Seyyed

A Longa Jornada

Uma entrevista de Seyyed Hossein Nasr para Jeff Zaleski em Janeiro de 1999

Jeff Zaleski - No ensaio "O Sufismo e a Integração do Homem" , que aparece no seu livro Sufismo Vivo, o Sr. escreve que "O Islã é a religião da unidade..." e que "...todo o programa do Sufismo é libertar o Homem da prisão da multiplicidade, curá-lo da sua Hipocrisia e fazê-lo pleno, pois é apenas sendo pleno que o homem pode ser santo" . Como o Sr. definiria o homem pleno? Quais são seus atributos?

Seyyed Hossein Nasr - O homem pleno é uma pessoa que realiza plenamente o que significa ser homem. Isto é, ele possui, ou ela possui - e no meu ensaio quando digo "homem" refiro-me a ambos os sexos, - realizadas dentro de si todas as possibilidades da existência, a perfeição de todas as qualidades com as quais Deus – Realidade Última – adornou a natureza humana e que não é, no entanto, inteiramente manifestada em todos os membros da raça humana. Esta idéia deriva, é claro, da doutrina central do Sufismo acerca do Homem Perfeito ou do Homem Universal, al-Insan al-Kamil, de acordo com a qual toda criatura reflete a seu modo algum aspecto ou qualidade da Natureza Divina, algum Nome Divino ou qualidade Divina na linguagem específica do Islã ( al-Asmâ wa '1-Sifât ). Somente o homem é espelho de todos os Nomes e Qualidades Divinas. Por esta razão, dizer "Homem" é dizer "totalidade" e "plenitude" , isto é, todos os aspectos da Suprema Divindade que se manifestaram no cosmos, tudo que não está na Natureza Divina em sua realidade metacosmica, tudo que irradia da Face que Deus voltou à ordem criada, tudo que já está contido de maneira refletida nas implicações de se ser homem, de se ser insân. Ora, ser pleno é realizar esta completude de nossa própria natureza. A resposta sufi à sua pergunta seria muito simples: para um homem ser pleno, tudo que ele, ou ela, tem a fazer é ser ele mesmo, ou ela mesma, isto é, realizar o que realmente somos em nossa realidade última, que é ser a reflexão total, a imagem total, a teofania total dos Nomes e Qualidades de Deus.

J.Z. - De que maneira realizamos o que realmente somos? Pode ser que eu faça uma idéia de plenitude e do homem perfeito, mas vejo-me fragmentado. Como alguém alcança a plenitude?

S.H.M. - Esta é uma pergunta muito interessante no que diz respeito à consciência diária dos seres humanos. 0 próprio fato de colocarmos tal questão significa que existe em nossa mente e em nossa alma um eco, não importa quão vago, e uma luz. não importa quão turva, dessa plenitude. Por que, mesmo fragmentados, falamos de plenitude ? Isso significa que temos em nosso ser uma reminiscência de sermos plenos. Ora. aqui está de fato a chave para sua pergunta: a plenitude traz consigo a certeza de sua própria realidade, precisamente porque o ser humano é composto de múltiplos níveis de existência, de diferentes forças – física, menta1, psicológica, espiritual; e é muito importante não confundir o espiritual com o psicológico, ou o mental com o intelectual, que é o outro aspecto do espiritual. Dado que o homem possui todas essas faculdades interiormente, a não ser que ele tenha acesso a elas, sempre haverá um sentimento de perda.
É como se você me tivesse perguntado "Como sei que a água sacia minha sede? Se você consegue água verdadeira e tem sede verdadeira, o próprio beber da água saciará sua sede, e nada mais. Existe na natureza do homem uma busca de plenitude, que é em si mesma um grande milagre, pois não somos plenos. De onde vem esta ânsia? Onde encontramos a origem desta idéia de plenitude? Profundamente dentro de nós mesmos esta plenitude da qual nos tornamos separados por nossa existência exterior nos chama. Ela acena para nós. E o chamado continua até darmos ouvidos à sua voz e sermos capazes de viver de tal forma a preencher a inata necessidade de plenitude; e perguntas de como a alcançamos são realmente teóricas. A sede que temos de nos exteriorizar – a necessidade de satisfação por meio de uma ação exterior a nós e, portanto, contra o que a plenitude realmente implica – continua em nós. Todos a temos ; ela é a raiz de todas as nossas misérias. Porém ela nunca é satisfeita, a não ser que dê as costas a si mesma, volte-se para o interior – ao invés de para o exterior – e alcance a plenitude. Assim, o próprio cessar dessa ânsia por exteriorização é prova de que alcançamos a plenitude. Se a pessoa não alcançar a plenitude, essa ânsia nunca passa. Seu objetivo pode mudar, mas o fogo nunca é extinto, exceto por meio da proximidade do Sagrado que a plenitude implica.

J.Z. – É possível uma pessoa comum, que leva uma vida comum de maneira honrada e justa, alcançar a plenitude, ou é necessária uma orientação especial ? É necessário um instrutor?

