidade de reconhecer a orientação da raposa, a estalagem cheia de prazeres, o fato de se tornarem ladrões, a inveja assassina que sentem pelo irmão mais novo). Agora, quais são as duas atitudes iniciais mais importantes do irmão mais novo e que demonstram que sua natureza intrínseca é superior? Primeiro, ele ficou desperto sob a árvore , vendo assim o pássaro de ouro e recebendo dele um “presente” inicial, a pena , que levou a todo o desenvolvimento posterior de sua aventura. Que belo símbolo do poder germinador dos símbolos é essa pena de ouro! E em segundo lugar, ele escutou a raposa, reconheceu nela a fonte de um conhecimento acima dele e assim conseguiu seguir veloz montado sobre ela e também superar a primeira tentação, a mais básica, a da estalagem.

Mesmo nos seus erros posteriores, ele não duvida da raposa, mas esquece da sua orientação, deixando-se fascinar pela beleza e valor do que deve pegar e levar para os reis: o pássaro e o cavalo de ouro merecem aos seus olhos, respectivamente, a gaiola e sela de ouro. Mas, na verdade, são apenas acessórios ao que ele verdadeiramente busca e, ao desviar-se da orientação da raposa, ele é punido. O mesmo se dá com a princesa; ele não deve ceder ao pedido dela, nada deve desviá-lo de suas tarefas. Mas nessa altura da narrativa ele ainda não aprendeu isso. A cada erro, ele é ameaçado com a morte, mas tem a chance de resgatar sua vida se cumprir uma nova tarefa.

O desafio de retirar o morro leva a um novo ponto na estória. O morro é um monte de terra que tapa a vista da janela do palácio. Por causa dele, o rei não pode enxergar a paisagem - e a luz não pode entrar. É um símbolo da cegueira de nosso herói. Ele se lança ao trabalho e durante sete dias luta e se esforça. Faz a sua parte, mas é algo acima do esforço pessoal. Nem “todo o mundo junto” seria capaz de o fazer, porque não é uma questão de quantidade, força ou tempo. Mas a sábia raposa, sozinha, é capaz de destruí-lo em uma noite, enquanto o herói está descansando, inativo. É a luz do conhecimento vencendo o peso das trevas.

E então começa a etapa de aquisição da princesa, do cavalo e do pássaro. Ele cumpre o que prometeu a cada rei, mas em seguida usurpa o que já havia conquistado.

Mas nem tudo foi aprendido: agora, por amor à raposa, não obedece ao seu pedido para que a mate. Pior: tem a pretensão de achar fácil o último conselho que ela lhe dá.

E acontece que salva a vida de seus dois irmãos que estavam prestes a serem mortos para sempre. Troca por ouro, símbolo de luz e valor, suas vidas perversas. Novamente se deixa iludir pela natureza inferior, perde tudo que conquistou e vai para o fundo da ribanceira. Mas ressurge a raposa, que o salva e orienta.

Sem nada, enfim puro mas não mais inocente, ele volta ao castelo, revela a verdade, assume finalmente o que conquistou, torna-se o rei. Então ele está preparado.Quando a raposa reaparece e pede que a mate, ele obedece prontamente. E a raposa liberta-se da forma que a aprisionava, mostrando-se como o irmão perdido da princesa.

A “aventura” se completa. De filho inocente do jardineiro a senhor purificado do reino, ele teve de conhecer a natureza dos vários aspectos de sua alma e resgatá-los, em parte pelo esforço e purificação da vontade e, em parte, pelo reconhecimento dos próprios limites e da necessidade de abrir-se para o conhecimento, para a influência superior.

Não é por acaso que, crianças ou adultos, somos arrebatados por tais relatos: seu valor simbólico toca o mais profundo e elevado em nós e para além de nós, pois desperta recordações cujas harmonias concordantes são verdadeiramente um eco do Infinito.

Em um mundo em que a mentira acabou por prevalecer de modo tão esmagador, não deixa de ser sintomático que as lendas ou mitos sejam considerados como falsidade, pois, como diria a sabedoria popular, “na boca de quem não presta, quem é bom não tem valor”!