Guenon estuda

O simbolismo do tecido

de René Guénon

Este estudo constitui o capítulo XIV de "Le Symbolisme de la Croix"
(Les Éditions Vêga, Paris 1983)

E xiste um simbolismo que se refere diretamente ao que acabamos de expor, embora se faça dele uma aplicação que, à primeira vista, parece afastar-se um pouco: nas doutrinas orientais, os livros tradicionais são freqüentemente designados por termos que, em seu sentido geral, referem-se à tecelagem. Assim, em sânscrito, sûtra significa propriamente “fio”(1): um livro pode ser formado por um conjunto de sûtras, como um tecido é formado por um conjunto de fios; tantra possui também o significado de “fio” e de “tecido”, e designa mais particularmente o urdume de um tecido (2). Da mesma forma, em chinês, king é o urdume de um pano, e wei sua trama; o primeiro destes dois termos designa ao mesmo tempo um livro fundamental, e o segundo seus comentários (3). Esta distinção entre urdume e trama no conjunto das escrituras tradicionais corresponde, segundo a terminologia hindu, à que existe entre a Shruti, que é o fruto da inspiração direta, e a Smriti, que é o produto da reflexão que se exerce sobre os dados da Shruti (4).

Para melhor compreender o significado deste simbolismo, é preciso lembrar primeiramente que o urdume, formado por fios esticados sobre o tear, representa o elemento imutável e principial, enquanto que os fios da trama, passando em meio ao urdume pelo vaivém da navete, representam o elemento variável e contingente, ou seja as aplicações do princípio a tais ou quais condições particulares. Por outro lado, se considerarmos um fio do urdume e outro da trama, percebemos imediatamente que seu cruzamento forma uma cruz, da qual eles são respectivamente a linha vertical e a horizontal; e todo ponto do tecido, sendo assim o ponto de encontro de dois fios perpendiculares entre si, é porisso mesmo o centro de uma tal cruz. Ora, segundo o que vimos quanto ao simbolismo geral da cruz, a linha vertical representa aquilo que une entre si todos os estados de um ser ou todos os graus da Existência, religando seus pontos correspondentes, enquanto que a linha horizontal representa o desenvolvimento de um destes estados ou de um destes graus. Se reportarmos isto ao que já indicamos, podemos dizer que o sentido horizontal figurará por exemplo o estado humano, e o sentido vertical o que é transcendente em relação a este estado; este caráter transcendente é exatamente o da Shruti, que é essencialmente “não humana”, enquanto que a Smriti comporta as aplicações à ordem humana e é o produto do exercício de faculdades especificamente humanas.

Podemos acrescentar aqui outra observação que fará ressaltar a concordância dos diversos simbolismos, mais estreitamente ligados do que se pode supor à primeira vista: trata-se do aspecto sob o qual a cruz simboliza a união dos complementares. Vimos que, sob este aspecto, a linha vertical representa o princípio ativo ou masculino (Purusha), e a linha horizontal o princípio passivo ou feminino (Prakriti), sendo que toda a manifestação é produzida pela influência “não-agente” do primeiro sobre o segundo. Ora, por outro lado, a Shruti é assimilada à luz direta, figurada pelo sol, e a Smriti à luz refletida (5), figurada pela lua; mas, ao mesmo tempo, o sol e a lua, em quase todas as tradições, simbolizam também respectivamente o princípio masculino e o princípio feminino da manifestação universal.

O simbolismo da tecelagem não se aplica somente às escrituras tradicionais; ele é empregado também para representar o mundo, ou mais exatamente o conjunto de todos os mundos, vale dizer de estados ou graus, em multitude indefinida, que constituem a Existência universal. Assim, nos Upanishads, o Supremo Brahma é designado como “Aquele sobre quem os mundos são tecidos, como urdume e trama”, ou por outras fórmulas similares (6); o urdume e a trama tem naturalmente, aqui também, os mesmos significados respectivos que acabamos de definir. Por outro lado, segundo a doutrina taoísta, todos os seres estão submetidos à alternância contínua dos dois estados de vida e de morte (condensação e dissipação, vicissitudes do Yang e do Yin) (7); e os comentadores chamam a esta alternância “o vaivém da navete sobre o tear cósmico” (8).

