COMOCK

Comock, o esquimó

Condensado de um programa de rádio da BBC de Londres por Robert Flaherty e publicado na "Seleções do Reader's Digest " (*) de janeiro de 1951.

Robert Flaherty realizou cinco expedições às regiões subárticas. No decorrer de quatro dessas expedições, levantou o mapa do território setentrional de Ungava, das regiões da terra de Baffin e das ilhas de Belcher, na Baía de Hudson.

A uma dessas ilhas o Governo Canadense deu o nome de Flaherty. Em sua quinta expedição, filmou essa epopéia da vida dos esquimós que é Nanook of the North. Este e filmes posteriores, inclusive Tabu, Man of Aran e Elephant Boy, valeram-lhe a distinção de ser chamado o «pai do filme documentário.» Seu filme mais recente é Louisiana Story. O filme The Titan: Story of Michelangelo é apresentado por ele.

ACONTECEU encontrar-me num pequeno posto da Baía de Hudson, no Cabo Welstenholme, no extremo nordeste da baía. Certa manhã, disse-me o encarregado do posto:

—Que tal uma pequena caçada ? Tomamos a chalupa e damos a volta ao cabo. É bem possível que encontremos uma morsa ou até mesmo um urso entre os rochedos.

Partimos. Chegamos a uma saliência que se projetava da face da rocha. Desembarcamos nela, subimos uns 150 metros e sentamos-nos, e eu pus-me a observar, através do meu telescópio, os milhares de pombas no mar que voavam em volta dos penhascos de uma ilha próxima. Subitamente, avistei um barquinho que remava ao nosso encontro, esparramando-se desajeitadamente sobre a superfície encrespada do mar.

Um esquimó manobrava o leme e dois outros remavam. O barco não tinha mais de 4,5 metros de comprimento, no entanto, contamos 13 pessoas a bordo, entre adultos e crianças, encolhidas umas contra as outras, e dois cachorros. Uma mulher empunhava uma vara para castigar as crianças e os cachorros, se eles, agitando-se bruscamente, assanhados, ameaçassem o equilíbrio daquela casca de noz. Como não sossobrava aquela espantosa embarcação? Compreendi a razão quando observei a sua linha d'água. Havia uma série de bexigas de foca cheias de vento amarradas em toda a volta. Esse recurso fizera o barco manter-se à superfície. Os esquimós pareciam algo meio-pássaro meio-homem, pois não vestiam as peles de animal de costume e sim peles de patos bravos das regiões árticas, com penas e tudo, emendadas umas nas outras.

Quando desembarcaram, o bebê, que a mãe carregava nu no capuz do seu kpoletah, surgiu subitamente até ao meio do corpo, arrastando-se pelo ombro nu da mulher, olhou-me com seus grandes olhos castanhos, depois estendeu o bracinho para mim e sorriu. Aquilo quebrou a reserva entre nós e os recém-chegados. Agarrei-lhe a mão pequenina. A mãe sorriu, sorriram as crianças, sorriu o pai, um dos mais belos tipos de esquimó que eu já vira. Tinha o nariz longo e bem talhado, queixo sólido como um .rochedo, e penetrantes olhos de lince. O cabelo pendia-lhe até aos ombros.

—Quem é você ? perguntei-lhe.

—Meu nome é Comock, informou o esquimó, com um sorriso de expectativa.

—De onde diabo vêm vocês?

—De muito longe, respondeu êle, de uma grande ilha, muito para lá. E apontou para o oeste. Como o senhor vê, o nosso umiak não é muito bom, acrescentou rindo, e a família riu com êle.
Recolhemo-los a bordo e, com aquela incrível geringonça a reboque, voltamos ao posto. Ele me contou a seguinte história...

Á dez invernos e dez verões, disse Comock, estamos vivendo numa ilha muito distante, em pleno mar. Veja, minha mulher tomou nota. Escreveu os números aqui no cabo do meu arpão, fazendo um corte para cada lua.

