Maori DiscrusaFOTOS: BRIAN BRAKE

"Somos os últimos Maoris"

Visita a uma raça altiva cujos antepassados povoaram a Nova Zelândia numa época perdida nas brumas do tempo por BEN LUCIEN BURMAN

Publicado na "Seleções do Reader's Digest " (*) de dezembro de 1966.

O CHEFE DE cabelos brancos ajeitou nos ombros majestosos o manto cerimonial de penas de quívi e disse:

—Somos os últimos maoris.

A seu lado, o outro chefe, um homem de rosto enrugado, assentiu tristemente:

—De hora em hora os nossos filhos se tornam mais europeus. Daqui a 20, ou talvez 30 anos, não restará na Nova Zelândia um só maori que siga os velhos costumes maoris.

Estávamos na sonolenta povoação de Waitangi para onde os maoris de toda a Nova Zelândia haviam acorrido para comemorar a assinatura do tratado de paz com os ingleses em 1840. Acima de nossas cabeças, aviões militares transpunham a barreira do som, ao mergulharem saudando a ocasião.

—Eram bem melhores os velhos tempos—disse o primeiro chefe.— Tínhamos os nossos barcos, as nossas redes e o nosso peixe. Tratávamos da nossa gente quando ficava doente e dávamos-lhe comida quando tinha fome. Éramos uns gigantes naquele tempo.
Rangi, o jovem e atarracado maori de cabelos pretos que era funcionário do governo e me acompanhava, acendeu o velho cachimbo. Seus modos habitualmente joviais foram substituídos pela seriedade.

—Penso às vezes que eles têm razão—comentou.—Às vezes penso que não ganhamos nada do Ocidente a não ser bons banheiros e úlceras.

Línguas de Desprezo

Os maoris, polinésios indígenas da Nova Zelândia, orgulham-se justamente de nunca se haverem rendido aos ingleses; assinaram o pacto como iguais. Assisti com Rangi ao estranho ritual do desafio quando da aproximação do emissário inglês vestido de vermelho, numa reconstituição da assinatura do tratado. Um momento depois, 150 maoris em trajes antigos rugiram em seu desafio executando uma dança de guerra, findo o que botaram ao mesmo tempo 150 línguas de fora no gesto de supremo desprezo dos maoris. Foram feitos depois longos e cansativos discursos. Mas cada dis curso, de acordo com o costume maori, era seguido de novas danças ou de cantos, como para compensar a enfadonha oratória.

Quando o espetáculo continuou com a representação de uma batalha famosa, Rangi observou:

—Os maoris sempre se distinguiram pelo seu cavalheirismo. Numa batalha, soubemos que os ingleses estavam com pouca munição. Dividimos a nossa munição e mandamos a metade para os ingleses para que pudessem continuar a lutar.

Tapu é Tabu

A cerimônia terminou ao pôr do Sol. Depois, na casa de hospedagem de Waitangi, senteime junto a Pangi e de outros maoris, conversando e rindo. Perto dali, recortada pela luz do crepúsculo, havia uma árvore curiosa e de forma estranha, rodeada por uma cerca baixa de arame. Perguntei o motivo daquela cerca. Com espanto para mim, um pesado silêncio caiu sobre os presentes. Virei-me para o maori que estava ao meu lado e tornei a fazer a pergunta.

—Não sabemos—respondeu êle nervosamente.

O silêncio continuou, tornando-se mais opressivo. Por fim, um maori disse em voz baixa:

—Sabemos muito bem por quê. Mas isso é uma das coisas de que não falamos, nem mesmo uns com os outros.

Um momento depois, haviam-se retirado.

—Você esbarrou num traço fundamental da natureza maori—disse-me Rangi.—Por mais refinado que seja um maori, é a criatura mais supersticiosa do mundo. Aqueles homens não falaram porque a árvore é tapu, ou seja, tabu em maori.

Olhou para os galhos de forma curiosa que se balançavam à brisa leve.
—E uma árvore trágica, cheia de maus presságios e morte. Acho que mataram debaixo dela uma bela moça maori. De vez em quando, alguém tira uma folha ou um galho e fica aleijado, é assassinado ou mandado para o hospício.

— O pior—continuou—aconteceu quando a Rainha da Inglaterra esteve aqui na sua última visita. Veio gente de toda a Nova Zelândia para vê-la. Nesse meio estava um grupo de 17 maoris, que viajaram num ônibus. Um moço do grupo, que zombava dessas idéias antiquadas de tapu, arrancou deliberadamente duas ou três folhas da árvore. Na viagem de volta, o ônibus virou e os 17 passageiros morreram.