S.H.N. - Se ao menos pudéssemos quebrar o gelo que separa a consciência diária que temos de nós mesmos da fonte da vida eterna que mora em nosso coração, no centro de nosso ser, não precisaríamos nem de instrutor nem de Revelação. Porém o homem, isto e, o homem do presente ciclo da humanidade – no tempo de Adão todos os homens eram profetas – o homem de hoje, desta era, não pode quebrar esse gelo sem a ajuda de um instrutor. A plenitude no seu nível mais alto pertence somente a um grande santo no sentido de que tudo o que ele faz vem sempre de um único centro; e é por isto que somente um santo está além da hipocrisia. Mas este nível mais alto de plenitude não é acessível a todos. Há níveis mais baixos, todavia; há uma espécie de hierarquia de plenitude. Em um nível mais restrito há os ensinamentos da religião, que são para todos ; por exemplo, a Lei Divina no Islã, a Shari'ah, se praticada com fé produz um grau de plenitude e de integração na vida suficiente para um homem viver feliz e morrer na felicidade, mas não suficiente para a realização da plenitude em seu nível mais alto, que é a união com o Divino e tudo o que isto implica: a integração de todos os aspectos de nosso ser e a consciência do Um no seu nível mais alto. Para que este estágio seja alcançado há sempre a necessidade de um instrutor, e se há exceções. é somente para comprovar a regra. -
Eu sempre volto às belas palavras dos Evangelhos, quando Cristo diz "O vento sopra para onde quer". Aprendi o significado disto há muitos e muitos anos atrás, em um escrito de Frithjof Schuon onde ele falava a respeito da possibilidade do Espírito se manifestar onde Deus quer, de maneira diversa daquela que esperaríamos. E estas palavras têm muitas aplicações, uma das quais é a resposta à sua pergunta: é possível certos indivíduos excepcionais sofrerem a atração do Céu sem um instrutor humano. Mas esta possibilidade, embora aconteça em certos casos, não é uma desculpa para não se ter um mestre espiritual, e não se manifesta com freqüência. Então voltamos ao famoso dito de Bayazid, o grande sufi Khorasan do nono século cristão, que ao falar das pessoas que buscavam a plenitude Última, disse que o mestre espiritual daqueles que não têm mestre espiritual é o Demônio. A integração das faculdades superiores da alma, que seguramente pertencem a Deus, é impossível sem a ajuda de uma pessoa que já tenha passado pelo processo desta integração porque, do contrário, lida-se com formas muito poderosas e perigosas que freqüentemente, sob o pretexto de integração, levam a desintegração e ao dano permanente de um aspecto da alma que na verdade somente Deus e o Sagrado podem moldar e remoldar.

J.Z. - E possível, para aqueles que não seguem um caminho religioso em particular, alcançar algum grau de plenitude ?

S.H.M. – Se eu puder enfatizar "algum grau" , então sim. Há pessoas que, especialmente nos dias de hoje em que muitos, em virtude da perda das dimensões mais metafísicas por parte das religiões ocidentais, abandonaram suas tradições e buscam alguma coisa, vivem próximas à natureza e suas belezas; e possuindo um tipo de alma simples que se satisfaz com a graça que emana do ambiente natural, essas pessoas podem atingir um certo grau de plenitude. Mas o homem não é um ser "natural" apenas nesse sentido. Tais pessoas levam consigo, é claro, aquelas camadas mais profundas da alma, e o problema de não ter integrado esses elementos ao aspecto consciente do seu ser manifesta-se cedo ou tarde. Para integrar esses elementos é preciso um mandato do Céu, ou seja, é preciso viver de acordo com uma das tradições , uma das religiões reveladas por Deus. Não acredito que a plenitude – no sentido mais elevado da palavra, e que gradualmente se torna sinônimo de santidade – seja possível sem a porta ter sido aberta para a humanidade pelo lado celeste. 0 homem não pode abrir essa porta forçando-a ele mesmo, e ela sempre abre pelo lado divino. Pode-se dizer que é o Logos descendente, o Avatara que desce dos Céus, que abre o caminho que depois seguimos a partir do lado de cá.

J.Z. - Quais são os principais obstáculos que o homem encontrará no caminho para a plenitude? 0 que em nós nos mantém afastados da plenitude?