A terra onde antes vivíamos era pobre. Não havia morsas, nem veados e poucas focas. Eu tinha duas mulheres e muitos filhos. Não sabia mais como sustentá-los. Então tive uma idéia. Muito longe da minha terra, no mar, havia uma ilha que ninguém do meu povo jamais vira. Tive notícia dela pelo chefe branco de uma baleeira. Ele me disse que havia dias em que o céu ficava quase negro de aves, as grandes aves que roncam, e que havia muitos lagos, em volta dos quais elas criavam seus filhotes. Havia muitas raposas, muitos veados e muitos ursos e cardumes de morsas... e focas... muitas, muitas focas!

Aquela terra não saiu mais do meu pensamento. Diversas vezes falei sobre ela com as minhas mulheres. Todos concordávamos em que só havia um meio de chegar até lá: de trenó, através dos campos de gelo, no inverno, na lua de maior frio, quando havia menos probabilidades de que o gelo se rompesse e deslocasse.
—Dois dias de trenó, avisei eu à minha família. Vamos levar dois dias, se os cachorros estiverem bem fortes, se nós também estivermos fortes e se o gelo não estiver desigual.

Chegou o inverno. Tínhamos pouca comida... menos que na maioria dos invernos.

—Iremos, disse minha mulher.

—Sim, iremos, disseram meus filhos.

E havia outro homem, chamado Annunglung, que caçava comigo. Não era bom caçador, mas não tinha medo.

—Eu também vou, disse êle.

Sua mulher disse o mesmo. O sol baixava cada vez mais. Todos os dias observávamos o gelo do cimo dos altos penedos que se debruçam para o mar. O gelo estava ficando firme, pois fazia frio. Até que, finalmente, não havia mais água em parte alguma e tinham desaparecido os grandes fumos do congelamento.

—Chegou o momento de partirmos, disse eu. Twavee... depressa!

—Twavee! responderam todos.

Tínhamos três trenós e 12 cachorros para cada trenó. Eram bons cachorros. No começo, viajamos rapidamente em gelo liso, pois o vento tinha batido a neve fortemente e os pés dos animais eram tão rápidos que os meus olhos se turvavam ao olhá-los. Nunca tivemos tão pouca necessidade do longo chicote... Suas caudas nunca pendiam e os tirantes nunca tocavam a neve. Só paramos duas vezes para tirar o gelo que se acumulara entre os dedos dos cachorros.

As longas sombras que se projetavam na neve tornaram-se azuis como o céu. Desapareceu o brilho das ares tas do gelo. Não havia muita luz nas estrelas... tropeçávamos. Os cachorros ganiam. Estavam realmente cansados e nós também. Tínhamos de sacudir muito os nossos filhos para que continuassem acordados.

—Tiamak disse eu. Vamos parar.

—Ae, concordaram todos.

Os cachorros deixaram-se cair na , neve, cansados demais para brigar. Enquanto as nossas mulheres, sentadas ao abrigo dos trenós, cuidavam das crianças pequenas, eu e Annunglung partimos com as nossas facas de-neve. Por sorte, encontramos um monte de neve. Era boa neve. Quando cortada, as arestas eram agudas e não esfarelava. Cortamos bloco após bloco e construímos o nosso iglu.

Nossas mulheres entraram todas sorridentes, satisfeitas de poderem abrigar-se contra o ardor do frio. Acenderam as lâmpadas de óleo de foca e colocaram no chão os capachos de salgueiro e as peles de veado, enquanto as crianças mastigavam pedaços de foca crua. Nossas mulheres cortavam a carne de foca e enchiam-nos a boca e nós dizíamos que a noite estava cheia de bons sinais. De vez em quando, havia bramidos profundos e, depois, o deslocar de gelo, e eu dizia:

—Não se preocupem. O mar está sempre bramindo.
Mas eu receava que o gelo fendesse. E assim adormecemos, embora o nosso iglu fosse frio, como o são sempre os iglus novos.

Acordamos cedo. Ainda havia fogo nas estrelas. Fazia tanto frio que o nosso cuspe congelava antes de chegar ao chão. Estávamos ao largo, em pleno gelo, tão longe que eu já não podia avistar terra. E havia gelo desigual... muito gelo desigual. Avançávamos bem devagarinho, subindo e descendo, subindo e descendo por cima dos denteados montes de gelo... Uma criança que apenas começa a andar poderia acompanhar-nos.