Alguns dos maoris que haviam dançado como guerreiros no espetáculo apareceram, resplandescentes nos seus antigos trajes em preto e ouro.

—Pode-se dizer que o tapu é quase a base da vida maori—disse-me um musculoso guerreiro que nos dias comuns trabalha em um guichê como caixa de um banco de Wellington.—E um método de proteger a caça. Se determinado animal está ficando escasso, o tohunga, ou mágico, declara-o tapu e ninguém mais pode caçá-lo. É também um método de proteger a saúde. Se certos mariscos não são bons para comer em determinada época do ano, o tohunga declara-os simplesmente tapu.

Linha Divisória

Um padre católico juntou-se a nós. Era um homem pequeno e cheio de vivacidade, que poderia passar por um dos joviais gnomos dos contos de fadas. Era Padre Wanders, o missionário que chegara da Europa muitos anos antes e se tornara parte tão integrante do cenário maori como as montanhas escuras no horizonte.

—Estes maoris são um povo admirável—disse-me êle.—São extraordinariamente inteligentes e profundamente espirituais. Mas de vez em quando fazem alguma coisa que nos enche de perplexidade. Eu havia feito alguns favores à família de uma velha senhora maori e ela me deu de presente um tikj de diorito: uma espécie de berloque a que os maoris dão muito valor. Como muitos tikjs, esse era uma herança de família, que vinha passando de mão em mão havia gerações. Antes de dar-me o presente, a senhora conversou longamente com o ti\i, como se êle fosse uma pessoa humana. Explicou quem eu era e o que havia feito pela família a fim de que êle pudesse compreender por que me estava sendo dado. Terminou dizendo que iria rezar constantemente para que êle fosse feliz na sua nova vida.

Fomos de avião até às fontes de águas termais de Rotorua, fumegantes por toda a parte com nascentes quentes borbulhantes e gêiseres rugidores, no coração da terra maori. Mulheres maoris lavavam roupa em tanques cheios de um suprimento natural e sempre renovado de água quente. Numa igrejinha protestante próxima, os sinos começaram a tocar musicalmente.

O nosso acompanhante, um solene e elegante maori, escutou e disse:

—Nós, maoris, somos talvez o povo mais tolerante da Terra em matéria de religiões. Há famílias em que um filho é protestante, um católico, um mórmon e outro ringatu. Ringatu é uma seita maori especial, que se baseia em grande parte no Velho Testamento.

— Quando—continuou ele—os missionários protestantes e católicos aqui chegaram no começo do século, os maoris ficaram confusos. Não podiam ver muita diferença entre as duas religiões. Mas um antepassado meu era o chefe nessa ocasião e encontrou uma solução bem simples. Traçou uma linha no centro da povoação e disse: "Os que estão deste lado serão protestantes. Os do outro lado serão católicos-." E assim continua até ao dia de hoje.

Maori RitualSaga em linguagem de canto e sinaisDança ritual dos guerreiros

A Perna Maori

O nosso acompanhante levou-nos paia o parque nacional onde grandes fontes de lama borbulhavam e explodiam com um barulho como de rãs bêbedas. Chegamos a um modelo de uma antiga pa, ou aldeia fortificada. Em lugares assim, com paliçadas, fossos e ameias, os maoris haviam resistido aos invasores e festejavam a vitória comendo alegremente os inimigos.

Um velho de longos cabelos brancos examinava atentamente as complicadas madeiras maoris esculpidas.

—É um tohimga—disse Rangi.—

Esses velhos mágicos maoris não são mais o que eram antigamente, mais ainda são muito poderosos. Com um brilho nos olhos pretos, Rangi contou a história de um jovem soldado maori que caiu num poço de água fervente e queimou as duas pernas. O médico do Exército disse que ele devia tratar o homem, pois era um soldado. O tohunga insistiu em assumir a responsabilidade visto o homem sei um maori. O resultado foi que o tohunga tratou uma perna e o médico a outra. A perna do tohunga sarou primeiro. Mais tarde, o soldado chegou a ser um famoso jogador de futebol. Sempre que êle dava um chute e conquistava um gol, os maoris presentes na assistência gritavam: "A perna maori não falha!"

Sete Canoas Lendárias

Eu tinha ouvido falar nas grandes canoas em que a lenda diz que os maoris dos tempos antigos chegaram à Nova Zelândia, a que deram o nome de "Terra das Compridas Nuvens Brancas". Eram sete canoas e os ocupantes delas foram os fundadores das sete tribos principais da ilha. Os maoris podem traçar a sua origem até esses lendários barcos. Quando os homens maoris se encontram, uma das primeiras coisas que fazem é recitar a sua ascendência até essas canoas individuais. Todos os nomes em todas as gerações de todos esses séculos têm de ser aprendidos de cor; um maori que tem de escrevê-los para lembrar-se deles fica para sempre desmoralizado.

