Martin

A Arte Sagrada de Shakespeare

Martin Lings
Adquira este importante livro diretamente com a Polar Editorial, São Paulo, 2004.
(Tradução de M. Soares de Azevedo)

I
A Arte Sagrada

Nas últimas décadas, tem havido um considerável aumento de interesse pela Idade Média. Não há dúvida de que em parte isso se deve a uma reação; no entanto, trata-se também, e muito mais, de um caso da ignorância dando lugar ao conhecimento. Em outro sentido, é simplesmente a volta à superfície de algo que sempre existiu e que está sempre sendo redescoberto. Não poderíamos dizer que, no fundo, sempre sentimos a superioridade da Idade Média em todos os lugares em que permaneceu conosco e em que não deixou de ser acessível, apesar da barreira erguida pelo Renascimento? Por exemplo, na poesia de Dante, ou — para dar um exemplo mais acessível e inevitável ainda — em sua arquitetura? Este sentimento implica também, ainda que subconscientemente, o reconhecimento de uma superioridade mais geral, uma vez que é totalmente impossível que as grandes catedrais normandas e góticas tivessem surgido de uma época que não apresentasse uma excelência interior que correspondesse a estas manifestações exteriores superlativas.

Uma das principais razões para o aumento do interesse pela Idade Média é, em si mesma, altamente significativa: durante os últimos cinqüenta anos os europeus têm se interessado pela arte de outras civilizações mais que em qualquer outra época, e isto, sem dúvida, extirpou muitos preconceitos e abriu a porta para uma certa objetividade e frescor de julgamento. Depois de terem conhecido alguns dos melhores exemplos da arte hindu, chinesa e japonesa e, como que voltando-se para sua própria civilização, muitas pessoas, ao voltarem sua atenção para a arte de sua própria civilização, percebem que seu ponto de vista foi mudado irrevogavelmente. Após contemplarem uma grande paisagem chinesa, por exemplo, em que o mundo aparece como um véu de ilusão além do qual, quase visível, reside a Realidade Infinita e Eterna, ou após terem vislumbrado esta mesma Realidade através de uma estátua de Buda, elas encontram dificuldade em levar a sério uma pintura tal como a famosa Madona de Rafael, ou o afresco da Criação de Michelangelo, para não falar de sua escultura, e tampouco Leonardo as satisfaz. Mas as pessoas percebem que podem levar verdadeiramente a sério, e mais a sério do que antes, algumas das primitivas pinturas senesas, como a Anunciação de Simone Martini, por exemplo, ou a estatuária e os vitrais de Chartres, ou os mosaicos dos séculos XII e XIII em São Marcos de Veneza, ou os ícones da Igreja ortodoxa.

A razão pela qual a arte medieval pode ser comparada com a oriental como nenhuma outra do Ocidente é que, indubitavelmente, a perspectiva medieval, como a das civilizações orientais, era intelectual. Ela considerava este mundo sobretudo como uma sombra ou símbolo do mundo vindouro, e o homem como uma sombra ou símbolo de Deus; e uma tal atitude, para ser operativa, pressupõe a presença de intelectuais, pois as coisas terrenas só podem se ligar a seus arquétipos espirituais através da faculdade da percepção intelectual, a intuição que penetra através do símbolo até a realidade universal que está mais além. Nas civilizações teocráticas, ainda que o artista não fosse um intelectual, ele obedecia a cânones estabelecidos sobre unia base intelectual.

Em seu sentido mais completo, a arte sagrada é a arte que se conforma a cânones fixados não por indivíduos, mas pela autoridade espiritual da civilização em questão, como era o caso da arquitetura medieval cristã, do canto gregoriano, do antigo drama grego, do teatro Nô japonês, da dança e da música do templo hindu - para dar só alguns exemplos — e tal arte é sempre algo como um critério e também uma fonte de inspiração potencial para obras menos centrais.

