Raimundo Louco

Raimundo Doido, o meu tipo inesquecível.

Por William LaVarre
para a Seleções do Reader's Digest (*)

O EXPLORADOR William LaVarre dirigiu expedições às selvas da América do Sul cujas finalidades iam desde a busca do ouro até às raridades piscatórias. Durante a guerra, chefiou a Seção das Repúblicas Americanas do Departamento de Comércio e foi diretor de pesquisas e informações da RFC Rubber Development Corporation of South America.
É autor de vários livros sobre assuntos sul-americanos.

Foi EM 1919, quando andava explorando as cabeceiras do Amazonas, que encontrei pela primeira vez Raimundo Araújo de Souza e Silva. Descendo o Rio Negro, vimos numa pequena canoa quase a afundar ao peso de dois enormes vasilhames de látex de borracha, dois terriers brancos e um homem extremamente magro.

—Raimundo Doido! exclamou um dos caboclos. Ainda está tirando leite das seringueiras imprestáveis!

—Doido por quê? perguntei.

—Por causa do preço da borracha. Não vale mais a pena tirar leite das árvores! É doido, mas é um bom amigo em tempos de necessidade. O desconhecido abanou para nós e bradou para os meus companheiros uma saudação na linguagem regional.

—Raimundo Doido está nos convidando a passar a noite no sítio dele, explicou-me um caboclo. —Ele tem muita coisa interessante para mostrar. Podíamos até pernoitar no sítio.
Duas horas mais tarde, quando já as araras começavam a voar rumo a oeste, cruzando o rio para alcançar as montanhas antes do anoitecer, chegamos à casa de Raimundo Doido, em plena selva.

O sítio, metido entre grandes árvores numa clareira de cerca de meio hectare, tinha tanto de cabana coberta de palha quanto de bangalô recoberto de zinco. Nos velhos e bons tempos da borracha, houve alguns sítios verdadeiramente fabulosos. Era o tempo em que os patrões, de tão ricos, construiam em Manaus casas bizarras para as mulheres ou amantes. Mas, agora, a maioria dos sítios eram choças abandonadas. Não, porem, o de Raimundo. Meticulosamente desimpedido do bloqueio ameaçador da mata, a sua aparência asseada era o resultado de árduos trabalhos e vigilância permanente.

Na frente espaçosa da casa de taipa, aguardava-nos o hospedeiro. «O senhor americano,» disse em português, «é muito bem-vindo a esta casa!» Com mais de um metro e oitenta de altura, o porte erecto, usava calças e camisa azuis muito limpas, calçava sandálias de couro e tinha a cabeça muito bem modelada. Na pele queimada o tempo sulcara-lhe algumas rugas suaves, sobretudo no canto dos olhos pardos e na extremidade dos lábios. O seu sítio seria o meu sítio, disse cordialmente. Já fazia muito tempo que não falava com um norte-americano.

Por trás da varanda que circundava a casa principal, havia duas outras casas de madeira, cobertas de palha. Havia ainda uma grande horta cercada por uma esteira de varas de bambu, coqueiros altos carregados de cocos e uma variedade de outras árvores frutíferas—laranjeiras, limeiras, mangueiras, bananeiras, goiabeiras. E patos e galinhas.
Para alem do terreno destinado ao plantio de hortaliças para consumo doméstico—viria a sabê-lo mais tarde— existia uma grande plantação de cana de açúcar, arroz, feijão e milho.
Distingui na sombra da varanda, sentado numa cadeira de balanço que não se movia, um homem de idade avançada, mas de olhos vivos. «Papai, o senhor americano vai passar a noite conosco,» disse o meu hospedeiro—o senhor norte-americano, acentuou.

E explicou-me: «Papai ouve e vê bem, mas perdeu a fala devido a uma infecção da garganta.» O velho e eu trocamos um aperto de mão. «Meu pai é um homem bastante famoso,» continuou Raimundo, enquanto me escoltava para um quarto forrado e rescendente a cedro. Uma das paredes, onde não se viam armadores para pendurar redes, era como uma página da história do Amazonas: velhas fotografias, recortes de jornais, tudo muito bem envidraçado, como proteção contra o clima. Ofereceu-me um licor, de paladar suave mas muito forte, que nunca havia provado antes. «Meu pai já foi químico,» acrescentou. «Inventou esta bebida, aproveitando ingredientes fáceis de encontrar na selva.»