Fomos de carro até Maketu, na Baía da Abundância, onde uma das canoas havia aportado. O lugar de onde partiram as canoas é o enigma do Pacífico Sul. As lendas maoris dizem que vieram da distante terra de Hawaiki e, antes disso, da índia. Os estudiosos dizem que Hawaiki poderia ser Taiti ou alguma outra das Ilhas da Sociedade ou de Cook. Thor Heyerdahl, navegador norueguês que fêz a viagem na jangada Kon-Tiki, afirma que como os outros polinésios, os maoris vieram da América do Sul.

Vi muitos maoris que podiam passar por índios pueblos ou navajos do Sudoeste dos Estados Unidos. Encontrei semelhanças na côr da pele, na forma da cabeça, e muito do conceito de vida. O antigo dinheiro de contas dos maoris parece-me exatamente igual ao wampum que os índios norte-americanos usavam para o mesmo fim.

Deixamos a costa do mar e rumamos para as montanhas. Fomos encontrar um mundo diferente, de paisagem sinistra e sombria. A chuva caía constantemente. Estávamos na região de Urewera, cujos belicosos habitantes de lá desciam antigamente para saquear os vales.

Num campo, um maori caminhava atrás de um arado, sob o aguaceiro.
—O maori é um verdadeiro filho da Natureza—disse Rangi.—Tem um fantástico conhecimento das plantas. Um maori meu amigo foi capturado pelos alemães na Segunda Guerra Mundial. O campo de prisioneiros foi atacado por um terrível surto de escorbuto. Uma delegação de prisioneiros foi procurar o comandante do campo a fim de pedir-lhe verduras frescas. "Não há mais verduras frescas na Alemanha", respondeu o comandante. Meu amigo maori disse prontamente: "Se me deixarem ir até ao bosque atrás do campo, encontrarei as verduras."

—O comandante consentiu. Ao anoitecer - continuou Rangi—meu amigo voltou carregado de verduras. Para os ocidentais, aquilo tudo não passava de mato sem valor. Mas o maori sabia que eram um excelente alimento. Em poucos dias o escorbuto estava dominado.

Chegamos ao alto de uma montanha. Abaixo de nós, as sombrias florestas de Urewera se estendiam até ao infinito.

—Havia antigamente uma sentinela aqui para não deixar ninguém entrar—disse Rangi.—Ainda hoje, eles são muito desconfiados em relação aos estranhos.

Maori Ingles engana

Novo Costume, Nova Geração

Paramos numa cabana. Lá dentro, um maori de meia-idade e sua esposa receberam-nos cortêsmente. Tinham maneiras reservadas e rostos melancólicos. Enquanto comíamos, soubemos que o velho pai, chefe daquela área, estava no quarto ao lado, prostrado com um ataque cardíaco.

—Deseja fazer o discurso tradicional de saudação—disse o filho.— Está realmente muito doente, mas temos de fazer-lhe a vontade.

Entramos no quarto do doente. O velho sentou-se devagar na cama. O rosto era delicado e sensível, embora profundamente marcado pelo sofrimento.
—Sejam bem-vindos à terra de Urewera—disse ele em maori e durante quase um quarto de hora falou, movendo os braços em gestos graciosos como os de um dançarino.

O seu discurso era cheio de comparações complicadas e floridas metáforas. Eu só podia compreender as palavras quando o filho as traduzia, mas o ritmo poético não precisava de intérprete. Terminou afinal e eu escutei Rangi recitar a sua genealogia. Terminada esta, o velho recitou solenemente a sua, enumerando geração após geração de chefes e tohufigas, até à sua canoa originária.

Durante a recitação, o neto entrou para ouvir. Era um garoto maori moderno, de rosto brilhante, que devia ter os seus 11 anos e estava em visita à casa, vindo de Auckland. Em dado momento, saiu do quarto e voltou com várias tiras de papel escritas compactamente.

—Conheço os meus antepassados também—disse êle com orgulho.—Estão todos escritos aqui, vovô.

O rosto do velho se contraiu com o choque.

—Você é desses que precisam escrever o nome num papel?—perguntou êle.

O menino acenou com a cabeça. O velho ficou muito tempo em silêncio e afinal falou lentamente:

—E o novo costume e a nova geração. Se um maori já não sabe mais dizer os nomes dos seus antepassados sem lê-los num papel, já é tempo de eu deixar a Terra.
Sacudiu tristemente a cabeça e disse:

—Somos os últimos maoris.