De resto, na verdade, existe tanto mais relação entre estas duas aplicações de um mesmo simbolismo que o próprio Universo, em certas tradições, é às vezes simbolizado por um livro: lembraremos apenas, a este propósito, o Liber Mundi dos Rosa-Cruz, e também o símbolo bem conhecido do Liber Vitae apocalíptico (9). Sob este ponto de vista ainda, os fios do urdume, pelos quais são ligados os pontos correspondentes em todos os estados, constituem o livro sagrado por excelência, que é o protótipo (ou antes o arquétipo) de todas as escrituras tradicionais, de que estes não passam da expressão em linguagem humana (10); os fios da trama, dos quais cada um é o desenrolar dos acontecimentos de um certo estado, constituem o seu comentário, no sentido que fornecem as aplicações relativas aos diferentes estados; todos os eventos, vistos na simultaneidade do “intemporal”, estão assim inscritos neste Livro, do qual cada um é por assim dizer uma letra, identificando-se por outro lado a um ponto do tecido. Sobre o simbolismo do livro, citaremos também um resumo do ensinamento de Mohyiddin ibn Arabi: “O Universo é um imenso livro; os caracteres desse livro são todos escritos, em princípio, com a mesma tinta e transcritos na Tábua eterna pela pluma divina; todos são transcritos simultaneamente e indivisíveis; é por isso que os fenômenos essenciais divinos escondidos no “segredo dos segredos” tomam o nome de “letras transcendentes”. E essas mesmas letras transcendentes, ou seja todas as criaturas, antes de serem condensadas virtualmente na onisciência divina, foram, pelo sopro divino, descidas até as linhas inferiores, e compuseram e formaram o Universo manifestado” (11).

Uma outra forma do simbolismo da tecelagem, que se reencontra também na tradição hindu, é a imagem da aranha tecendo sua teia, imagem que é tanto mais exata na medida em que a aranha forma essa teia de sua própria substância (12). Em razão da forma circular da teia, que é aliás o esquema plano do esferóide cosmogônico, ou seja da esfera não fechada ã qual já fizemos alusão, o urdume é representado aqui pelos fios irradiantes ao redor do centro, e a trama pelos fios dispostos em circunferências concêntricas (13). Para voltarmos daí à figura comum da tecelagem, só temos que considerar o centro como indefinidamente afastado, de tal modo que os raios se tornam paralelos, segundo a direção vertical, enquanto que as circunferências concêntricas se tornam retas perpendiculares a esses raios, ou seja horizontais.

Em resumo, podemos dizer que o urdume representa os princípios que religam entre si todos os mundos e todos os estados, sendo que cada um de seus fios religa pontos correspondentes nestes diferentes estados, e que a trama representa os conjuntos de eventos que se produzem em cada um destes mundos, de modo que cada fio da trama é, como já dissemos, o desenrolar dos eventos em um mundo determinado. De um outro ponto de vista, podemos dizer ainda que a manifestação de um ser em um certo estado de existência é, como todo evento qualquer que seja ele, determinado pelo encontro de um fio do urdume com um fio da trama. Cada fio do urdume é então um ser visto em sua natureza essencial, que, enquanto projeção direta do “Si” principial, faz a ligação de todos os seus estados, mantendo sua unidade própria através da sua indefinida multiplicidade. Neste caso, o fio da trama que este fio do urdume encontra em um certo ponto corresponde a um estado definido de existência, e sua interseção determina as relações deste ser, quanto à sua manifestação neste estado, com o meio cósmico no qual ele se situa sob este aspecto. A natureza individual de um ser humano, por exemplo, é o resultado do encontro de dois fios; em outros termos, sempre caberá distinguir aí duas espécies de elementos, que deverão ser reportados respectivamente ao sentido vertical e ao sentido horizontal: os primeiros exprimem aquilo que pertence propriamente ao ser considerado, enquanto que os segundos provém das condições do meio.

Acrescentemos que os fios de que é formado o “tecido do mundo” são ainda designados, em outro simbolismo equivalente, como os “cabelos de Shiva” (14); podemos dizer que são de certo modo as “linhas de força” do Universo manifestado, e que as direções do espaço são a sua representação na ordem corporal. Vemos sem dificuldade a quantas aplicações diferentes estas considerações dão lugar; mas quisemos aqui apenas indicar o significado essencial do simbolismo da tecelagem, que é, ao que parece, muito pouco conhecido no Ocidente (15).

Notas:

1. Esta palavra é idêntica ao latim sutura, sendo que a mesma raiz, com o sentido de cozer se encontra igualmente nas duas línguas. – É ao menos curioso contatar que o termo árabe sûrat, que designa os capítulos do Corão, é composto dos elementos que o sânscrito sûtura; este termo tem, aliás, o sentido paralelo de “fila” ou “fileira”, e sua derivação é desconhecida.

