A Ortopedia dos Curandeiros Selvagens

Condensado de «Esquire» para “Seleções do Reader’s Digest” (*), 1942

Por William LaVarre

Autor de «Gold, Diamonds and Orchids», «Fated woman», etc.

QUANDO William LaVarre regressou a Harvard, depois das suas férias de calouro, mostrou aos colegas pasmos um punhado de diamantes, e regalou-os com a narrativa das suas aventuras na América do Sul. Desde então tem vivido entre as duas Américas, procurando, nas florestas do sul, toda a sorte de cousas, e escrevendo, no norte, sobre geografia, viagens de exploração, e tudo o que viu de curioso. Notou, desde há muito, a notável eficiência da medicina selvática no tratamento de moléstias várias, por meio de plantas nativas, e trouxe consigo muitos ingredientes novos, empregados nas atuais formulas médicas.
Mr. LaVarre tem, agora, 41 anos, e é membro da Real Sociedade de Geografia (Inglaterra) e da Sociedade Americana de Geografia (Estados Unidos).

SURGE, de quando em vez, um explorador, que sorri daquilo em que não pode crer. Sou, por natureza, um céptico, o que desejo tornar bem claro, uma vez que pretendo narrar fatos por mim presenciados nas profundezas da selva da Guiana Holandesa, na América do Sul. Vivem ali os derradeiros e únicos representantes da raça negra que ainda se encontram, hoje em dia, absolutamente livres e insubmissos: 30,000 Djukas selvagens cujos antepassados africanos foram vendidos aos colonos holandeses pelos traficantes de escravos. Os holandeses não conseguiram domesticá-los, e, atemorizados pelos seus terríveis ataques, deixaram que se embrenhassem pela selva, em pleno interior, a 50 milhas da costa. Os Djukas vivem sob a chefia de um rei, e segundo as leis da própria tribo.

Nenhum homem branco pode penetrar os seus domínios sem prévia permissão. Portador de estranho passaporte, uma espécie de pá de remo lavrada—sinal que atesta a permissão do rei para viajar rio acima—fui ter, certa feita, ao cair da tarde, à Aldeia-dos-Deuses, cujo chefe é o mais importante curandeiro da tribo.

Encontrei-o sentado no seu escabelo de médico e bruxo, junto à fogueira do ritual. Sobre esta balouçava um pote negro cujo conteúdo êle mexia com uma longa colher de pau, ornada de desenhos intrincados, devidamente insculpidos, e representando serpentes e animais diversos.

Ao revelar-me interessado na sua medicina, êle abanou a cabeça num gesto aprovador. Como lhe pedisse, em seguida, uma explicação do que fazia, lançou o olhar em torno durante alguns segundos, e gritou qualquer cousa a um preto muito velho que se achava sentado diante de uma pequena cabana. O velho desapareceu então por ali dentro, e voltou trazendo consigo uma das visões mais estranhas que jamais me cairam sob os olhos:—um garoto preto, com uma das pernas extremamente arqueada e a.outra perfeitamente reta.

O pequeno fora trazido à aldeia algumas semanas antes, com ambas as pernas horrivelmente arqueadas, deformação que o afligira desde a primeira infância. Agora, tinha uma das pernas curada. Com a lua nova, a outra ficaria igualmente perfeita. A mãe do garoto pagaria então 12 galinhas e um pato, e o pai uma canoa nova.

Conduziu-me o chefe, em seguida, a uma espécie de alpendre. Sob o teto coberto de palmas, achava-se uma canoa cujo casco, forrado de barro, havia sido talhado de maneira a formar um assento reclinado, de que partiam, num ligeiro declive, dois canais. O pequeno enfermo foi colocado nesse assento e a sua perna arqueada metida em um dos canais. Três velhos sairam da cabana do curandeiro, trazendo umas cabaças cheias de um líquido branco, e derramaram-no sobre a perna defeituosa, até cobri-la de todo. Trouxeram, a seguir, o pote negro, cujo conteúdo foi igualmente vertido sobre a perna do menino. O líquido branco tornou-se, então, negro, tomando, à superfície, um aspecto oleoso e brilhante.

—Ele dormirá na canoa, esta noite—, disse o chefe. —Amanhã esticaremos um pouco mais a perna.

Mergulhei um dedo no líquido. Tinha um cheiro ácido. Procurei averiguar também qual o odor que se desprendia das cabaças vazias, esperando reconhecer, por esse meio, o respectivo conteúdo. Mas levaram-nas tão depressa que não tive tempo para isso.

Na manhã seguinte, o chefe e seus dois idosos auxiliares retiraram o pequeno aleijado da matéria viscosa que se formara na canoa-medicinal, e colocaram-no sobre uma mesa. A carne da perna doente achava-se encolhida, com um aspecto de pele de elefante, e inteiramente flácida. Ataram-na, ao tornozelo, com umas espécies de cavilhas presas à ponta da mesa. Puzeram-se então a forçar, com as mãos, a curva do joelho. A perna estendeu-se um quarto de polegada e, a seguir, foi-se aproximando do nivel. O curandeiro envolveu o joelho do pequeno num pedaço de pano, e prendeu-o à mesa com tiras de couro apertadas com força, de modo que o joelho não pudesse voltar à primitiva posição. Uma rapariga trouxe um caldo e alguns bolos de arroz. O menino, então, deixando de ranger os dentes, começou a comer. O chefe e os curandeiros voltaram à sua cabána.