S.H.M. - Esta é , obviamente, uma questão teológica muito profunda que pode ser respondida de várias maneiras. 0 Cristianismo diria que é o pecado original; o Islã não acredita em pecado original, mas acredita que o principal impedimento é o esquecimento. Porém desejo responder-1he de maneira atual, "existencial" , concernente à condição do homem moderno. Se você me tivesse perguntado isso há cem anos atrás, quando meus ancestrais moravam em Kashan – se Deus tivesse desejado que eu ensinasse 1á então, ao invés de cem anos mais tarde aqui em Washington – eu teria respondido, é claro, que o principal impedimento é o véu do esquecimento que cobre nossa natureza interior. Este véu tem a ver com nossas paixões, com o que o Alcorão chama al-nafs al-ammarah, isto é, a parte de nossa alma que nos leva a fazer o mal, o aspecto passional, exteriorizante, dissipante de nossa alma. Este seria o maior obstáculo, e sempre existiria uma espécie de combate entre ele e a Vontade de Deus, que se deve seguir.
Hoje, no entanto, há um outro obstáculo muito maior que os homens de antigamente não encararam. Antigamente os seres humanos, em situações normais ao menos, sabiam que existia algo como plenitude. Hoje os homens encaram, antes de tudo, o obstáculo de nem mesmo ter clara a existência da plenitude, para não mencionar sua realização. Se você fosse um muçulmano, um cristão, ou um hindu, vivendo tradicionalmente, você não se perguntaria "existe alguma coisa como plenitude, e existe um caminho ate ela?". Você se perguntaria "quero seguir este caminho até ela ou não ?" Você saberia que há um caminho; por exemplo, se você estivesse no mundo islâmico, você saberia onde estava a Khangah ou Zâwiyah, o centro sufi, e que havia pessoas que seguiam o caminho da plenitude. Hoje o primeiro obstáculo é que muitos seres humanos são forçados a perguntar, pela primeira vez na história do mundo como a conhecemos, "Qual é o sentido da vida, afinal ?" ; isto é, tem de descobrir por si mesmos as questões de certeza e dúvida, de verdade e falsidade. E portanto o primeiro obstáculo é precisamente remover nossa ignorância em relação a natureza da Realidade, se posso expressar-me em linguagem intelectual; ou ainda, usando linguagem religiosa, descobrir o sentido da vida, descobrir que é de fato possível chegar à plenitude, e que portanto isto é um fim desejável. E uma vez decidido a qual fim dedicar-se, quem devo escolher como mestre ? Hoje há uma escolha mais universal que não se apresentou a nenhuma humanidade antes de nós, que é a possibilidade de escolher até mesmo a própria religião. Exceto em situações raras, como em Cachemira no sec. XIII, esta nunca foi uma escolha a ser feita por seres humanos.
Há também, é claro, uma grande compensação em tudo isso no sentido de que, uma vez superado o primeiro obstáculo, que apresenta um desafio excepcional, Deus torna o segundo muito mais fácil de ser vencido. Um muçulmano, hindu, judeu ou budista tradicional aceitava com certeza a verdade de sua religião. Na situação tradicional o céptico não era alguém que duvidava de Deus ou de sua tradição, mas alguém que dentro daque1e mundo de certeza fosse céptico com relação a certas escolas, certas tendências de pensamento. Consequentemente, seguir a via espiritual, ser colocado sob a irradiação da Graça Divina que brilha sobre nós, era um feito muito mais difícil de realizar. Hoje a atração da Graça Divina torna-se mais fácil pela própria dificuldade de nossa condição, a dificuldade da situação humana. E por esta razão, embora os obstáculos tenham mudado, talvez em virtude da justiça de Deus, sua realização não é tão difícil quanto era. E apenas o tipo de dificuldade que muda para a humanidade de hoje.

J.Z. - O primeiro obstáculo de que o Sr. fala, a dificuldade das pessoas hoje de começarem a focalizar sua situação interior, é um obstáculo sério. Ha cada vez menos nações onde um verdadeiro ensinamento espiritual é acessível. Qual a razão disso? E em conseqüência de uma falha interior das próprias religiões que as pessoas estão cada vez menos interessadas em seus ensinamentos ?

S.H.N. - Esta é novamente uma questão que pode ser respondida de duas maneiras. Por um lado pode-se dizer que o significado interior das religiões torna-se cada vez menos acessível, a ponto dos seres humanos tornarem-se menos qualificados para entendê-lo. Em segundo lugar, de fato a humanidade de hoje não merece nada mais do que aquilo que é capaz de alcançar. É a exteriorização do homem hoje que torna o interior menos acessível. Mas tendo dito isto, quero acrescentar que de fato a dimensão interior não está completamente inacessível. Há, novamente. um tipo de compensação divina, pondo de lado todos os pseudo-instrutores e pseudo-gurus que provêem um tipo de orientação espiritual invertida, vinda de baixo ao invés de vir de cima, e cujos ensinamentos correspondem, em seu efeito, a subversão de muito do que resta de religião no mundo moderno. Colocando esse fenômeno de lado, eu diria que, antes de tudo, a instrução espiritual autêntica nunca pode cessar completamente sem que o mundo entre em colapso. Há um ditado árabe de acordo com o qual a Terra nunca ficará desprovida de uma pessoa que seja testemunha de Deus, que seja um verdadeiro mestre espiritual. Isso não pode acontecer, não e metafisicamente possível.
E em um nível mais exterior, precisamente porque existe esse eclipse dos métodos normais para se alcançar uma instrução espiritual. há uma espécie de fusão entre interior e exterior pelas autoridades da tradição, no sentido mais elevado da palavra; uma exteriorização que nunca havia sido possível anteriormente. Antes desta nossa época nunca houve uma humanidade que pudesse ler as maiores pérolas da sabedoria de todas as religiões apenas indo a uma livraria, como a livraria Yes! a três quarteirões daqui, e que pudesse ler Lao-Tse, e os Upanishads, e as obras-primas do Sufismo, os escritos de Mestre Eckhart e os hassídicos, e a Cabala, e Deus sabe mais o que. Que significa esse fenômeno? Por que a pessoa mais bem dotada espiritualmente, mesmo em um país como a Índia, ou a Pérsia, que foram grandes centros de misticismo no passado, não tiveram tal possibilidade? Trata-se novamente, em virtude dessa compensação que existe na ordem Divina e humana, de um tipo de acesso às coisas que em si eram difíceis no passado. Olhe para o judaísmo: se você morasse na Espanha nos séculos XIV ou XV, teria pertencido à uma comunidade judaica que representou um dos ápices da cultura judaica. E naquele tempo havia mestres da Cabala luriana . 0 que você teria de fazer para ter acesso a alguns desses textos? Após provavelmente vinte anos estudando hebraico com esse e aquele instrutor, finalmente lhe seria ensinada a Cabala luriana. E hoje qualquer garoto como um calouro universitário pode pegar a Zohar ou os livros da Cabala luriana numa livraria.
Isso não é o mesmo que a instrução, é claro; mas mesmo a exposição teórica desse tipo de doutrina no mundo moderno está relacionada com a sua pergunta. E essa instrução não se tornou completamente inacessível. Na medida em que a humanidade cai espiritualmente e torna-se cada vez mais exteriorizada, menos interessada nas dimensões interiores da religião, essas dimensões recuam, sem no entanto morrerem completamente. Tais dimensões mais interiores recuaram mais para aquelas humanidades que se exteriorizaram mais: a Europa e a Civilização Ocidental. E na medida em que o Islã, o Hinduismo, o Budismo, ou o Judaísmo Oriental passam pelo mesmo processo, a dimensão interior da religião torna-se cada vez menos acessível. Porem, por meio da compensarão de que falei, a porta continua aberta, e isso porque no final das contas somos responsáveis ante Deus e Deus é justo. Do ponto de vista espiritual, no Dia do Juízo não se pode ficar diante do Senhor e dizer "0h! , Senhor, por não ter encontrado Mestre Eckhart em Nova Iorque parei de acreditar em vós " . Pois para quem procura, a frase de Cristo "Procura e acharás" valerá até que Ele retorne. Esta não foi uma afirmação temporal. Mas onde você deve bater, e onde encontrará, pode ser diferente dos dias de ontem.