Um retrato medieval é acima de tudo um retrato do Espírito que resplandece por detrás de um véu humano. Em outras palavras, ele é como uma janela que se abre do particular para o universal, e embora se encontre incrustado em sua própria época e civilização e seja eminentemente típico de um período e lugar determinados, tem ao mesmo tempo, em virtude desta abertura, algo que não pertence nem ao Oriente nem ao Ocidente, nem pertence a uma época mais do que a outra.

Se a arte renascentista carece desta abertura para o universal e é totalmente limitada à sua própria época, é porque sua perspectiva é humanista; e o humanismo, que é uma revolta da razão contra o intelecto, considera o homem e outros objetos terrenos inteiramente por si mesmos, como se não houvesse nada além deles. Ao pintar a Criação, por exemplo, Michelangelo trata Adão não como um símbolo, mas como uma realidade independente; e desde que ele não retrata o homem à imagem de Deus, o resultado inevitável é que ele retrata Deus à imagem do homem. Há mais divindade subjacente no retrato de São Francisco de autoria de Simone Martini do que na representação que Michelangelo faz do próprio Criador.

Shakespeare nasceu menos de três meses após a morte de Michelangelo, e se diz freqüentemente de ambos que são dois dos "grandes gênios do Renascimento". Entretanto, como situar Shakespeare à luz de uma abordagem intelectual que aumenta ainda mais, se isto é possível, o nosso respeito por Dante, mas que diminui bastante nossa estima por vários outros cuja proeminência tem sido inquestionada durante tanto tempo? Os capítulos seguintes são uma tentativa de responder a esta questão mais detalhadamente; mas uma resposta geral pode ser dada imediatamente. Citemos, como pedra de toque, uma síntese magistral da diferença entre a arte renascentista e a medieval: "Quando estamos diante de uma catedral românica ou gótica, nos sentimos no centro do mundo; estando em frente a uma igreja renascentista, barroca ou rococó, nos sentimos apenas na Europa."1 Ora, sem tentar dar a Shakespeare um lugar tão essencial na arte da Cristandade como o que é ocupado pelas catedrais ou pela Divina comédia, será que não poderíamos dizer que estar presente a uma encenação adequada do Rei Lear não é simplesmente assistir a uma peça, mas sim testemunhar, misteriosamente, toda a história do gênero humano?

Mas esta observação provavelmente não poderia ser aplicada à maioria dos escritos de Shakespeare, e se desejamos formar qualquer juízo do dramaturgo maduro cuja perspectiva conferiu-lhe uma universalidade que é um prolongamento da universalidade da Idade Média, a primeira coisa a ser feita é, no momento, pôr de lado a maioria de suas peças, de modo a não confundir a questão. Poucos escritores, como Shakespeare, podem ter se desenvolvido tanto durante o seu período de trabalho. No fim do século xvi, ele já havia escrito algo em torno de 22 peças; mas de nenhuma delas se pode dizer que represente sua maturidade, embora algumas dêem (2) de várias maneiras, uma antecipação inequívoca do que estava por vir.

Já não resta dúvida de que aos trinta anos5 ou antes, Shakespeare estava familiarizado com várias doutrinas - algumas verdadeiramente esotéricas, outras meramente ocultistas - que interessaram tão apaixonadamente aos dramaturgos de Londres e outros escritores de então, bem como aos aristocratas que os sustentavam, protegiam e encorajavam, inclusive os dois sucessivos patronos(4) dos atores para quem Shakespeare escreveu suas peças e com os quais atuou. E desnecessário dizer que a corrente principal do legado místico da Idade Média era uma corrente cristã; porém, ao final do século XVI, ela foi engrossada por muitas outras correntes - pitagórica, platônica, cabalista, hermética, iluminista, rosicruciana, alquímica. A margem de algumas destas correntes tradicionais estavam ciências tais como a astrologia e a magia, e muitas mentes foram cativadas e mesmo monopolizadas por assuntos secundários desta espécie.

