Como estudar a obra de René Guénon

Nos solicitam frequentemente orientação de como proceder no estudo da obra de René Guénon. O que apresentamos aqui é um breve resumo das indicações que temos feito em nosso curso básico "Olhar Oriental".

Para facilitar a leitura, dividimos a exposição em duas partes. Acrescentamos, como apêndice, algumas anotações tituladas "Aprender e compreender: que diferença!".

Luiz Pontual
Diretor do IRGET

I - Hierarquia e Autoridade

Na geografia e topografia dos Estudos Tradicionais no Ocidente moderno, temos, em primeiro lugar e acima dos demais, René Guénon, seja como reintrodutor do conceito de Tradição e metafísica, seja como autoridade espiritual, seja como escritor.

Fazem parte deste grupo Titus Burckhardt, Michel Vâlsan, S.H. Nasr, A.K. Coomaraswamy, Pierre e Jean Grison, Charbonneau-Lassay, Epes Brown, Matgioi, Martin Lings, Gaston Georgel e poucos outros. F. Schuon é um caso à parte; personalista notório, aguardou a morte de Guénon para começar uma campanha insidiosa buscando substituí-lo e superá-lo no cenário dos Estudos Tradicionais; é o caso típico do que popularmente se chama "cuspir no prato em que comeu"; morreu recentemente nos EUA indiciado por pedofilia e temas congêneres, um triste espetáculo que ofereceu a seu grupo de seguidores.

Um pouco mais afastados e não tão culminantes, encontramos um segundo e heterogêneo grupo de estudiosos: Julius Evola ("Revolta contra o mundo moderno" é em parte cópia e em parte desenvolvimentos de "A Crise do Mundo Moderno") e dezenas de outros escritores mais ou menos valorosos.

Resumo da ópera: há uma clara hierarquia quando tratamos de Estudos Tradicionais no Ocidente moderno. Guénon é, indiscutivelmente, a cordilheira e a espinha dorsal. Os demais se desenvolveram a partir da obra e influência de Guénon. A seguir, vamos examinar como abordar a obra de Guénon.

II - Livros de Guénon - ordem original de publicação

1) Introduction Générale à l'Étude des Doctrines Hindoues
Paris 1921.
2) Le Théosophisme: Histoire d'une Pseudo-Religion
París 1921, aumentada en 1925.
3) Erreur Spirite
París 1923. Id., 1984. 406 p.
4) Orient et Occident
París 1924.
5) L'Homme et son devenir selon le Vêdânta
Bossard, París 1925.
6) L'Esoterisme de Dante
París 1925.
7) Le Roi du Monde
París 1927.
8) La Crise du Monde Moderne
París 1927.
9) Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel
París 1929.
10) Saint Bernard
París 1929.
11) Le Symbolisme de la Croix
París 1931.
12) Les Etats Multiples de l'Etre
París 1932.
13) La Métaphysique Orientale
París 1939.
14) Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps
París 1945.
15) Aperçus sur l'Initiation
París 1946.
16) Les Principes du Calcul Infinitésimal
París 1946.
17) La Grande Triade
Nancy 1946.
18) Initiation et Réalisation Spirituelle
Ed.: Jean Reyor. París 1952. (Compilação de estudos relacionados)
19) Aperçus sur l'Esoterisme Chrétien
Id.: París 1954. (COmpilação de estudos relacionados)
20) Symboles Fondamentaux de la Science Sacrée
Ed.: Michel Vâlsan. París 1962. (Compilação de estudos relacionados)
21) Etudes sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage I
París 1964. (inclui resenhas de livros)
21-b) Etudes sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage II
Id.: París 1965. (inclui resenhas de livros)
22) Etudes sur l'Hindouisme
Id.: París 1968. (Compilação de estudos complementares relacionados)
23) Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques
París 1970. (Compilação de estudos relacionados)
24) Aperçus sur l'Esoterisme Islamique et le Taoisme
Id.: París 1973. (Compilação de estudos relacionados)
25) Comptes Rendus (Resenhas de livros e revistas)
París 1973.
26) Mélanges (Compilação de estudos diversos)
París 1976.

III - Vertentes da obra - grupos de estudos

PARA O ESTUDO DA OBRA DE GUÉNON, PODEMOS CONSIDERAR AS SEGUINTES GRANDES DIVISÕES:

1) Pedra de Fundação ou Orientação Geral.
"Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus"
O título, bem ao estilo acadêmico , poderia ser simplificado, como desejava Guénon; ele achou um tanto pomposo, capaz de afastar leitores que estariam em condições de tirar desta obra grande proveito.

Colocamos esta obra à parte pois ali estão delimitados, ordenados e qualificados os campos de estudo e, principalmente, os modos apropriados para que possam ser empreendidos conforme o espírito oriental. Trata-se do mapa e a bússula infalível para empreendermos o caminho dos estudos tradicionais; em uma analogia geográfica e topográfica, é o ponto de partida, na planície, de um percurso que remonta aos cumes da Cordilheira Tradicional.