J.Z. - Assumindo que uma pessoa começa a caminhar em diregao à porta aberta de que o Sr. falou e examinando-se a si mesma vê sua natureza fragmentaria. O Sr. falou anteriormente das paixões. Qual seria uma atitude útil com respeito à nossa natureza fragmentada e às nossas paixões ? Deveríamos erradicá-las ou usá-las ? Como a recordação, de que o Sr. também falou, entra em jogo?

S.H.N. - Sou sempre muito cuidadoso quando perguntas como estas me são colocadas. É preciso mencionar um ponto que e absolutamente crucial: a orientação espiritual não é para o consumo do público em geral. As religiões, com suas formas esotéricas e instruções gerais, o são. Mandamentos como: você deve ser bom, não deve mentir, deve ser humilde, e os Dez Mandamentos, estes são para todos. Mas como controlar as paixões ? Que fazer com elas ? A alquimia da transformação das paixões humanas não é exatamente a mesma para todos os seres humanos. A ciência tradicional da alma era como a medicina tradicional: não dava a mesma prescrição para todos os pacientes. Mas hoje muitas pessoas que tentam fazer o papel de pseudo-guru cometem o erro da medicina moderna, dando aspirina a quem quer que tenha dor-de-cabeça. 0 paciente e considerado um objeto, como acontece na ciência da física, onde o cálcio tem um peso especifico seja em Washington, seja em Kansas City, ou ainda São Francisco. Por isso sou contrário a dar uma resposta generalizada à essas perguntas, exceto no que concerne os princípios gerais. 0 caso de cada aspirante é diferente.
De maneira geral, no entanto, há um estágio na vida espiritual onde é preciso matar o dragão. Em algum momento São Jorge ou São Miguel devem vir ajudar a matar o dragão em nossa alma – não o dragão chinês, que na alquimia chinesa significa o poder da alma de criar asas e voar, mas dragão no sentido de uma força demoníaca perversa que impede o herói de chegar ao tesouro, como nas estórias infantis da Europa Ocidental, Ásia e também América. Esse dragão deve ser morto pelo poder espiritual que São Jorge e São Miguel representam; a lança deles representa a Presença Divina direta, sem a qual não é possível matar o dragão. 0 dragão é muito mais poderoso que nós. Somos engolidos muito facilmente. É por isso que podemos ler um livro e sentir que somos donos do assunto: podemos ser muito disciplinados por quinze ou vinte minutos, mas então o primeiro vento bate e nos derrota, pois ainda não matamos o dragão. Portanto, é necessário que no início do caminho você seja capaz de matar o dragão, de subjugar essa paixão. Os sufis se referem a este principio dizendo que precisamos fazer do demônio em nós um muçulmano, ou seja, fazer essa nossa natureza rebelde submeter-se a Deus.
Ora, esse processo implica uma espécie de morte. Quando dizemos "vida" , a que nos referimos ? A essa consciência diária que é na realidade o esquecimento de Deus. Lembramo-nos de nossas ambições diárias – comer, divertir-se à noite, levantar cedo pela manhã; lembramo-nos de tudo, exceto daquilo que Cristo disse que devemos nos lembrar, da única coisa necessária. E portanto matar essa consciência é realmente "morrer" . Assim, o primeiro estágio é uma morte, uma purgação. Isto é universal em todas as vias espirituais. Porém esta morte não mata nossa alma imortal ; ela conduz à vida. então o próximo estágio é o da expansão, o de trazer à vida os aspectos mais interiores que estavam escondidos pela força do dragão que os sufocava. E isto, por sua vez, leva à união, ao fruto da via, que é o conhecimento de Deus e o amor à Deus. Eu diria que os três estágios de contração, expansão e união, assim como Evelyn Underhill, a famosa e clássica escritora da tradição mística do Ocidente, menciona, referem-se de certa maneira a todas as vias espirituais.
Todavia, a maneira como em cada indivíduo as paixões são transmutadas, contra qual paixão um indivíduo em particular precisa lutar, para isto não há formula geral. Alguns seres humanos têm um orgulho falso, e este orgulho oculta-se sob a forma de uma falsa humildade. Para outros não é este o pecado; o pecado é, digamos, o das paixões carnais. São casos muito diferentes entre si. e é completamente errôneo, e de fato muito perigoso, tentar dar uma fórmula geral para as instruções necessárias concernentes à via espiritual.