Mas, essencialmente, as tradições não-cristãs coincidiam com o misticismo cristão, a despeito de diferenças de terminologia e perspectiva. Elas se preocupavam, primeiramente, com os meios para purificar a alma de sua natureza decaída e, finalmente, com o fruto desta restauração do estado primordial, a reunião beatífica da alma com Deus. Shakespeare, como Lyly, Spenser, Chapman e Ben Johnson -para falar somente de alguns — estava bem consciente de que o resultado do matrimônio químico do enxofre e do mercúrio, ou do "Rei e da Rainha" (a magnum opus dos alquimistas), é a alma ressuscitada e perfeita, e que, portanto, a obra alquímica é, assim, um primeiro estágio indispensável na via que leva à união mística da alma perfeita com o Espírito Divino. De fato, esta união é o tema do poema alquímico de Shakespeare "A fênix e a tartaruga", como Paul Arnold demonstrou em seu comentário detalhado;(5) e se alguns objetam que este poema atinge uma maturidade extremamente profunda, que é difícil de ser contada entre as obras dos meados de 1590 (6) essa mesma união — o matrimônio precedido e condicionado pela provação e purificação - é nada menos que o tema de mais de uma das primeiras peças de Shakespeare. Com relação a isto, o leitor deve somente olhar de relance os capítulos bem documentados de Arnold sobre Trabalhos de amor perdidos e 0 mercador de Veneza1 ou o capítulo de Jean Paris sobre o "teatro alquímico" em Shakespeare*

O ponto a ser assinalado aqui não é o de que muitas das primeiras peças tracem simbolicamente o caminho dos Mistérios, mas sim que elas eram muito teóricas para serem plena e "concretamente" vinculadas aos mistérios. Na via esotérica, o conhecimento doutrinai tem de ser obtido pela mente antes de ser assimilado existencialmente pelo homem como um todo; e este processo de desenvolvimento reflete-se externamente na ordem cronológica de suas peças, pois uma coisa é fazer uso de uma reunião de símbolos, e outra é entrar totalmente em seu simbolismo.
Para nos fazermos compreender melhor, vamos supor que Shakespeare não tivesse vivido até alcançar sua maturidade ou, em outras palavras, que tivéssemos que julgar sua grandeza tomando como base Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão, O mercador de Veneza, Ricardo II, Henrique IV, Muito barulho por nada, Como gostais, Júlio César e Noite de Reis, sendo que estas são, provavelmente, as melhores entre as suas primeiras peças. A distância entre esta apreciação e a que nós, felizmente, estamos aptos a fazer, seria completamente diferente de um juiz para outro, mas, em qualquer caso, não poderia deixar de ser bem grande. Pois foi somente após estas peças terem sido escritas, isto é, justamente após a virada do século, que veio uma mudança nítida e permanente, não na orientação, e sim na intensidade. E como se Shakespeare tivesse subitamente se atracado com o universo depois de tê-lo contemplado algum tempo com uma serenidade semidesapegada. Ele passou de sério, que já era, para mortalmente sério. Esta mudança chama nossa atenção especialmente em Hamlet e, exceto por um ou dois rápidos olhares retrospectivos, voltados principalmente para Romeu e Julieta e Henrique IV, o tema de estudo deste livro vai de Hamlet à última peça completa de Shakespeare: A tempestade.

NOTAS:

1. Frithjof Schuon, The transcendent unity of religions. Harper and Row, 1984, p. 61, nota. [Há edição portuguesa desta obra: A unidade transcendente das religiões. Lisboa, Dom Quixote, 1990.

2. Romeu e Julieta, por exemplo, Sonho de uma noite de verão, Henrique IV, Como gostais e Noite de Reis.

3. Em 1594; foi provavelmente neste ano que ele escreveu Trabalhos de amor perdidos e, no ano seguinte, Romeu e Julieta e Sonho de uma noite de verão.

4. Ver Paul Arnold, Esotérisme de Shakespeare. Mercure de France, 1955, pp. 60-61.

5. Ibid., pp. 130-39.

6. Sua primeira publicação deu-se somente em 1601.

7. Ibid., Paul Arnold, op. cit., capítulos II e IV.

8. Evergreen Books, 1960. {Há edição brasileira desta obra: Shakespeare. São Paulo, Martins Fontes, 1996. Tradução de Bárbara Heliodora.]