—É ótima! exclamei. —Se montasse uma fábrica em Manaus para produzi-la estou certo que o senhor faria uma fortuna.

—Não, senhor! retrucou ele imediatamente. —Faremos a nossa com borracha, aqui mesmo na selva.

—Dizem os caboclos que não vale mais a pena colher borracha.

—Isto é velha conversa dessa gente sem fé. Meu pai e eu sabemos que não é assim. Quando Deus plantou seringueiras no Brasil, o desejo Dele era que o resto do mundo dependesse da borracha brasileira, e que o povo do Amazonas prosperasse e construisse igrejas.

—E gente de fora apareceu para levar a borracha do Brasil através do Pacífico, acrescentei. —E agora o mundo vai procurar borracha no Extremo Oriente, em vez de vir ao Amazonas. Os olhos de Raimundo faiscaram.

—Ao que o senhor acaba de dizer, devia acrescentar uma outra palavra: fraude. A fraude tornou possível a retirada de seringueiras do Brasil—e Deus não há de consentir que os homens consigam reter os grandes lucros conseguidos pela fraude. Meu pai e eu acreditamos que algum dia o mundo há de voltar-se novamente para o Brasil! exclamou, e encaminhou-se apressadamente para uma grande construção, situada nos fundos do sítio. Dentro do edifício as pilhas das grandes bolas de borracha, acumuladas às centenas, tocavam o teto—quase 5.000 quilos de pura hevea. «Ninguém mais no Brasil conseguiu colher e guardar tanta borracha,» declarou com orgulho. «Dia virá em que estas bolas e mais a borracha que ainda hei de extrair, terão bastante valor.»

Em 1919, eu não participava de sua convicção. O Amazonas tinha milhões de árvores selvagens, mas os ingleses e os holandeses tinham milhões de árvores plan-tadas,-que produziam borracha com mais eficiência.

Pensei que se tratasse de uma causa perdida. Mas o que Raimundo me disse aquela noite, fixou-se-me na memória como marco inapagavel das coisas amazônicas.
O pai de Raimundo, estudante de química no Rio, fugira de casa aos 19 anos— isto ocorreu em 1865—para juntar-se ao movimento migratório que invadia o Alto Amazonas, em busca do «ouro branco». A mãe, nascida em Manaus, descendia de um botânico francês que, como um dos primeiros exploradores do Amazonas, havia em 1736 enviado à Academia de França a primeira amostra da hevea usada pelos índios na confecção de ponchos e sacos de viagem, à prova d'água. Quando Raimundo chegou aos dez anos de idade, o pai possuía milhares de hectares de terra, cobertos de floresta virgem e de seringais. Tinha grande orgulho de sua qualidade de pioneiro, e de suas seringueiras.

Um dia aparece-lhe um estrangeiro no seringal; vinha escrever um livro com o propósito de ajudar os brasileiros a produzir melhor borracha e pedia permissão para ficar ali estudando. Na verdade, o que ele fez foi colecionar secretamente sementes de hevea—7.000 das quais levou, em 1876, para a Inglaterra, onde as plantou num jardim botânico. As mudas resultantes foram transportadas para a Malaia inglesa e daí para o Ceilão e para a Birmânia.
—E foi assim, meu senhor, que, por obra da fraude, o Brasil perdeu a sua borracha, exclamou Raimundo Doido. —A notícia chegou até nós; deixando o meu pai muito doente. Os amigos não mais lhe falavam. Pensavam que ele tivesse ajudado o inglês. Houve gente até que nos acusou de ter vendido as sementes.

—Uma história bastante triste, comentei. —mas o inglês obteria as sementes de qualquer forma. Foi precisamente para isto que o despacharam da Inglaterra. Ele não era senão um agente do Governo Inglês, que apostara como dentro de 30 anos as plantações de seringueiras podiam ser mais lucrativas que florestas de seringais selvagens.

—Foi uma fraude que algum dia há de ser punida, volveu Raimundo. —Fiz um pacto com meu pai. Guardarei toda a borracha, não venderei um só quilo. Dia virá em que Deus nos indenizará da fraude. E estarei aqui neste mesmo lugar para ver esse dia!
Pela madrugada, Raimundo tinha um lauto almoço pronto para mim:

—O senhor é um homem extraordinário! observei. —Ovos, galinha frita, carne de porco salgada, bolo de aipim com mel —não sei como consegue tudo isso!