—Precisamos continuar, dizia eu. Vejam, o céu não está me agradando.

—Não, o céu não está nos agradando, concordavam todos.
Começavam a passar nuvens em frente do sol, o vento aumentava cada vez mais e, por toda a parte, sobre o gelo, subia a fumaça da neve.

Prosseguimos. Pouco adiante encontramos gelo novo. Aí tínhamos de viajar muito depressa, pois o gelo cedia sob o nosso peso—se parássemos, íamos abrir um rombo e afundar. Mais adiante encontramos novamente gelo antigo e liso. Continuamos viajando rápido, embora o vento se tivesse tornado mais forte e não restasse mais um pedacinho de azul no céu. A fumaça de neve enchia o mundo e os nossos três trenós tinham de seguir muito perto uns dos outros, para não nos perdermos.

Eu não estava gostando nada daquele vento. Podia deslocar o gelo, pois soprava de lado da terra. A escuridão chegou cedo, tão cheio estava o céu de neve levantada pelo vento, e nós estávamos cansados e tropeçávamos.

—Chega, disse eu.

—Ae, concordaram todos.

As PAREDES do nosso iglu eram espessas. Assim mesmo, podíamos ouvir o vento lá fora. Quando acabamos de comer a carne vermelha, podíamos ouvi-lo com Tnais nitidez. A que distância estaríamos ainda da grande ilha?

—É estranho que, com todo este vento, não se ouça o menor ruído do mar. O gelo deve ser muito forte neste ponto, disse eu. Não dissemos mais palavras, pois as nossas pálpebras pesavam de sono.
Acordei subitamente... não sei por quê. Podia ouvir os grandes gemidos do vento, mas nenhum bramido do mar. Resolvi espevitar os pavios de musgo das lâmpadas de óleo de foca. Estava fazendo isso quando, de repente, senti que se aproximava de mim um longo e enorme rugido, cada vez mais forte. O chão tremia muito debaixo de mim. O gelo se abria. Cortou o nosso iglu ao meio! A lâmpada caiu. Não havia mais luz.

—Segurem-se uns aos outros! gritei na escuridão. Segurem-se uns aos outros! Do contrário, nos perdemos!

Os cachorros uivavam, as crianças choravam e minha primeira mulher gritava. Eu não podia ver, mas havia uma fenda de água a meus pés.

—Estamos todos juntos? gritei.

—Não, não estamos todos juntos, não estamos todos juntos! gritou minha mulher principal, desesperadamente. Os outros já iam vogando para longe. Eu mal podia ouvi-los—minha mulher jovem, a mulher de Annun glung, um de seus filhos, dois de meus filhos mais jovens e o meu segundo filho. Depois os seus chamados morreram à distância. Ficamos à escuta... chamamos novamente... mas só podíamos ouvir o rugir da tempestade.

A escuridão era negra, e eu tive de ir de um para o outro dos que restavam tateando-lhes as mãos. Tropeçávamos e caíamos quando andávamos, mas ficamos de mãos dadas e entramos no côncavo formado por alguns grandes blocos de gelo. Quando o céu clareou, tentamos ver através daquela fenda de água, mas estava coberta pela espessa fumaça do frio. E fiquei contente por não ver, pois, mesmo que víssemos, nada poderíamos fazer, e minha mulher de vez em quando ainda gritava, num acesso de desespero.

Voltei ao lugar onde estivera o nosso iglu. Tudo, exceto um trenó, havia desaparecido. Tudo que possuíamos: as esteiras de salgueiro, as peles de veado, as panelas de pedra, a lâmpada de pedra com que derretíamos a neve, todas as minhas facas, lanças e arpões. E então, subitamente, veio-me alguma coisa à lembrança e fiquei realmente assustado. Gritei para minha mulher:

—As pedras... as pedras... estão com você ?

Ela ficou imóvel, aterrada, e depois, rapidamente, levou as mãos à bolsa do seu kpoletah. Apalpou durante muito tempo. Por fim, disse:

—Sim, Comock, estão comigo.