II
A PERSPECTIVA DE SHAKESPEARE

Demasiado freqüentemente se diz que a maravilhosa variedade dos personagens de Shakespeare torna impossível adivinhar alguma coisa sobre o próprio autor. Sobre seu temperamento isto pode ser, de certo modo, verdadeiro, mas, no que se refere à sua perspectiva e a seus ideais, isto é totalmente falso. Indiretamente, podemos aprender muito sobre Shakespeare até por meio de seus vilões, e por meio de seus heróis podemos aprender muito mais, especialmente no final de uma peça, depois que ele os desenvolveu plenamente.
Mas, quando o herói, num estado em que ainda lhe falta o discernimento, no começo ou no meio de uma peça, dá vazão às suas idéias sobre isto e aquilo, ele talvez esteja revelando a sua própria imaturidade e pode até mesmo estar dizendo o oposto do que Shakespeare pensa. Um importante exemplo disso ocorre no R«i Lear, quando Gloster, que tem um papel importante na sub-trama, e antes que Shakespeare o tenha desenvolvido satisfatoriamente, diz:

Como moscas para garotos travessos, assim nós somos para os deuses;
Eles nos matam para sua diversão.
(1,2) (IV, 1,222-225)

É quando ouve estas palavras que Edgar decide seguir um estranho curso de ação, com o propósito de salvar seu pai do desespero e do suicídio. Graças a seus esforços, Gloster pode por fim dizer:

Daqui por diante suportarei
A aflição até que a própria aflição me grite:
"Basta, basta", e morra.''
(IV, 6, 75-77)

E ainda, mais tarde:

Deuses sempre gentis, tirem de mim meu alento:
Não permiti que meu pior espírito me tente novamente
A morrer antes que vos apraza.
(4) (V, 2, 11)

A grande fraqueza de Gloster, que ele finalmente vence, é a falta de fé na Providência. Hamlet, por sua vez, também padece desta mes ma insuficiência. O solilóquio "Ser ou não ser", a partir do qual se deduziram tantas coisas acerca das opiniões pessoais de Shakespeare, não só não expressa a maturidade de Hamlet, como o mostra num processo de descoberta de sua imaturidade.

É bem possível que Shakespeare tenha se utilizado de suas próprias experiências passadas para construir este solilóquio. Mas nós podemos estar certos de que ele não representa, de nenhum modo, suas convicções definitivas, pois seu teor contradiz completamente a última cena da peça, quando encontramos um Hamlet perfeitamente equilibrado expressando a maturidade com a qual Shakespeare gradualmente o moldou. Nesta cena, nós o encontramos vencendo as dúvidas que — diferentemente de Gloster — ele nunca tinha percebido em si mesmo. Esta natureza real, nova e madura, faz Horácio exclamar, entre surpreso e admirado: "Por quê? Que tipo de Rei é este?" (v, 2, 229-230); e sua fé na Providência é inabalável. Ele diz a Horácio:
Há uma Divindade que molda nosso fim, por mais toscamente que nós o desbravemos.5 (V, 2, 10-11)
Pouco depois disso, em relação à sua premonição de sua própria morte iminente, ele lembra Horácio, em termos bíblicos, da obrigação do homem de possuir a virtude da confiança: "Há uma providência especial na queda de um pardal" (v, 2, 229-230).'' Não há dúvida de que, nesta cena, Shakespeare se inspira na passagem bem conhecida de São Mateus:

Não se vendem dois passarinhos por um asse?1
No entanto, nenhum deles cairá por terra sem o consentimento de vosso pai.
Mas até os cabelos de vossa cabeça estão todos contados.
Não temais, pois! Bem mais que os pássaros valei vós.
(10: 29-31)