J.Z. - Em "O Sufismo e a Integração do Homem" o Sr. menciona um escrito de Rumi que diz que o adepto, no retiro espiritual, precisa invocar o Santo Nome até que os dedos de seus pés comecem a dizer Allah. Qual é o papel do corpo na busca da plenitude?

S.H.M. - Vou falar aqui da perspectiva da tradição metafísica islâmica, mas o que tenho a dizer também pode ser encontrado, - mutatis mutandis - , nos ensinamentos do Cristianismo, onde a dicotomia entre o corpo e a alma é muito mais enfatizada, especialmente na corrente principal da teologia Agostiniana. No Islã, bem como nas duas outras religiões monoteístas, a plenitude inclui o corpo. Por que todas as três religiões acreditam na ressurreição do corpo no Dia do Juízo ? Quando ficarmos diante de Deus, no encontro final que determina todo o destino dos seres humanos – toda esta vida é uma jornada para esse momento de encontro com Deus – nosso corpo, de acordo com tais teologias, estará presente juntamente com nossa alma. Tomemos o caso cristão: Cristo subiu aos Céus com seu corpo. Os católicos acreditam que a Virgem Maria também ascendeu aos Céus corporalmente. 0 Judaísmo tem a carruagem de Elias. 0 Islã tem a ascensão do Profeta, al-mi'râj, que foi corpórea, não somente espiritual, al-mi'râj al-rûhâm , esta última estando aberta a todos. Portanto o corpo, de algum modo, faz parte da plenitude de que estamos falando.
ufismo enfatiza muito isso. Em vez de basear-se numa dicotomia entre corpo e alma, ele pode ter inicio em um determinado estágio. especialmente no Sufismo ascético, com uma negação do corpo. Como eu disse, em algum lugar do caminho é preciso morrer. Digamos que e preciso evitar essa ou aquela paixão, mas sempre tendo em mente que não é o corpo que é o culpado. É a alma concupiscente enquanto ligada ao corpo. Não é nossa mão ou nossa boca que cometem um ato ilícito do ponto de vista religioso; é a intenção que está por trás do ato, em nossa alma, que o comete. E o que o Sufismo tenta fazer é dissociar a alma da atenção excessiva às paixões corpóreas, enquanto que o corpo permanece, de certo modo, neutro. Por outro lado, o corpo é de fato muito positivo, pois é criado por Deus e não tem a independência que tem nossa alma de rebelar-se contra Deus. Consideremos um ateu que diz "Eu não acredito em Deus" . Seu pulso continua a bater, no entanto, e seu fígado continua a funcionar. E esse funcionamento orgânico é visto, na perspectiva islâmica, como uma mostra de que tais órgãos seguem as ordens de Deus ou Sua Vontade. É por isto que no Dia do Juízo cada parte de nosso corpo será nossa testemunha, independentemente de nós mesmos, de acordo com as famosas descrições escatológicas que temos na Sagrada Escritura.
Agora, em um segundo estágio da via, quando a alma se torna purificada, ela não abandona o corpo – o corpo está lá, ainda estamos vivos – e compreende o significado do corpo enquanto criação de Deus e templo do espírito. A idéia do corpo enquanto templo é muito, muito importante, pois está relacionada à grande influência e efeito que uma sensualidade transmutada, - que é também espiritual, tem sobre a vida espiritual. O homem é a ponte entre o Céu e a Terra. Ele precisa, por um lado, trocar a terra pelo Céu, e por outro, trazer o Céu de volta à terra. Ele tem de servir de conduto, de canal para a Graça Divina, a barakah. E essa espiritualidade sensualizada, que é tão importante no Sufismo e que freqüentemente se manifesta em forma de erotismo, no amor ao perfume, a beleza, especialmente a beleza feminina, e em tudo que é mencionado na poesia sufi, está relacionada com a função positiva que o corpo então desempenha nesse dever muito importante do homem espiritualizado de transmitir a Presença Divina ao mundo que o rodeia, incluindo o mundo da natureza.
Ao mesmo tempo, o corpo representa o limite exterior de nossa individualidade, e consequentemente, quando participa dos ritos divinos, temos a certeza de que estamos participando plenamente. É por isto que Jalâl ad-Dîn Rûmi diz que você deveria sentar-se e invocar o Nome de Deus até que os dedos dos seus pés dissessem "Allah, Allah" ; esse poema incrível no Mathnawi refere-se às próprias práticas esotéricas, é claro nunca divulgadas abertamente, de acordo com as quais finalmente, o corpo participa da oração do coração, e o homem compreende a fundão do corpo enquanto extensão do coração, de nosso centro interior, e portanto um recipiente extremamente importante daquilo que chamamos alma. Darei um exemplo. Todos nós temos consciência de que temos um corpo, é claro ; e por um lado ele é um impedimento, se visto apenas como paixão ou véu. Por outro lado, imagine que tipo de pessoas seríamos se conseguíssemos estar sempre em nossos corpos. Na tradição hesicasta há um provérbio: "Somente os santos conseguem permanecer em seus corpos" .
Se conseguíssemos permanecer apenas em nossos corpos, chegaríamos a perfeitos mestres de meditação, pois a única coisa em nós que nunca assenta é a mente. Este é um de seus aspectos maravilhosos, mas, por outro lado, é a paixão mental desenfreada que torna impossível concentrar-se, submeter-se a Deus e revelar o coração como o lugar do conhecimento contemplativo. E o corpo pode ter um papel importante no próprio processo de refrear a mente. Se conseguíssemos viver nossa vida mental apenas em nossos corpos, tornar-nos-íamos mestres da via contemplativa. Tudo o que se tem a fazer é colocar-se no Nome de Deus, e colocar o Nome no coração. Mas como é difícil realizar esta ação aparentemente simples!