Eram as pedras com que fazíamos fogo. —Não temos tempo para lamentações, eu disse. Tudo se perdeu. Temos apenas um trenó, a minha faca de marfim com que cortamos os blocos de neve para o nosso iglu e as suas pedras para fazer fogo.

Minha mulher disse:

—Ainda bem que temos alguma coisa, Comock.

—Sim, repliquei, mas não temos lanças, nem arpões... não poderemos matar ursos... nem poderemos matar focas.

—Temos os cachorros, tornou minha mulher. Se fôr preciso podemos comê-los.

—Ae, concordei. Temos os cachorros.

—Ae, disseram todos.

Durante uma lua inteira estivemos sobre o gelo quebrado, boiando no mar... Boiámos durante muitos dias numa direção, boiamos em outra direção durante muitos dias... E nós nos sentíamos muito pequeninos, boiando assim feito uns bobos sobre o mar.

Compartilhamos com os cachorros a carne de cachorro que comíamos.

—A carne de cachorro não aquece a gente como a carne de foca, disse alguém.

—Teremos que vigiar os cachorros, disse outro. Que faremos com todas estas crianças e sem lanças para matar ?

—Vamos ter de amarrar alguns dos cachorros, falou minha mulher. Os que estamos comendo são os mais fracos. Os perigosos são os mais fortes.

—Devemos ter paciência com os cachorros, disse eu, mesmo que eles tentem matar, pois vamos precisar deles ainda mais do que do fogo, se algum dia chegarmos a terra novamente.

Houve outra tempestade. Durante muito tempo, não pudemos ver nada. Mas quando a neve desapareceu do céu, vimos a borda do nosso gelo apoiada, a grande altura, sobre alguma coisa. Era terra.

—Deve ser a grande ilha, disse minha mulher.

—Deve ser, respondi.

Quando descemos nessa terra, construímos um iglu e, na escuridão, pois não tínhamos lâmpada, deitamo-nos para dormir.

—É estranho, disse alguém, a terra está tão silenciosa. Durante muito tempo não pudemos dormir por causa do silêncio da terra.

ANDAMOS muito à procura de boas pedras para fazer armas. Fomos muito longe nessa busca, embora estivéssemos todos muito fracos. Por fim, encontramos as pedras, e meus filhos mais jovens acharam um pedaço de madeira trazida pelo mar. Das pedras fizemos uma faca e uma ponta de lança e, cortando a madeira, conseguimos fazer um arpão. Todos riram, dizendo que já tinham visto melhores arpões.

Na manhã seguinte, levei comigo o meu cachorro-guia, para ver se encontrava algum respiradouro de foca. Não muito longe, no gelo, o animal parou e farejou um buraco. Esperamos aí o dia inteiro, até que a foca percorreu todos os seus respiradouros. Por fim começaram a subir as bolhas da sua respiração no buraco que eu vigiava, e matei a foca com o meu arpão.

Quando entrei no túnel arrastando a minha foca e abrindo caminho por entre os cachorros a pauladas, o iglu estava escuro. Todo o mundo fez muito barulho e os cachorros no túnel fizeram muito barulho também. Houve muita conversa e risadas e minha mulher logo extraiu óleo da foca e fêz fogo com as suas pedras.
Finalmente, tínhamos luz e pudemos ver as caras risonhas de todos. A foca que tínhamos diante de nós era muito grande. Comíamos e dormíamos e tornávamos a comer. Era tudo misturado.

Nos dias que se seguiram, fizemos mais e melhores facas e mais arpões, e, durante todos esses dias, tivemos focas.

—Os cachorros já não mostram as costelas, disse minha mulher, e você já viu crianças tão fortes como as nossas? Mas seria bom se tivéssemos umas novas peles macias para vestir.

Procuramos durante muitos dias. Ao longo de todo o caminho víamos ursos e focas, até que, finalmente, encontramos veados. Matamos os que pudemos, e minha mulher teve, assim, as peles para as nossas roupas.
Os dias, agora, eram todos claros. O gelo espalhava-se no mar e o sol quente descobria a terra. As grandes aves que roncam vieram do sul e fizeram seus ninhos nas beiras dos lagos. Com o tempo perderam as penas das asas. Então nós corríamos atrás delas e as apanhávamos.