A essência do que Hamlet diz poderia ser assim resumida: o que é importante é estar preparado para a morte quando chegar o momento dela. Suas palavras: "a prontidão é tudo"(8) têm seu equivalente em uma passagem igualmente significativa do último ato do Rei Lear. As notícias da derrota e captura de Lear e Cordélia afundam Gloster uma vez mais em seus "pensamentos doentios",9 como são chamados por Edgar, que o tira destes pensamentos, relembrando-o que assim como o homem deve se submeter à Providência no que se refere à hora e o modo de seu nascimento, também deve se submeter no que se refere à hora e o modo de sua morte, e não procurar arrancar a fruta antes que esteja madura.

Os homens devem suportar
sua saída daqui, da mesma forma como aqui entraram.
A maturidade é tudo.(10)
(V, 2, 9-11)

Observar-se-á que nestes dois discursos de Hamlet e Edgar, como também em outras partes, Shakespeare se concentra no aspecto mais universal da religião. Ele está mais preocupado com que o homem tenha a atitude de alma correta em relação à Providência, do que com qualquer forma particular de culto. Tampouco acreditamos que isso resulte da extrema sensibilidade e rigor religiosos da Inglaterra dos séculos dezesseis e dezessete, quando o cristianismo era um tema muito perigoso. Voltaremos daqui a pouco ao tema da universalidade de Shakespeare, mas ainda há algumas clarificações a serem leitas. Antes do fim de seu período de atividade literária, era proibido por lei mencionar o nome de Deus em cena. Era, porém, sempre possível referir-se aos "deuses"; e se ele, deliberadamente, escolheu situar muitas de suas peças maduras em um cenário pré-cristão, deve ser observado que, no entanto, sua atitude em relação à Grécia e a Roma não é típica da Renascença. Shakespeare não estava simplesmente tomando emprestada a superfície da antigüidade clássica. Ele se colocou no próprio centro do mundo antigo. Para ele e para Dante, assim como para os antigos sacerdotes e sacerdotisas de Delfos, Apoio não é o deus da luz — e sim a Luz de Deus.

Na forma de seu drama, Shakespeare pertence à sua época. O Dr. Fausto de Marlowe é, externamente e em alguns aspectos, mais medieval do que muitas coisas que Shakespeare escreveu. Mas a perspectiva de Marlowe era totalmente a de um homem da Renascença, enquanto Shakespeare parece, num certo sentido, voltar atrás enquanto o tempo segue em frente e, por volta da mudança de século, ele havia se tornado, à diferença de muitos de seus colegas dramaturgos, o continuador e o recapitulador do passado, o último sentinela de uma época que desaparecia rapidamente. Ao dizer isto, não dizemos nada de novo: é apenas juntar os fatos e concluir. Bradley disse do Rei Lear: "Não parece revelar um modo de imaginação muito distante daquele com o qual, devemos recordar, Shakespeare estava perfeitamente familiarizado nas peças de moralidade e em Thefaerie queene".

Sobre Otelo, Wilson Knight disse: "Otelo, Desdêmona e lago são o Homem, o Divino e o Diabo", e ele observa que, geralmente, os heróis de Shakespeare são "peregrinos purgatoriais". E, sobre Macbeth, Dover Wilson disse: "Macbeth é quase um auto moral", e disse quase praticamente o mesmo das duas partes de Henrique IV. Além disso, com relação a esta última, e com respeito à questão de se saber se Shakespeare é o continuador de uma tradição passada, ele nos recorda: "Antes de sua secularização na primeira metade do século XVI, nosso drama se ocupava de um (e apenas um) assunto: a salvação humana. Este tópico podia ser representado de dois modos: 1) historicamente, por meio de dramas sacros, os quais nos ciclos de Corpus Christi desenrolam ante os olhos dos espectadores todo o plano da salvação desde a Criação até o Juízo Final; ou 2) alegoricamente, por meio das peças de moralidade, que exibiam o processo de salvação da alma individual em sua viagem entre o nascimento e a morte, assediada pelas armadilhas do Mundo ou pelas artimanhas do Maligno"." Dover Wilson não define a palavra "salvação", e, para o objetivo de seu livro, não é necessário fazê-lo. Mas, no que se refere à arte medieval em geral, é importante distinguir entre o que se pode chamar de obras esotéricas (que remetem para além da salvação: à santificação) e de obras exotéricas (nas quais a santificação é, no máximo, um ideal remoto). Se Shakespeare foi um continuador do passado, a qual destas duas categorias sua arte pertence, à esotérica ou à exotérica?