J.Z. - Alguém disse : "Esteja consciente de cada respirar" .

S.H.N. - Sim. É claro que esta é uma alusão à técnica da invocação do Nome de Deus, que de fato tem a ver com a expansão do peito, já que o pulmão está dentro do peito, e cada respiração expande o pulmão. 0 respirar não esta relacionado apenas com o pulsar fundamental que permite que a vida humana continue. É também o ritmo que, para o sufi consciente da presença de Deus, o liga a Deus. Portanto cada vez que você respira e não se lembra de Deus, de certa maneira você não alcançou a plenitude, ficou abaixo da perfeição da plenitude.

J.Z. - Na busca da plenitude, Homens e mulheres têm caminhos diferentes a seguir ? Ou a via é a mesma para ambos?

S.H.N. - Antes de tudo, as naturezas masculina e feminina não são acidentais. As diferenças não são somente biológicas, nem somente psicológicas. As diferenças não param sequer no nível espiritual, mas tem suas raízes na Natureza Divina mesma. Os princípios masculino e feminino representam essencialmente a complementaridade que volta a Deus mesmo. Então, todo esse debate sobre Deus Ele ou Ela deve-se ao esquecimento da doutrina metafísica da Natureza Divina que sempre abarca ambos os aspectos ou pólos. Deus em Sua Essência esta acima da dualidade ; ao mesmo tempo, a Infinitude de Deus é o principio da feminidade in divinis, ao passo que a Absolutidade de Deus é o principio ou Protótipo Divino da masculinidade. Na raiz daquilo que aparece no plano humano como masculino e feminino está a Natureza Divina, e não há nada de acidental acerca da distinção entre eles. Há uma espiritualidade feminina e há uma espiritualidade masculina. É claro que todos os seres humanos também contêm em si ambos os elementos em algum grau. No que concerne às práticas do Sufismo, elas soa as mesmas para homens e mulheres. Ambos são vistos como seres imortais com a possibilidade de alcançar o Divino. E é por isto que homens e mulheres complementam-se mutuamente e refletem sua origem andrógina comum. São ambos plenos e segmentados. Consequentemente, tanto a possibilidade do celibato como a da união sexual possuem um significado espiritual; ambas as realidades estão presentes na natureza humana. Uma pessoa que vive uma vida celibatária quer mostrar que é, de fato, uma imagem do todo sem precisar do outro sexo; esta é a base do celibato no Budismo e no Cristianismo, ao passo que na outra filosofia, como ela existe no Islã, no judaísmo e no Hinduismo, onde a sexualidade é positiva e onde a pessoa encontra uma corrente poderosa de sexualidade espiritualizada, a base é a união sexual, que simboliza a complementaridade entre o masculino e o feminino, e portanto a plenitude. Assim sendo, ambas as possibilidades são realizáveis e devem estar contidas em qualquer via espiritual maior, como o Sufismo; mas de modo geral, o Sufismo, sendo a dimensão esotérica do Islã, uma religião onde a sexualidade espiritualizada é enfatizada, repousa no polo da importância da complementaridade entre os sexos. Isto não significa que há dois programas diferentes, um para os homens e outro para as mulheres.
Do mesmo modo que no nível da Lei Divina todas as injunções da Shkri ' ah são as mesmas para homens e mulheres – os jejuns, as preces diárias, as esmolas, a peregrinação, a responsabilidade por atos morais, a questão do julgamento de Deus, excetuando-se o período menstrual, durante o qual a mulher não faz as preces diárias e não jejua – as instruções gerais e as práticas são as mesmas. Porém as nuanças, as sutilezas de qual instrução é dada a que indivíduo em particular não são as mesmas. Não são coisas promulgadas de maneira generalizada para qualquer um, seja homem, seja mulher. É semelhante ao que falei anteriormente sobre as diferenças entre os indivíduos. Todo mestre sufi sério leva em consideração as diferenças entre seus discípulos e discípulas, bem como entre os membros do mesmo sexo. É preciso mencionar aqui que também há mulheres mestras espirituais no Sufismo, não apenas discípulas. Talvez o numero tenha sido menor, mas há grandes mulheres mestras espirituais e santas. Assim, ao mesmo tempo em que não há discriminação entre técnicas espirituais para homens e para mulheres no Sufismo, as espiritualidade masculina e feminina são reconhecidas pelo que são, e de algum modo esses elementos estão entrelaçados em todo ser humano de natureza espiritual.