De destroços de madeira trazidos pelo mar e de peles de foca fizemos um caíque e nele eu ia até às pequenas ilhas próximas. Em algumas delas havia morsas. De suas presas tiramos marfim para ferrar o nosso trenó, marfim para as nossas facas de neve, marfim para os nossos arpões e marfim para as agulhas de minha mulher.

Durante os dias mais quentes de verão estivemos acampados à margem de um rio, onde havia muito salmão.

Um dia, tínhamos acabado de pescar, quando as crianças vieram correndo para nós. Tinham os olhos muito abertos e diziam:

—Veio um monstro do mar! Está ali na praia!

Conduziram-nos até lá. Os grandes buracos negros pareciam olhos. Tinha sido empurrado até muito acima da água pelo gelo e era muito velho, como eu podia ver dali mesmo pelo musgo e o esbranquiçado da madeira. Minha mulher não queria aproximar-se.

—Pode sair alguma coisa dos buracos, disse.

—Não seja boba, respondi-lhe.

Assim mesmo, ela se manteve a certa distância. Com Annunglung e meus filhos subi ao navio. Era todo de boa madeira ... madeira suficiente para fazer deslizadores para trenós, cabos de lanças e arpões para dez vezes mais pessoas que dedos eu tenho nas duas mãos. Achamos panelas de ferro e, melhor que tudo, achamos machados e facas.

—Estamos ricos! disse eu.

—Sim, concordou minha mulher, estamos ricos, mas se ao menos o resto da nossa gente estivesse conosco, eles teriam tudo também. Estaríamos felizes todos juntos.

—Não se pode ter tudo, repliquei-lhe. Ninguém tem tudo.

—Mas se ao menos eu pudesse ter aqui os outros que partiram no gelo, insistiu minha mulher. Quando vêm as tempestades, eu não consigo afastar os seus gritos dos meus ouvidos. Tenho a certeza de que ouço as suas vozes.

O nosso segundo inverno na ilha foi um bom inverno, mas minha mulher falava mais da saudade que tinha da nossa velha terra e da nossa gente.

O MAIS VELHO de meus filhos estava crescendo depressa. Já era quase um homem e estava aprendendo rapidamente a manobrar o seu caíque. Era bom caçador e já tinha matado o seu primeiro veado.
Uma noite—era inverno outra vez e ele estivera fora dois dias com Annunglung, no gelo do mar—entrou no iglu com a sua primeira foca. Custou-nos a acreditar que ele pudesse ter matado uma foca tão grande.
—Foi ele mesmo, disse Annunglung. Foi uma luta violenta, mas ele a matou. Quando a foca veio ao respiradouro, êle se ergueu e lançou o arpão. A foca mergulhou tão rápido com a linha, que o derrubou sobre o gelo. Mas êle tinha a linha amarrada em volta do corpo e caiu atravessado sobre o buraco. Eu o ajudei a levantar-se, mas êle foi puxado outra vez e outra. Daí para diante, conseguia ficar a maior parte do tempo em pé, puxando a linha. Depois a linha veio facilmente. A foca estava morta.

Meu filho disse que qualquer um podia ter matado uma foca assim, uma criança podia ter matado uma foca assim, ou quase. Minha mulher disse:

—Estenda-se junto dela... É mais comprida do que você.

—Meus cachorros estão com fome, disse meu filho.

E saiu pelo túnel, seguido de todas as crianças, e minha mulher voltou-se para mim e disse:

—Comock, agora o nosso filho já é um caçador.

—Não, respondi, mas talvez o seja antes do fim deste inverno. Ainda tem de matar a sua primeira morsa e o seu primeiro urso.

DURANTE a lua dos dias mais curtos, Annunglung começou a ficar em casa. Alguma coisa se passava com êle. Nunca falava. Ficava sentado no iglu o dia inteiro, olhando apenas.
Uma noite voltamos com duas grandes focas, e lá estava Annunglung sentado, sem dizer nada. Vi pelo rosto de minha mulher que ela estava assustada. Ela me falou baixinho:

—Comock, você não deve mais deixar-me aqui sozinha com as crianças. Estou com medo. Você viu os olhos dele ?

