Guenon estuda

A superstição da palavra valor

René Guénon
in "Mélanges", Cap. III - pág.145. Paris. Ed. Gallimard, 1972 (original publicado em 1940)

Denunciamos, em algumas de nossas obras, um certo número de superstições especificamente modernas cuja característica mais notável é a de repousar definitivamente sobre o prestígio atribuído a uma palavra, tanto maior quanto mais vaga e inconsistente é a idéia evocada por esta palavra para a maior parte das pessoas.

A influência exercida pelas palavras, por si mesmas, independentemente do que exprimem ou deveriam exprimir nunca foi, de fato, tão grande como em nossa época. Há nisso algo como uma caricatura da potência inerente às fórmulas rituais - e mesmo aqueles que são os mais encarniçados a negar isso são, por um singular contragolpe, os primeiros a se deixar levar por aquilo que é apenas uma paródia profana.

Desnecessário dizer, aliás, que esta potência das fórmulas ou palavras nos dois casos, não é da mesma ordem, de modo algum; a das fórmulas rituais, que se baseia essencialmente sobre a "ciência sagrada" é algo de plenamente efetivo, que se exerce realmente nos domínios os mais diferentes, segundo os efeitos que se queira obter; ao contrário, a de sua contrafação profana só é suscetível, diretamente ao menos, de uma ação puramente "psicológica" e sobretudo sentimental, isto é, no domínio mais ilusório de todos. No entanto, uma ação como esta não é inofensiva, longe disso, pois estas ilusões "subjetivas" ainda que insignificantes em si mesmas, não deixam de ter conseqüências bastante reais na atividade humana. Sobretudo, contribuem enormemente para a destruição de toda verdadeira intelectualidade o que, de resto, é a principal razão de ser que lhe é conferida no "plano" de subversão moderna.

As superstições de que falamos variam em certa medida de um momento para outro, pois existe nisso um tipo de "moda" como para todas as coisas em nossa época; não queremos dizer com isso que, quando surge uma nova moda esta substitua imediatamente e inteiramente as outras, pois podemos constatar facilmente a sua coexistência na mentalidade contemporânea; mas a mais recente toma ao menos um lugar predominante e rejeita mais ou menos as outras para segundo plano.

Assim, na ordem de coisas que temos em vista presentemente, podemos dizer que houve inicialmente a superstição da "razão", que atingiu seu ponto culminante pelo fim do século XVIII; depois, a da "ciência" e do "progresso", aliás, estreitamente ligadas à precedente, características do século XIX; mais recentemente ainda, vimos aparecer a superstição da "vida", que teve grande sucesso nos primeiros anos do século atual.

Como tudo muda com velocidade crescente, estas superstições assim como as teorias científicas e filosóficas às quais elas são talvez ligadas de certo modo, parecem se "gastar" mais e mais rapidamente; também temos desde agora que registrar o nascimento de uma superstição nova, a do "valor", que data de apenas alguns anos - mas que tende já a tomar a frente das outras (lembrar que este texto é de 1940).

Certamente, não temos a tendência em exagerar a importância da filosofia e menos ainda a moderna pois, mesmo reconhecendo que ela possa ser um dos fatores que agem mais ou menos sobre a mentalidade geral, achamos que está longe de ser a mais importante e mesmo, sob sua forma "sistemática", é mais um efeito que uma causa; mas, mesmo assim, exprime de um modo mais claramente definido o que existia já em estado difuso nesta mentalidade e, em conseqüência, coloca em evidência um pouco como se fosse uma lente de aumento, coisas que poderiam escapar à atenção do observador ou que, ao menos, seriam mais dificilmente discerníveis.

Também, para melhor compreender do que se trata aqui, é bom lembrar antes de tudo as etapas da decadência gradual das concepções filosóficas modernas:

Inicialmente, a redução de todas as coisas ao "humano" e ao "racional";
depois, a limitação cada vez mais estreita do sentido dado ao "racional", do qual acaba por se considerar apenas as funções mais inferiores;
enfim, descenso ao "infra-racional" com o denominado "intuicionismo" e as diversas teorias que se aparentam mais ou menos diretamente.
Os "racionalistas" consentem ainda falar da "verdade", apesar que se trata, evidentemente, apenas de uma "verdade" muito relativa para eles.

Os "intuicionistas" quiseram substituir o "verdadeiro" pelo "real" - o que poderia ser quase a mesma coisa se nos ativéssemos ao sentido normal das palavras - mas, longe disso, pois temos aqui de levar em conta a estranha deformação pela qual, no uso corrente, a palavra "realidade" acabou por designar exclusivamente as coisas de ordem sensível, quer dizer, precisamente aquelas que têm o menor grau de realidade.