Um exemplo do que pode ser chamado de obra exotérica, que se detém no sentido mais elementar de salvação, é The castle of perseverance. Nesta peça de moralidade, a humanidade {humanum genus) é representada como tendo levado uma vida muito discutível, e é lulva do Inferno, da face da justiça, pela virtude da Misericórdia Divina. Um exemplo supremo de obra esotérica é A divina comédia, que pressupõe a salvação e trata da purificação do homem e sua sanlificação última — ou, em outras palavras, da recuperação daquilo que havia sido perdido com a Queda. Pode-se dizer que, na Idade Media, considerava-se que a massa dos leigos seguia a via da salvação, enquanto as ordens monásticas e as ordens laicas que a elas se ligavam (e uma ou duas outras irmandades, como a dos maçons e a dos companheiros) visavam seguir a via da santificação. Dito de outro modo, elas tinham como meta atravessar o Purgatório nesta vida. Hoje se sabe que Dante pertenceu a uma irmandade afiliada a Ordem do Templo,(12) e que passou a uma situação mais ou menos clandestina quando a Ordem do Templo foi abolida. Alguns supõem que Shakespeare foi um membro da irmandade Rosa Cruz; outros acreditam que ele foi maçom. Esta é uma parte de seu segredo que provavelmente não se conhecerá nunca, e não está no escopo destas páginas insistir em alguma coisa que não seja óbvia a partir daquilo que o próprio Shakespeare escreveu. O que é óbvio, de qualquer modo, é que suas peças transcendem a idéia de salvação em seu sentido mais limitado; e deve ser observado, de passagem, que isto sugere que ele seguia uma via espiritual — o que implica a filiação a uma ordem.

No começo do Ato V do Conto de inverno, com referência à longa penitência feita pelo Rei Leontes durante os dezesseis anos decorridos entre as duas partes da peça, o personagem de tipo sacerdotal Cleomenes diz:

Senhor, fizestes o bastante, e cumpriste
tua pena como um santo: não há falta que pudesses cometer
que dela não tenhas sido redimido; de fato, pagaste
mais penitência do que as transgressões que fizeste.
Por último, faze como os céus têm feito: esquece teu erro;
Com eles, perdoa a ti mesmo.(13)
(V, 111,1-6)

No Rei Lear, o cego Gloster, ao reconhecer a voz do Rei, pede para beijar sua mão. Lear lhe responde: "Permite-me limpá-la primeiro; ela tem o mau cheiro da mortalidade." (14) (IV, 6, 137). Esta observação contém não somente a verdadeira essência desta peça, mas também a da maioria das outras peças maduras de Shakespeare; pois, no curso delas, o que faz Shakespeare senão limpar a mortalidade, quer dizer, o pecado de Adão, da mão do herói? A mão deve estar completamente limpa: não é uma questão de mais ou menos. Em Hamlet, o príncipe diz de si mesmo, no meio da peça, que é razoavelmente virtuoso: "Eu mesmo sou medianamente honesto"; (15) mas o propósito de Shakespeare vai bem além de tal mediocridade. O porteiro do Portão do Purgatório, isto é, o portal da salvação, é, por definição, de incomensurável misericórdia. Hamlet poderia ter passado por ele no começo da peça: e assim também Leontes, no momento do arrependimento, dezesseis anos antes das falas acima citadas; e também Lear bem antes do final da peça. Mas o porteiro da Porta do Paraíso, isto é, a porta da santificação, é implacavelmente exigente; e, para seus heróis e heroínas, Shakespeare representa esse porteiro. Ele não deixará passar nada exceto a perfeição: e, assim, ele faz Hamlet acrescentar às palavras acima citadas: "Mas de tais coisas eu poderia me usar que teria sido melhor que minha mãe não me tivesse feito nascer" (16) (III, 1, 123-126).