—É fácil a gente viver confortavelmente na selva, explicou sorrindo. —A questão é viver de acordo e não contra ela. As seringueiras só devem ser sangradas na estação da seca. Sobram-nos seis meses de chuva para fazer outras coisas, caçar porco do mato, defumar carne de veado, trabalhar de carpinteiro. A maior parte da gente do rio passa a estação chuvosa vadiando, mas eu não perco um dia. Armazeno borracha, mas também vendo bolbos de orquídea, goma de incenso e castanhas.

- Dito isto, caminhou comigo para o barranco do rio.

Na outra vez que vi Raimundo Doido, ambos tínhamos envelhecido 15 anos. Em 1933, levei a cabo uma longa expedição que durou um ano, da costa do mar das Caraibas até às cabeceiras do rio, na linha divisória entre a Venezuela, a Guiana e o Brasil, de onde fui ter, na volta, já em 1934, a um pequeno igarapé, no qual pude navegar em balsa até ao Rio Negro e daí ao sítio de Raimundo Doido.

O tempo somente lhe havia encanecido alguns cabelos. Recebeu-me como se eu fosse um velho amigo. Contou-me com tristeza que o pai falecera em 1932, mas essa perda foi a única má notícia que me deu.

«Não tardará muito e o mundo terá de voltar-se novamente para o Brasil, em busca de borracha!» predisse ele. «Estou com 68 anos, mas espero viver até lá.» Informou-me que tinha agora armazenados 25.000 quilos de borracha. Quando lhe disse adeus, eu estava certo de nunca haver encontrado um homem mais confiante em ver a sua fé convertida em realidade.

Em começos de 1943 nossos caminhos se cruzaram pela terceira e última vez. Eu acabara de fazer uma viagem de avião de Washington para o Amazonas, no cumprimento de missão urgente. Fazia quinze meses que a guerra cortara as indústrias americanas de quase todas as plantações de borracha. E havia apenas cerca de 440.000 toneladas de borracha natural em estoque. Somente os planos militares reclamavam para consumo 312.500 toneladas por ano. O Governo dos Estados Unidos necessitava com urgência borracha do Amazonas. Mas a indústria brasileira fora desmantelada, pelo êxodo dos seus velhos seringueiros transferidos a outras ocupações.

Minha incumbência era dar início a um novo movimento de migração e produção de borracha no Amazonas. Eu estava em Manaus havia somente dois dias, quando recebi a visita de Raimundo Doido. Ele ainda mantinha a postura erecta, mas os cabelos estavam completamente brancos.

—Sim, senhor! disse ele, rindo. —Eu não lhe disse ? Apanhou uma carteira no bolso do casaco e colocou em cima da minha secretária duas ordens de pagamento bancárias. Somavam as duas cerca de 2.000.000 de cruzeiros. —Na semana passada vendi para cima de 50.000 quilos de borracha, o sítio e todas as seringueiras, esclareceu. —Agora sou um homem livre. Meu pacto com meu pai está terminado. O mundo teve que voltar-se de novo para o Amazonas, à procura da nossa borracha; as plantações roubadas ao Brasil foram invadidas. Faço hoje 77 anos. Vamos comemorar!

Raimundo empenhara 20 anos da sua vida na luta contra um dos cartéis mais poderosos do mundo e a sua fé pagou-lhe uma fortuna. Mas não era do dinheiro que ele blasonava.

—Aqueles caboclos que remavam para mim em 1919, disse eu, caçoando, ao festejarmos a sua vitória final com uma garrafa de champanha gelada—chamavam o senhor de Raimundo Doido!

Ele riu satisfeito.

—Essa gente do rio sempre pensou que eu fosse maluco. Agora, disse gravemente, —a borracha do Amazonas terá por algum tempo e pela última vez grandes dias. Quando a guerra acabar, os senhores terão descoberto a maneira de produzir boa borracha nas fábricas. Os dias, tanto das seringueiras nativas como das seringueiras cultivadas estão contados. Abandonarei a selva. Dentro de dez dias estarei no Rio!

Ainda agora olhando por sobre os hori zontes distantes das minhas viagens, revejo mentalmente o valente velho Raimundo Araújo de Souza e Silva, tal como o vi pela última vez, de pé à amurada do vapor amazonense que o levava para fora da selva. Foi o homem mais perseverante que jamais encontrei.