—Não, respondi.

—Você precisa ver os olhos dele.

Quando nos sentamos para comer, não pudemos deixar de olhar para Annunglung, que não se sentou conosco, mas ficou afastado, perto da lâmpada, e não comendo nem mesmo a carne que botamos na sua mão.

—Você não está com fome, Annunglung ? perguntei.

Ele levantou o rosto, e a luz da lâmpada bateu-lhe nos olhos. Parei de mastigar a carne que tinha na boca, tão assustado fiquei. As pupilas de seus olhos tinham-se tornado muito pequeninas.

No dia seguinte, disse a meus filhos que fossem caçar sozinhos e escondi as lanças e os arpões de Annunglung. As facas, minha mulher me informou, éle as guardava sempre debaixo da sua esteira. Escondi-as também. Houve muitos dias de tempestades. Meus filhos não traziam focas para casa. Estávamos começando a passar fome.

—Que os nossos filhos fiquem em casa, disse minha mulher. Vá você desta vez buscar uma foca.
Fiquei fora dois dias, mas as tempestades eram muito fortes e não pude caçar nada. Ia a noite em meio quando voltei para casa. Apesar de ser tão tarde assim, vi uma luz clara através da janela. Compreendi então que devia ter acontecido alguma coisa. Quando penetrei no iglu, minha mulher estava sentada e havia terror no seu rosto. Meus filhos estavam igualmente sentados e aterrorizados. Annunglung estava sentado, imóvel e silencioso como uma pedra, mas havia nos seus olhos algo que me dizia que três homens não teriam forças para segurá-lo.

Durante toda aquela noite e todo o dia seguinte, montamos guarda uns após outros, e eu procurava pensar no que devia fazer.

— Talvez êle fique bom, disse minha mulher.

Mas eu sabia que êle nunca ficaria bom. Tinha vincos profundos no rosto e os dentes fortemente cerrados. Seus dentes rangiam algumas vezes e tinha sangue da língua na boca. Nos seus olhos havia aquele brilho estranho e as pupilas de seus olhos estavam muito pequeninas mesmo.

Nessa noite, quando todo o mundo dormia e eu vigiava, quase dormindo também, ouvi um ruído. Era Annunglung. Observei-o com os olhos quase cerrados. Ele se levantou e olhou-me durante muito tempo, depois olhou para meus filhos durante muito tempo. Em seguida, olhou para minha mulher e para as crianças. Procurou debaixo do capacho e não encontrou a faca.

Então, sem ruído, entrou de gatinhas no túnel do iglu. O túnel era estreito e êle não poderia voltar-se com facilidade. Segui-o e alcancei-o quando chegou ao fim do túnel e se ergueu para apanhar uma faca e a lança. Então êle me percebeu, mas eu golpeei. Ele golpeou também, e eu fiquei bem contente por ter atacado primeiro. Se assim não fizesse, eu não estaria mais vivo. Foi o sangue dele que os cachorros farejaram primeiro.

Quando voltei ao interior do iglu, ninguém tinha ouvido a luta nem a briga dos cachorros. Estavam todos dormindo.

A CAÇA melhorou e não houve mais falta de nada naquele inverno, nem no seguinte, nem no outro. Nossos filhos estavam crescendo. Uma filha estava quase mulher feita.

—Ainda bem, disse minha mulher.

Era demais para ela cuidar sozinha da caça que eu e nossos filhos trazíamos e costurar as peles para as nossas botas e para a nossa roupa. Então chegou o dia em que meu filho, sozinho, matou o seu primeiro urso com a lança.

—Agora, Comock, nosso filho já é um homem, disse minha mulher.

—Ae, respondi, agora êle já é um homem.

Minha mulher continuou falando, como costumam fazer as mulheres.

—O fato de nosso filho já ser um homem nada significa para você, Comock?

—Que quer dizer com isso ? perguntei-lhe.