Quando julguei que já ninguém me via, procurei encher uma garrafa com a solução que ficara na canoa. Levá-la-ia, de volta, à civilização, para que fosse analisada. Mas uma das mulheres pôs-se a gritar, dando o alarme, e o chefe, vindo às pressas, tirou-me das mãos a garrafa. Era um segredo, protestou, que não estava ao alcance da compreensão dos homens brancos! Tal a resposta a todas as perguntas que porventura lhe fazia.

Os curandeiros cobriram os molhos de raizes de côr purpúrea, as cestas de folhas secas e os pedaços de borracha esbranquiçada que se achavam ao lado da cabána. Seria concebível que uma solução capaz de amoiecer os ossos proviesse de tão primitiva farmácia? Verdade é que muitos dos medicamentos atuais se originam "de raizes, cascas de árvore, cepos e flores, e que se organizam expedições à África e à América do Sul, na esperança de descobrir novas plantas de propriedade medicinal. As mulheres da selva mastigam uma determinada raiz para aliviar as dores do parto. Os Aracanianos, do Chile, conhecem uma planta capaz de determinar um aborto. Os índios do Amazonas possuem uma determinada qualidade de goma que cicatriza úlceras e feridas purulentas; é-lhes também familiar certo vegetal que mata instantaneamente os peixes e os insetos, não sendo, todavia, nocivo aos homens e aos animais em geral. A ciência veio a descobrir que existe, no mesmo, o veneno conhecido pelo nome de «rotenone», o qual constitue um inseticida mais seguro que o arsênico, e é hoje usado pela civilização.

Fôra-me talvez possível descobrir os ingredientes de que se compunha a solução emoliente de ossos, se ali permanecesse um dia mais. Porém o velho chefe, quando propus prolongar minha visita, declarou que se via solicitado por numerosas ocupações. Além do mais, acrescentou, o rei mandara um mensageiro pedindo que eu me apresentasse antes do pôr do sol. Não há que argumentar com homens primitivos, de modo que parti em direção à aldeia do rei.

O rei Ah-Tu-den-du, envergando um velho uniforme de almirante holandês, recebeu-me cordialmente. Eu ali ia a título de concluir um negócio relativo a cerca de mil toros de acajú, o que parecia dispô-lo em meu favor. Reservou-me uma casa limpa. Tudo o que eu desejasse ser-me-ia facilitado, declarou.

—Há uma cousa em que me pode ser útil—, disse-lhe, uma vez encerrado o negócio. —Há curandeiros, na Aldeia-dos-Deuses, que preparam um medicamento para endireitar pernas arqueadas. Ordene ao chefe que me revele o segredo, e me entregue algumas porções do remédio, para que eu as leve comigo para o meu país.

-Ninguém manda nos curandeiros—, rosnou êle. —Nem eu mesmo. E um segredo que lhes pertence. Pode você obrigar os seus irmãos brancos a revelar o que contêm os seus frascos?

Tentei suborná-lo, mas em vão. O segredo pertencia aos curandeiros, e a mais ninguém.

De regresso, rio abaixo, duas semanas mais tarde, parei de novo à Aldeia-dos-Deuses.

O pequeno aleijado tinha ambas as pernas perfeitas. Os joelhos podiam tocar um no outro, assim como também os tornozelos. Mais duas semanas, e eis-me na costa, a palestrar com o médico em chefe do Hospital Municipal.

—Imagine—, disse-lhe eu, sentindo-me finalmente com a coragem necessária para narrar-lhe o episódio, de que julguei que êle se iria rir: —Imagine que assisti, lá em cima, a uma operação muito estranha. Vi, com meus olhos, as pernas arqueadas de um garoto serem trazidas à posição normal. Sei que é quasi impossível crer nisso; mas vi, com os meus próprios olhos.

—É—, respondeu o médico holandês. —Estamos a par disto. Eles empregam uma solução que torna os ossos flexíveis como bambu. O cônsul americano tinha um órfão Djuka a seu serviço. As pernas do rapazola eram tão arqueadas que havia, entre os dois joelhos, um espaço de 20 centímetros. Um dia o rapaz desapareceu. Um ano depois voltava, com as pernas tão direitas quanto as suas. Radiografei-as, para ver se os ossos haviam sido quebrados e recompostos. Não era o caso. O rapaz contou-nos, então, que o tinham feito sentar-se, por alguns dias, numa solução quente, e que, depois, sobre uma mesa, esticaram-lhe as pernas, pouco a pouco. Foi tudo o que nos pôde descrever.
Ora, sou, como disse, um céptico, e as famosas mágicas da selva deixam-me sempre frio. Mas, se tivesse as pernas arqueadas, iria à Aldeia-dos-Deuses, sentar-me na canoa medicinal. Aposto como os curandeiros fariam por mim o que os médicos civilizados não lograriam fazer —estender-me os ossos, até ficarem direitos. Vi-os fazê-lo, com meus próprios olhos!