Na seqüência, os "pragmáticos" pretenderam ignorar inteiramente a verdade e suprimi-la de certo modo, substituindo-a pela "utilidade"; trata-se então propriamente da queda no "subjetivo", pois é claríssimo que a utilidade de uma coisa não é uma qualidade que reside nessa coisa mesma mas, isto sim, depende inteiramente daquele que a considera, fazendo um tipo de apreciação individual, sem se interessar minimamente o que é a coisa ora desta apreciação, quer dizer, no fundo, ao que ela é em realidade: seria difícil ir mais longe no caminho da negação de toda intelectualidade.

Os "intuicionistas" e os "pragmáticos", assim como os representantes de algumas escolas vizinhas de menor importância, enfeitam suas teorias com a etiqueta de "filosofia de vida"; mas, parece que esta expressão não tem mais tanto sucesso como dantes, e a que está em maior evidência hoje em dia é a chamada "filosofia de valores".

Esta nova filosofia parece investir no "real" mesmo, do modo que se queira entendê-lo, um pouco como os "pragmáticos" investem no "verdadeiro"; sua afinidade com o "pragmatismo", em certos aspectos é manifesta, pois o "valor", assim como a "utilidade" só podem ser um simples caso de apreciação individual e o caráter "subjetivo", como veremos adiante, é talvez ainda mais acentuado.

É possível, aliás, que o sucesso atual da palavra "valor" se deva em parte ao sentido grosseiramente material que, apesar de não ser inerente ao termo em sua origem, ficou associado na linguagem ordinária: quando falamos de "valor", ou de "avaliação", pensa-se logo em alguma coisa que possa ser "contada" ou "cifrada", e é preciso convir que isto combina bem com o espírito "quantitativo" próprio do mundo moderno.

No entanto, o que acabamos de dizer é quando muito metade da explicação: é preciso lembrar que o "pragmatismo"- que se define pelo fato de reportar-se inteiramente à "ação" - não entende a "utilidade" somente num sentido material, mas também no sentido moral; o "valor" é igualmente suscetível destes dois sentidos, mas é o segundo que predomina claramente na concepção que se trata pois o lado moral, ou mais exatamente "moralista" é ali bem exagerado. Esta "filosofia de valores" se apresenta aliás sobretudo como uma forma de "idealismo" e é sem dúvida isto que explica sua hostilidade a respeito do "real", pois se entende que na linguagem especial dos filósofos modernos o "idealismo" se opõe ao "realismo".

Sabemos que a filosofia moderna vive em grande parte de equívocos e um deles, bastante notável, oculta-se nesta etiqueta de "idealismo": esta palavra, de fato, pode ser derivada indiferentemente de "idéia" ou de "ideal" e, a esta dupla derivação correspondem de fato as duas características essenciais que podemos descobrir sem dificuldade na "filosofia de valores".

A "idéia", bem entendido, é tomada aqui unicamente em seu sentido "psicológico", que é o que os modernos conhecem; aqui está o lado "subjetivista" da concepção de que se trata e, quanto ao "ideal", representa evidentemente seu lado "moralista". Assim, as duas significações de "idealismo" se associam estreitamente neste caso, e por assim dizer, sustentam-se mutuamente porque elas correspondem a tendências bem gerais na mentalidade atual: o "psicologismo" traduz um estado de espírito que está longe de ser particular somente aos filósofos "profissionais" e sabemos muito bem, por outro lado, que fascinação a palavra vazia "ideal" exerce sobre a maior parte de nossos contemporâneos.

O que é quase incrível é que a filosofia em questão pretende reportar-se ao "idealismo platônico"; é mesmo difícil evitar certa estupefação vendo atribuir a Platão a afirmação que "a realidade verdadeira não reside no objeto mas na idéia, quer dizer, num ato do pensamento". Em primeiro lugar, não existe "idealismo platônico" em nenhum dos sentidos que os modernos dão a esta palavra "idealismo"; as "idéias", em Platão, não têm nada de "psicológico" nem de "subjetivo" e não têm absolutamente nada de comum com um "ato do pensamento". Muito pelo contrário, elas são os princípios transcendentes ou os "arquétipos" de todas as coisas; é por isto que elas constituem a realidade por excelência e poderíamos dizer, apesar que Platão não se exprime assim ( do mesmo modo que ele não formula em parte alguma qualquer coisa que se chame "teoria das idéias"), que o "mundo das idéias" é definitivamente o Intelecto divino; que relação pode isto ter com o produto de um "pensamento" individual?

Mesmo no simples ponto de vista da "história da filosofia" existe ali um erro verdadeiramente inaudito e espantoso; Platão não é nem "idealista" nem "subjetivista" em qualquer grau que seja, mas ao contrário não poderia ser mais integralmente "realista" do que ele é; que os inimigos declarados do "real" queiram fazer dele seu predecessor, isto é seguramente mais do que paradoxal.