—Como poderemos continuar vivendo nesta ilha sem uma esposa para o nosso filho, que já é um homem? Além disso, continuou ela, temos os outros filhos também. Muito breve eles matarão também o seu primeiro urso. Nós somos apenas uma família em toda esta ilha, Comock. Temos de ir embora daqui algum dia. Se não, vamos extinguir-nos nesta grande ilha, com todos os seus veados, todos os seus ursos e todas as suas morsas.

—Tenho medo do gelo que há entre nós e a nossa velha terra, respondia eu. Poderá quebrar durante- a nossa travessia.

—Se o gelo quebrar, não será tão ruim como se ficarmos aqui, respondia sempre minha mulher.
E para isto eu não tinha palavras na boca. Então vieram os dias de maior frio. As noites desses, dias eram as noites das Grandes Luzes e essas Grandes Luzes eram como o vermelho da carne pálida e como o pêlo de inverno do urso e como a alga do mar. Algumas vezes as Grandes Luzes eram tão vivas, que a lua ficava tão verde como o gelo claro e toda a terra ficava verde como o gelo claro e toda a brancura do mar ficava verde como o gelo claro. E essas luzes moviam-se lentamente como ondas longas no mar, ou então giravam ou saltavam, pois nunca estavam paradas. Minha mulher dizia que aquelas Grandes Luzes eram, sem dúvida, espíritos de crianças não nascidas brincando no céu, e disse que era muito provável que continuassem brincando no céu ainda muitos dias. Chegara o momento de atravessarmos o gelo do mar, disse ela.

Línguas de Desprezo

Os maoris, polinésios indígenas da Nova Zelândia, orgulham-se justamente de nunca se haverem rendido aos ingleses; assinaram o pacto como iguais. Assisti com Rangi ao estranho ritual do desafio quando da aproximação do emissário inglês vestido de vermelho, numa reconstituição da assinatura do tratado. Um momento depois, 150 maoris em trajes antigos rugiram em seu desafio executando uma dança de guerra, findo o que botaram ao mesmo tempo 150 línguas de fora no gesto de supremo desprezo dos maoris. Foram feitos depois longos e cansativos discursos. Mas cada dis curso, de acordo com o costume maori, era seguido de novas danças ou de cantos, como para compensar a enfadonha oratória.

Quando o espetáculo continuou com a representação de uma batalha famosa, Rangi observou:

—Os maoris sempre se distinguiram pelo seu cavalheirismo. Numa batalha, soubemos que os ingleses estavam com pouca munição. Dividimos a nossa munição e mandamos a metade para os ingleses para que pudessem continuar a lutar.

COMOCK3

QUANDO PARTIMOS, ainda havia algumas estrelas. Tínhamos cachorros fortes e dois trenós, 12 cachorros para cada trenó. Viajamos rápido durante todo o dia. Não paramos para caçar focas, nem para caçar ursos. No terceiro dia, avistamos terra. Era a nossa própria terra... a terra que se debruça sobre o mar.
.Mas aí o gelo era desigual e acumulado em montes tão altos como eu nunca tinha visto. Um dos nossos trenós caiu de uma elevação, com tanta violência que se quebrou ao meto. Tivemos de abandoná-lo com sua carga de boas peles de veado, de boas panelas e uma foca inteira. Continuamos nossa viagem. Demorou muito, mas, finalmente, chegamos perto da terra que se debruça sobre o mar.

Tivemos de parar. Estávamos muito cansados para continuar. E então senti qualquer coisa. Era o gelo... o gelo se movia. Gritei:

—Twaveel Depressa! Precisamos voltar. Precisamos sair deste gelo crespo.

Jogamos fora metade da carga do trenó e voltamos. Levamos o dia inteiro para chegar novamente ao gelo liso, e, durante todo o tempo, o campo de gelo em que nos encontrávamos continuou boiando. Ao cair da noite, a terra que se debruça sobre o mar parecia pequena.
Vogamos ao acaso durante muito tempo... duas luas. Então, uma manhã, avistamos terra novamente, a grande terra de um lado, mas, mais perto de nós ainda, uma elevada ilha, que se erguia quase a prumo desde o mar.