Sente-se que os personagens, um após o outro, são desenvolvidos e levados a um estado de virtude que chega aos próprios limites da natureza humana, a um ponto em que cada um deles poderia dizer, com Cleópatra:
Dá-me meu manto, coloca minha coroa; eu tenho Anseios imortais dentro de mim.(17) (v, 2, 279-280)
Mesmo aqueles que se recusam a admitir que Shakespeare fala através de seus personagens não podem escapar do fato de que é o próprio Shakespeare, e nenhum outro, quem arquitetou suas peças. E, quando depois que foi alcançada uma certa maturidade, uma peça depois da outra foi seguindo a mesma busca pela perfeição humana - e cada peça insistia na mesma mensagem em sua totalidade (além da maravilhosa variedade de detalhes) — nós não temos outra alternativa senão concluir que, pelo menos ao longo de seus últimos quinze anos de vida ou mais, Shakespeare estava preocupado com a mesma questão que havia preocupado Dante.

Foi, contudo, privilégio de Dante estabelecer, para a cristandade, um desses ápices da arte que toda teocracia está fadada a ter, e isto provavelmente não pode ser dito de Shakespeare. A cristan dade é de fato a civilização tradicional mais próxima de sua arte, e providencialmente ele nasceu na época exata para ser capaz de dotar suas peças com uma grandeza medieval extraída daquele mundo. Mas Shakespeare não fala nos termos daquele mundo. Já demos dois exemplos de seu modo universal de expressão: "a prontidão é tudo" {the readiness is all}, de Hamlet, e "maturidade é tudo" [ripeness is all], de Edgar, mas estes são apenas dois de uma multidão. Através de suas peças, somos relembrados vezes sem conta do que Sófocles chamara "os estatutos não-escritos e incontestáveis dos deuses... não de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos, e ninguém sabe quando eles foram estabelecidos".(18) Estas palavras são freqüentemente tomadas como referência ao que é geralmente conhecido como a Filosofia Perene, ou religio perennis; e é nessa religião subjacente a tudo, e não em qualquer forma religiosa particular, que a arte sagrada de Shakespeare está enraizada. Isto não significa que ele não fosse um cristão devoto e praticante.(19) A piedade pré-religiosa não pode ser adotada no lugar da religião particular de qualquer tempo e local. Ademais, um fator essencial desta piedade é a mediação entre Céu e Terra, que é uma característica espontânea do homem primordial em função de seu acesso, por assim dizer, "orgânico" ao Espírito. Mas, na falta disso, a mediação só pode acontecer pela realização de ritos que a religio perennis não outorga — e aqueles que reconquistaram este acesso liberador ainda continuam a realizar tais ritos, por mais de uma razão.