Além do mais, estes mesmos filósofos cometem ainda um outro erro ainda mais grave, reportando também a Platão seu "moralismo", quando invocam o papel "central" que ele concede à "idéia do Bem". Aqui, podemos dizer, nos servindo da linguagem escolástica, eles confundem simplesmente o "Bem transcendental" com o "bem moral", tamanha é a ignorância de certas noções completamente elementares; e, quando vemos os modernos interpretarem assim as concepções antigas, mesmo quando só se trata de filosofia, devemos nos espantar quando deformam afrontosamente as doutrinas de ordem mais profunda?

A verdade é que a "filosofia de valores" não pode reivindicar a menor ligação com uma doutrina antiga qualquer que seja, salvo se lançando a péssimos jogos de palavras sobre "idéias" e sobre o "bem", aos quais seria preciso mesmo acrescentar algumas outras confusões como a do "espírito" com o "mental", aliás muito comum; ela* é tipicamente moderna e isto ao mesmo tempo pelas características "subjetivista" e "moralista" que nós já indicamos anteriormente.

Não é difícil se dar conta a que ponto a "Filosofia de Valores" é oposta ao espírito tradicional, como também o é todo "idealismo" cuja conseqüência lógica é a de fazer depender a própria verdade (e, hoje em dia, diria-se o "real") das operações do "pensamento" individual; talvez alguns "idealistas" tenham recuado ante a enormidade de tal conseqüência, num tempo em que a desordem intelectual não havia chegado ao ponto em que se encontra hoje; mas, não acreditamos que os filósofos atuais ainda tenham tais hesitações.

Mas, após tudo isso, é ainda permitido se perguntar a que pode servir exatamente a colocação desta idéia particular de "valor" acima das outras, lançada no mundo assim como uma "palavra de ordem" nova ou, se quisermos, como uma nova "sugestão"; a resposta a esta questão é bem fácil também, se imaginarmos que o desvio moderno inteiro poderia ser descrito como uma série de substituições que correspondem a falsificações de todo tipo.

De fato, é mais fácil destruir uma coisa substituindo-a, seja por uma paródia mais ou menos grosseira, reconhecendo abertamente que não se quer deixar nada do original ou senão, quando se trata de alguma coisa que já não existe mais de fato, pode ainda haver interesse em fabricar uma imitação para que não se experimente a necessidade de restaurar o antigo significado ou mesmo para impedir que alguém consiga isso com relativa facilidade.

É assim, somente para tomar um ou dois exemplos do primeiro caso, que a idéia do "Livre Exame" foi inventada para destruir a autoridade espiritual, não negando-a pura e simplesmente de imediato, mas substituindo-a por uma falsa autoridade, a da razão individual, ou ainda que o "racionalismo" filosófico tome a tarefa de substituir a intelectualidade por algo que é apenas sua caricatura.

A idéia de "valor" nos parece ligar-se sobretudo ao segundo caso: já faz bom tempo que não se reconhece mais, de fato, nenhuma hierarquia real, isto é, fundada essencialmente sobre a natureza mesma das coisas. Mas, por uma razão ou por outra, que não buscaremos aqui, pareceu oportuno (não aos filósofos, pois estes são os primeiros enganados nestes casos)instaurar na mentalidade pública uma falsa hierarquia, baseada unicamente sobre apreciações sentimentais e, portanto, inteiramente "subjetivas" (e totalmente inofensivas perante o "igualitarismo" moderno, encontrando-se assim relegada às nuvens do "ideal", o mesmo que dizer entre as quimeras da imaginação). Poderíamos dizer, em suma, que os "valores" representam uma contrafação da hierarquia, para uso de um mundo que tem sido conduzido à negação de toda verdadeira hierarquia.

O que é ainda muito pouco tranquilizador é que se ouse qualificar estes "valores" de "espirituais" e o abuso desta palavra é muito significativo; de fato reencontramos aqui uma outra contrafação, a da espiritualidade que já denunciamos em várias oportunidades; a "filosofia de valores" não teria também um papel a desempenhar neste aspecto?

O que é certo, em todo caso, é que não nos encontramos mais no estágio em que o "materialismo" e o "positivismo" exerciam uma influência preponderante; trata-se a partir de agora de outra coisa que, para cumprir sua destinação, deve revestir-se de um caráter mais sutil; e, para dizer mais claramente nosso pensamento sobre este ponto, é o "idealismo" e o "subjetivismo" que são, desde agora, e que serão, cada vez mais na ordem das concepções filosóficas e por suas reações sobre a mentalidade geral, os principais obstáculos a toda restauração.