O nosso gelo encostou nessa ilha e nós subimos para a terra. Escalamos os altos penhascos e instalamos o nosso acampamento lá no cume. Vivemos aí o resto do inverno, a primavera e o verão seguintes, e tínhamos ovos de pato bravo para comer, peles de pato bravo para roupa. Além disso, apanhávamos pombas do mar nos rochedos e caçávamos focas também, algumas vezes.

Nesses dias andávamos muito preocupados, pois não sabíamos como sair daquela ilha. Entre nós e a grande terra havia sempre a maré, rápida como um rio, e, mesmo que houvesse gelo no mar, não era gelo em que pudéssemos atravessar, pois era solto e agitado, sempre rodopiando e virando, subindo e afundando.

—Se não houvesse gelo e tivéssemos um umiak, disse eu, poderíamos atravessar.

—É, respondeu alguém, c todos riram muito. Se tivéssemos as pernas bastante compridas, poderíamos atravessar o mar a vau.

—Assim mesmo, se tivéssemos um umiak, poderíamos atravessar, disse minha mulher.

—Não temos madeira, declarou alguém.

—Mas temos algumas peles de foca, disse eu, e talvez pudéssemos arranjar mais. Os cabos dos nossos arpões são de madeira—e talvez possamos arranjar ainda mais madeira.

Começamos a procurar ativamente por toda a parte, à beira-mar, e a busca durou muitos dias. Encontramos um pouco de madeira enterrada — na areia. Era velha e não muito forte. Embora só tivéssemos metade da madeira que precisávamos, comecei a construir o umiak.

Finalmente, alguém disse: —Não vai haver nenhum umiak. E, durante muitos dias, houve apenas a metade de um umiak e ninguém sabia que fazer. Então, um dia, ouvi gritos de minha mulher e dos nossos filhos. Olhando para baixo, vi que estavam cavando a areia da praia.

—Os ossos de uma baleia, gritavam, os ossos de uma baleia!

Não pude acreditar no que ouvia. Eram bons ossos aqueles. Eram grandes ossos, e deram para acabar de construir o umiak. Então veio todo o mundo e sentamo-nos em volta, rindo.

—É um umiak engraçado, diziam todos.

Servindo-nos dos tirantes do trenó, descemos o umiak da beira do íngreme rochedo para a água. Entramos nele alguns de nós, mas, mesmo com poucas pessoas dentro, estremeceu de ponta a ponta.

—Não dá para levar-nos, disse minha mulher.

—Dá, sim, repliquei-lhe. Arranje-me um rolo de boa corda de pele de foca e as bexigas das focas que eu lhe disse para guardar.

Amarrei a corda em volta do umiak, depois enchi de ar as bexigas e arriarrei-as aos lados e disse:

—Agora, vocês que sempre duvidam, entrem. Entraram todos.

—Vai dar certo, Comock, vai dar certo, exclamou minha mulher.

—Ae, repetiram todos.

Esperamos alguns dias para ver se o vento parava. Embora o gelo tivesse desaparecido completamente, mesmo com pouquíssimo vento o mar estava sempre um pouco grosso. Esperamos mais alguns dias e, neste dia de hoje, minha mulher disse:

—Este é de todos o dia mais calmo.

—Esperaremos mais, respondi.

—Vamos, disse ela.

—Não, disse eu.

—Sim, tornou ela.

—Não, respondi.

E ela afastou-se e sentou-se sozinha, imóvel como uma pedra. De repente houve grandes gritos:

—Umiak ! Umiak !

Ergui-me e vi! Vi a sua vela branca dando volta ao bico do cabo, e embora o mar não estivesse muito calmo, descemos o nosso umia\ do alto dos rochedos para a água. Entramos todos, e minha mulher disse:

—Tenho aqui uma vara e, se alguém se mexer, sentirá o peso dela, pois o mar não está muito calmo.
E, durante toda a viagem, ela montou boa guarda com a sua vara.

ASSIM, concluiu Comock, que viemos ao seu encontro através do mar, e o senhor nos recolheu no seu barco, e aqui estamos.

—Ae, disse a mulher.

—Ae, disse Comock, com alívio na face. Ae, e agora não há mais palavras na minha boca.

Maori Ingles engana