J.Z. - 0 Sr. fala de todo ser humano de natureza espiritual. Por que algumas pessoas são levadas a procurar um caminho espiritual e outras não ?

S.H.N. - Esta questão é muito importante. As religiões não monoteistas, principalmente as da Índia, respondem com a cadeia de vida e morte, de nascimento e renascimento, e onde estamos nesse ciclo. 0 Islã, o Cristianismo e o Judaísmo não aceitam essa perspectiva, pois enfatizam o estado presente do ser humano e a importância de se estar apto a alcançar Deus a partir deste estado. Portanto, não enfatizam a meditação de como chegamos ao estado presente. No entanto, há muitos ensinamentos esotéricos, principalmente no Islã. que aludem ao fato de haver algum tipo de realidade antes de termos nascido neste mundo, e de termos nascido com uma determinada natureza que nos define. 0 momento histórico no qual entramos no ciclo temporal, o lugar onde nascemos e com que poderes e possibilidades estão todos relacionados com nosso estado anterior a nossa vinda à chamada vida terrestre. É muito difícil, de fato impossível a partir da inteligência humana, dizer as razões exatas de você nascer em Nova Iorque, eu em Teerã, uma terceira pessoa na Bélgica; de você e eu nascermos no século XX, e uma outra pessoa no século XIII; de você poder ser um ótimo musico, e eu um péssimo; ou ainda, de uma pessoa em particular ter um profundo amor a Deus e outra noa. Parece que o momento em que entramos na vida terrestre, o que trazemos a este mundo, já depende de quem somos. A astrologia tenta lidar um pouco com este assunto relacionando-o com a progressão das estrelas. Mas e preciso muito mais que um conhecimento astrólogo para estar apto a relacionar o que se é e a situação de sua vida. É claro, a hereditariedade tem muito a ver com isso. Mas a questão continua : "Por que nascemos de um pai e uma mãe em particular ?" Estas perguntas noa são fáceis de responder no contexto de nossa discussão porque exigem grande dose de preparação metafísica. Noa são impossíveis de entender, mas são difíceis de explicar sem essa preparação.
O que posso dizer, contudo, é que nem todos os seres humanos começam do mesmo ponto, seja intelectual, seja espiritual. Mas porque somos humanos, porque todos temos a marca do Divino em nossa fronte, a justiça de Deus exige que todos tenhamos o mesmo acesso a Ele. E é por isto que a religião em sua formulação geral nunca exclui nenhum de seus seguidores.
Porém, os ensinamentos interiores de uma religião são apenas para aqueles que estão preparados para recebê-los. Se todos os seres humanos tivessem o mesmo desejo ou amor por Deus, então os ensinamentos interiores seriam para todos ; mas este não é o caso da realidade humana. E nenhuma religião pode deixar de prover as necessidades daqueles poucos que buscam Deus aqui e agora, pois tal deficiência significaria a destruição, por parte desta religião, do equilíbrio de toda a coletividade , exatamente como aconteceu no mundo ocidental; pois são sempre aqueles poucos que buscam Deus que funcionam como o sal da sociedade. A religião que não consegue prover as necessidades de seus santos e sábios em potencial gradualmente deixa de ter santos, e então começam a aparecer fissuras em suas muralhas, levando-a ao colapso. 0 corpo exoterico da religião começa a decompor-se. Assim, a necessidade desse ensino interior reservado a poucos está presente em virtude das diferentes possibilidades dos seres humanos. Parece que os seres humanos estão em diferentes pontos dessa longa jornada que parte de Deus e vai até Deus. Somos todos iguais quanto ao fato de que estaremos diante Dele no Dia do Juízo e de que seremos julgados de acordo – Suas leis são para todos nós – , mas o quanto estamos próximos Dele agora, qual conhecimento Dele temos agora e nosso amor por ele agora, isso não é igual.

J.Z. - Uma pessoa que alcançou a plenitude, ou um alto grau de plenitude, tem um papel a cumprir em relação a seus contemporâneos?

