O presidente Lula beijou a mão de Jader Barbalho

Carlos Drummond de Andrade

Publicado na contra-capa da revista "Seleções" de fevereiro de 1951.

O CARNAVAL do Rio, o bom, das memórias inesquecíveis, começou há cem anos atrás. Antes, havia apenas o entrudo, que durava rigorosamente três dias, a partir das 5 da manhã de domingo, ensarilhando armas ao entardecer, quando os sinos chamavam à oração. Pretos escravos saíam vendendo limões de cheiro, com água perfumada, embora gaiatos os enchessem às vezes com substâncias menos amáveis. Um terço da população branca divertia-se atirando uns nos outros esses projéteis, enquanto a gente humilde se consolava lambuzando de polvilho úmido caras desprevenidas.

O entrudo, hábito português, já era proibido desde 1604, mas compreende-se como seria gostoso na monotonia colonial. No Império, o carnaval não passava de uma batalha de água, a que não fugia o próprio D. Pedro II jovem, nos salões do Paço. Mas eis que em 1848 a cantora Delmastro traz da Europa esta novidade: o baile de máscaras. Foi no Teatro S. Januário, no hoje decaído beco do Cotovelo. Mais tarde viriam os bailes do Cassino Fluminense, dos Diários, do High Life. Hoje, o Rio inteiro dança em clubes, cinemas, hotéis, gafieiras, pistas improvisadas. Dança até na rua.

De 1854 datam as primeiras sociedades carnavalescas, que se multiplicariam. Dois anos antes, surgira o Zé-Pereira, com seu zabumba, e se tornaria nacional. O carnaval ficou sendo por muito tempo festa de rua, com mascarados mais ou menos alegres, sobretudo mais preocupados em divertir aos outros do que a si mesmos. Fantasias abafadas de diabo, pai joão, velho, burro, caveira e urso representavam o sacrifício da comodidade pessoal ao imperativo da alegria comum. Atendendo ao clima, ao custo da vida e à lei da facilidade, os foliões de 1951 preferem o meio-termo entre a nudez e maiô de praia.

Passando pelo corso de automóveis e pelas batalhas de flores e de confetes—formas extintas—, pelos ranchos e cordões, pelos préstitos de carros alegóricos e satíricos, e pela melancolia dos blocos de «sujos", isto é, de pobres fantasiados de pobres, o carnaval carioca é hoje mais de salão que de rua. Fecha governo, escolas e escritórios, enlouquece temporariamente empregadas domésticas, tange para sítios e cidades de veraneio famílias burguesas e da classe média, aumenta o número de intoxicações e acidentes de tráfego—mas envolve com seu encanto a cidade inteira, na toada sensual e triste dos sambas, cantados com três meses de antecedência. Triste e alegre: essa mistura é o carnaval carioca.

João Ubaldo Ribeiro, a quem conheci em Salvador nos idos de 1976, começou carreira como jornalista e consagrou-se como escritor. Até recentemente, isto é, há quase quatro anos, defendia idéias muito semelhantes às do PT. Assim como muitos outros da mesma geração, ante a sucessão de escândalos e, especialmente, ante o desmascaramento de um projeto totalitário de poder, passou a produzir algumas crônicas que tocam profundamente os muitos desiludidos que "não tiveram medo de ser felizes". Pelo menos cinco merecem registro pois entraram para a antologia das mais nítidas e sagazes destes tempos crescentemente sombrios.

Clóvis Rossi e a Folha de São Paulo, por muito menos, hoje estão sendo interpelados judicialmente pela "organização criminosa" que dirige o Brasil; mas em relação a Ubaldo, o torneiro e seus apaniguados preferem nem tocar, pois sabem que suas crônicas são irrespondíveis.

São Paulo, 30 de setembro de 2006.

Luiz Pontual