2. A raiz tan desta palavra exprime em primeiro lugar a idéia de extensão.

3. Ao simbolismo da tecelagem liga-se ainda o uso de cordinhas com nós que fazia as vezes de escrita na China, em épocas muito recuadas; estas cordinhas eram do mesmo gênero que as que os antigos Peruanos também empregavam e às quais eles davam o nome de quipos. Embora se tenha dito que estes últimos só serviam para contar, é provável que também servissem para exprimir idéias bastante mais complexas, tanto mais que constituíam os “anais do império”, e que os Peruanos nunca tiveram outro método de escrita, embora possuíssem uma língua muito perfeita e refinada; este tipo de ideografia era possível pelas múltiplas combinações nas quais o uso de fios com cores diferentes desempenhava um papel importante.

4. Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. I, e Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, cap. VIII.

5. O duplo sentido da palavra “reflexão” é aqui digna de nota.

6. Mundaka Upanishad, 2º Mundaka, Khanda, shruti 5ª; Brihad-Aranyaka Upanishad, 3º Adhyâya, 8º Brâhmana, shrutis 7 e 8. – O monge budista Kûmarajîva traduziu em chinês uma obra sânscrita intitulada A rede de Brahma (Fan-wang-king), segundo o qual os mundos estão dispostos como malhas de uma rede.

7. Tao-Te-King, XVI.

8. Tchang-Houng-Yang compara também esta alternância à respiração, sendo que a inspiração ativa corresponde à vida e a expiração passiva corresponde à morte, e o fim de uma é o começo da outra. O mesmo comentarista se serve ainda, como termo de comparação, da revolução lunar, sendo a lua cheia a vida e a lua nova a morte, com dois períodos intermediários de crescimento e decréscimo. No que concerne à respiração, o que é dito aqui deve ser referido às fases da existência de um ser comparado a ele quando respira; por outro lado, na ordem universal, a expiração corresponde ao desenvolvimento da manifestação, e a inspiração ao retorno ao não-manifestado, como já foi dito; segundo se encare as coisas em relação à manifestação ou em relação ao Princípio, não se deve esquecer de aplicar o “sentido inverso” na analogia.

9. Indicamos mais acima que, em certas figurações, o livro selado com sete selos, e sobre o qual está deitado o cordeiro, é colocado, como a Árvore da Vida”, na fonte comum dos quatro rios paradisíacos, e aludimos então à relação entre o simbolismo da árvore e o do livro: as folhas da árvore e os caracteres do livro representam igualmente todos os seres do Universo (os “dez mil seres” da tradição extremo-oriental).

10. Isto é afirmado expressamente a respeito do Veda e do Corão; a idéia do “Evangelho eterno” mostra também que esta mesma concepção não era totalmente estranha ao Cristianismo.

11. El-Futûhâtul-Mekkiyah. – Podemos fazer uma aproximação com o papel que desempenham as letras na doutrina cosmogônica do Sepher Ietsirah.

12. Comentário de Shankarâchârya sobre os Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 1º Pâda, sûtra 25.

13. A aranha, mantendo-se no centro da teia, dá a imagem do sol rodeado de seus raios; ela também pode ser tomada como uma figura do “Coração do Mundo”.

14. Aludimos a isto mais acima, a respeito das direções do espaço.

15. Encontramos entretanto traços de um simbolismo do mesmo tipo na antigüidade greco-latina, notadamente no mito das Parcas; mas este parece reportar-se apenas aos fios da trama, e seu caráter “fatal” pode com efeito ser explicado pela ausência da noção do urdume, ou seja pelo fato de que o ser é visto somente em seu estado individual, sem nenhuma intervenção consciente (para este indivíduo) de seu princípio pessoal transcendente. Esta interpretação é, aliás, justificada pelo modo como Platão considera o eixo vertical no mito de Er o Armênio (República, livro X); segundo ele, de fato, o eixo luminoso do mundo é o “fuso da Necessidade”; é um eixo de diamante, cercado de anéis concêntricos, de dimensões e cores diversas, que correspondem às diferentes esferas planetárias; a Parca Clotho o faz girar com sua mão esquerda, portanto da direita para a esquerda, o que é o sentido mais habitual e mais normal da rotação da swastika. – A propósito deste “eixo de diamante”, assinalemos ainda que o símbolo tibetano do vajra, cujo nome significa ao mesmo tempo “raio” e “diamante”, está também relacionado ao “Eixo do Mundo”.

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