S.H.N. - Em todo o debate que se desenrola no mundo moderno entre aqueles que gostariam de depreciar o ideal contemplativo e, em um tipo de visão à la Aurobindo, de pensar que a perfeição consiste em voltar-se para o mundo e refazê-lo, e aqueles que sustentam o ideal tradicional. o que fica realmente esquecido é que e a vocação do ser humano que determina o que ele deve fazer, aquilo que os budistas chamam de dharma. Precisamos seguir nossa própria natureza. Há aqueles que Deus quis que, após terem alcançado a plenitude, fizessem coisas pelos outros seres humanos. Há outros que Deus quis simplesmente que existissem. o que é uma maneira muitíssimo importante de servir a humanidade. Como a luz acima de nós : ela não faz nada, mas ilumina esta sala inteira. E esta função da plenitude que tem sido diminuída no mundo moderno, em detrimento do próprio mundo moderno, com sua super-enfatização da ação. E há outros seres humanos cuja vocação é fazer, ou seja, pessoas que são artistas. Sendo assim, eu não quero dar uma única resposta. Há três modos diferentes de refletir a plenitude. Um deles é por meio de serviços , caridade em todos os níveis ; por exemplo, santos cristãos que criaram hospitais para pobres – e isto não deve ser confundido com o tipo de caridade ateística do mundo moderno, que quer ser bom sem Deus. Estou falando de uma caridade e de um modo de vida de serviço tradicionalmente religiosos, como o Karma yoga dos hindus. Uma pessoa plena vive esta vida de maneira plena, e os efeitos das ações dessa pessoa são enormes. Há uma coisa que muitas pessoas esquecem : a qualidade da ação de uma pessoa que alcançou a plenitude é diferente da qualidade das ações das outras pessoas. 0 que ela diz, a maneira com que olha os outros : o efeito profundo que permanece se deve ao fato de vir de uma fonte de ação diferente, uma camada diferente de ser interior.
O segundo modo é o modo do fazer, que abrange todo o campo das ars – não arte no sentido moderno, mas ars latina. Tal pessoa pode ser apenas um jardineiro, ou fazer algum serviço pequeno; não é preciso ser arte grandiosa, no sentido ocidental moderno. Uma pessoa que alcançou a plenitude põe essa qualidade em tudo o que faz. Toda atividade sua será arte. Em uma civilização tradicional um jardineiro ou um lenhador podiam ser homens com alto grau de plenitude e tudo que fizessem refletiria essa plenitude de maneira a beneficiar aqueles ao seu redor.
E o terceiro modo é o chamado modo de ser, o modo daqueles cuja função é ou disseminar o conhecimento – daqueles cujo ato de caridade é ensinar – , ou simplesmente ser uma presença, não "fazer algo" , mas apenas ser um tipo de testemunha silenciosa de Deus. Estes são como uma janela para o mundo da luz.
Não há rivalidade entre esses vários modos, e é uma grande tragédia que tenha havido escritos polêmicos a esse respeito durante o ultimo século, atacando até mesmo os grandes santos medievais por não terem provido as necessidades dos pobres. Essa aberração moderna deve-se à total falta de compreensão da natureza do mundo, do homem e de Deus; levou a essa situação terrível de hoje, quando muito da teologia é destruída em nome do serviço ao homem, sem que o serviço ao homem tenha melhorado com esse sacrifício sacrílego, cujo resultado foi tornar quase que esquecidas as funções da teologia.

J.Z. - O Sr. tem algum conselho prático para quem está começando a sentir necessidade de mais plenitude em sua vida?

S.H.N. - Quem sente falta de plenitude já recebeu um presente do Céu. Dizemos no Sufismo que a única pessoa cuja ignorância é incurável é aquela que não sabe que é ignorante. Saber que se é ignorante é o primeiro passo para a cura da ignorância. Do mesmo modo, perceber que falta-lhe plenitude já é uma benção do Céu, mesmo se essa percepção vem de uma coisa tão pequena como o desejo de comer comida natural e integral. Como muitas outras coisas, isso pode ser uma moda passageira; mesmo assim é um sinal positivo. Mas o importante é ser verdadeiro consigo mesmo: nunca afrouxar na busca pela plenitude. Ogrande perigo é um estado momentâneo e passageiro que parece um equilíbrio ou um pequeno grau de plenitude, e que causa o esquecimento de que e apenas um degrau ou uma estação da via, não o objetivo. 0 perigo é consolidar-se e petrificar-se nessa estação. É dito no Sufismo que qualquer pessoa na via espiritual que preste atenção em poderes extraordinários, ou mesmo em grandes visões que receba, será barrada da visão de Deus. Você pode até mesmo ser capaz de andar sobre as águas, mas este não é o propósito de se seguir o Sufismo. Não estamos seguindo o Sufismo para andar sobre as águas ou fazer qualquer outro milagre, mas para podermos chegar a Deus. Do mesmo modo, a necessidade de plenitude que entra no coração da pessoa e que em si é uma benção do Céu, não deveria terminar nunca, a não ser que se atingisse a plenitude no seu sentido último. É preciso examinar-se, ser sempre verdadeiro consigo mesmo, ser honesto consigo mesmo, até encontrar a via, é claro. É preciso encontrar o caminho adequado para sua natureza e para o qual se é feito. Uma vez que isso ocorra, é a via que decidirá por nós. Mas, certamente, sob a perspectiva interior é sempre a via que escolhe o homem. e não o homem que escolhe a via.

Maroccan