"Esta hereditariedade profundamente estabelecida {religio perennis) é como a lembrança do Paraíso perdido e pode irromper na alma por uma sorte de atavismo providencial.(20) Acreditamos que Shakespeare foi um exemplo eminente desta possibilidade. Não é que neguemos em Dante o mesmo atavismo, mas é que nele o atavismo brilha através de um véu. Dante foi um dom do Céu para a cristandade, na qual ele tinha uma função a cumprir, ao passo que Shakespeare foi um dom para os séculos finais deste ciclo de tempo, cada vez mais secularizados — isto é, do século XVII em diante - e para nenhum período mais do que o presente. Todas as diferentes tradições concordam que estamos nos aproximando do fim de um ciclo temporal, e que esta velha era na qual estamos não pode mais ser renovada, como aconkceu há cinco séculos com a relativa juventude do cristianismo e do islã (tradições que já estão exibindo sinais claros de decrepitude — principalmente a primeira), pois quando o fim está próximo os desdobramentos ocorrem de maneira muito rápida. E o que é verdadeiro para as tradições também é verdadeiro para os homens: em certo sentido, na Terra atualmente todos são "velhos", o que significa que todos se defrontam, de alguma maneira, com a questão: "O que me caberá: a sabedoria da idade, ou a senilidade?" Abordamos esta situação cm maior detalhe em outro livro.21 Mencionamos isto porque, apesar de uma vasta maioria ter optado, sem saber, pela alternativa negativa, é inevitável que haja alguns que não fizeram isto — e a sabedoria terminal que eles representam tem uma estreita afinidade com a religio perennis. O mesmo acontece com Shakespeare, seja isto repetido: ele está de fato claramente à vontade nesta perspectiva para que ela lhe tenha sido forçada apenas em razão dos problemas religiosos de seus dias. Tais problemas foram propícios para impeli-lo a levantar o véu através do qual Dante foi obrigado a falar.

Se for perguntado, em conexão com o nosso título, se temos o direito de colocar qualquer das peças de Shakespeare, mesmo as maduras, na categoria da arte sagrada, um poderoso argumento pelo "sim" está implícito no fato de que o tema central destas peças não é meramente a religião, o que em si mesmo seria insuficiente, mas a própria essência da religião, ou seja, os Mistérios. Acrescentemos a isto uma observação do capítulo magistral de Schuon acerca dos graus da arte. "A distinção entre uma arte sagrada e uma arte profana é inadequada e demasiadamente precipitada quando se quer levar em conta todas as possibilidades artísticas. No entanto, é necessário recorrer a uma distinção suplementar, isto é, à distinção entre uma arte litúrgica e uma extralitúrgica"(22). Isto tem a vantagem de salvaguardar a já mencionada (23) categoria da arte sagrada no sentido tradicional, ao mesmo tempo que não rotula como profanas algumas manifestações extralitúrgicas do Espírito Divino, o qual "sopra onde quer".

NOTAS:

1. [As flies to wanton boys, are we to the gods;l They kill us for their sport. ]

2. Das muitas edições Arden das peças de Shakespeare, as publicadas entre 1920 e 1930 são as fontes, quase exclusivamente, de nossas citações. Qualquer discrepância significativa será observada.

3. [Hencefortb I'll bear / Affliction till it do cry out itself / "Enough, enough", and die.]

4. [You ever gentle Gods, take my breath from me: / Let not my worser spirit tempt me again / To die before you please!}

5. [There's a divinity that shapes our ends. / Rought-hew then how we will.] 6. [There's a special providence in the fall of a sparrow.] (V, 2, 229-230)

7. Asse, antiga moeda romana. (Nota do editor)

8. [The readiness is all.} 9. [lll thoughts.}

10. [Men must endure / Their going hence, even as their coming hither. / Ripeness is all.]

11. The Fortunes of Falstaff, Cambridge University Press, 1964, p.17.

13. [Sir, you have done enough, and have perform'd / A saint-like sorrow: no fault could you make / Whicb you have not redeem'd; indeed, paid down / More penitence than done trespass: At the last, / Do as the heavens have done, forget your evil; / With them forgipe yourself.}

14. [Let me wipe it first; it smells of mortality,]

15. [I am myself indifferent honest.]

16. [But yet I could accuse me of such things that it were better my mother had not borne me.]

I 7. [Give me my robe, put on my crown; I have / Immortal longings in me.}

18. Antígom, 454-457

19- A referência de Hamlet ao pardal é uma das muitas indicações de que o Evangelho está freqüentemente presente na mente de Shakespeare.

20. Frithjof Schuon, The essentiat writings, p. 531.

21. The eleventh hour, capítulo 5. Archetype, 1998.

22. Sophia Perennis. Esoterism as principie and as way, p. 126. [Há tradução brasileira: 0 esoterismo como princípio e como caminho. São Paulo, Editora Pensamento, 1985.]

23. P. 17.