2) Limpeza de Terreno ou Profilaxia Necessária
O segundo passo na abordagem da obra de Guénon é, no geral, incompreendido pela maioria dos buscadores tradicionais. Trata-se, depois de haver compreendido o "Baú dos Tesouros Fulgurantes" (I.G.A.E.D.H.) - o mapa e a bússula da Busca - da leitura estudiosa de "O Teosofismo, história de uma pseudo-religião" e "O Erro Espírita".

Nós mesmos "pulamos" estas duas obras quando dos primeiros passos em nossos estudos; no entanto, graças à leitura de um artigo de A.K. Coomaraswamy sobre Guénon, pudemos reparar esta omissão e constatar o quanto estava certo quando dizia que ambos os livros "ultrapassavam em muito os limites destes dois embustes modernos, abrangendo todo um território da pseudo-tradição e da anti-tradição".

Trata-se efetivamente de uma "limpeza de terreno" extremamente necessária, que proporciona clareza de visão e maior definição do que é e do que não é verdadeiramente tradicional.

Os buscadores se surpreenderão reconhecendo neste mapeamento trambiqueiros que até hoje aparecem com freqüência, tipo Gurdjieff, pseudo-yoguis, pseudo-gurus e pseudo-sufis.

Estes dois livros foram escritos segundo o mais rigoroso "método histórico", com farta documentação que, na segunda edição, foi aumentada e tornou-se superabundante.

Os buscadores verão ali a grande trambiqueira Blawatski & Irmãs metralhas sendo inidiciadas e detidas na Índia (foragida da justiça) e na Inglaterra ("acordo" judicial)... e... pois é... ainda tem gente que vai atrás do teosofismo!
No "Erro Espírita" vemos como foi urdido o blefe "reecarnacionista", deste sua gestação em sociedades secretas contra-iniciáticas, as primeiras e fracassadas tentativas de "lançamento" na Europa e, finalmente, o sucesso obtido nos EUA, a "pátria" destes e de tantos outros desvios e ninhos de cobras.

IV - O Mundo Moderno

O terceiro grupo de livros a estudar refere-se a um exame apurado das raízes e engrenagens do mundo moderno, sob luz intelectual de magnitude, profundidade e envergadura sem paralelo no mundo contemporâneo. Muitos se sentirão profundamente desconcertados ao constatarem o quanto estão impregnados de falsas idéias e pseudo-princípios, coisas do tipo "democracia", "progresso" e "ciência moderna".

Com o Mapa e a Bússula em mãos (O "Baú dos Tesouros Fulgurantes") e havendo limpado o terreno do entulho anti e pseudo-tradicional, faremos nesta terceira etapa um reconhecimento do terreno em torno e será iniciada uma caminhada até o sopé da Cordilheira. O primeiro livro a estudar é "Oriente e Ocidente", onde Guénon dá um "banho" magistral nos principais mentores da "mudernidade" e, em especial, nos filósofos e "pensadores" que estiveram por detrás do desmoronamento do Sagrado Império, da aniquilação da Ordem do Templo e do advento da "República", por exemplo. É um poderoso chute no pau da barraca "histórica" e "filosófica"das academias.

O segundo livro do grupo, "A Crise do Mundo Moderno", é um prolongamento e aprofundamento de alguns dos aspectos abordados inicialmente em "Oriente e Ocidente"; seu foco contrabalança aspectos doutrinais da Tradição e temas filosóficos e políticos presentes no mundo moderno, retratado cruamente como "sem princípios, anormal e mesmo monstruoso", apresentando "um desenvolvimento exclusivamente material".

Segue a leitura de "Autoridade Espiritual e Poder Temporal", um magistral mis-à-point que demonstra e restabelece claramente a hierarquia entre um poder e outro, tema tão pouco compreendido por Julius Evola; trata-se de obra arrebatadora, cuja leitura nos prende do começo ao fim, onde vastos cenários são desenhados tendo em vista aspectos doutrinais orientais, analogias entre formas tradicionais, a Idade Média e, finalmente, o mundo moderno.

A quarta obra deste grupo é uma jóia incomparável da intelectualidade tradicional: "O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos". Nesta densa, poderosa e devastadora obra Guénon empreende um "exploit" magistral, fazendo uma desmontagem metódica e implacável das engrenagens que movem o mundo moderno, numa seqüência de capítulos que se encadeiam num crescendo impressionante, pela profundidade, coerência e envergadura. Não é um livro fácil e alguns de seus capítulos, em especial os que abordam questões doutrinais, devem ser estudados à parte, calma e profundamente, pois são ferramentas fundamentais na compreensão do conjunto.

O Terceiro Passo em nossa caminhada é constituído , portanto, por estas quatro obras:
"Oriente e Ocidente"
"Crise do Mundo Moderno"
"Autoridade Espiritual e Poder Temporal"
"O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos".

V - Quarta etapa: leituras conexas e complementares

Vimos há pouco o terceiro grupo de estudos com quatro obras. O quarto grupo corresponde a livros conexos e complementares:
“Esoterismo de Dante e São Bernardo” retrata dois expoentes da Idade Média. Guénon demonstra que Dante era um iniciado e sua obra prima algo muito além de literatura, história ou política; trata-se da exposição de etapas no percurso da realização espiritual; "São Bernardo" pode ser lido na íntegra no site www.reneguenon.net

“A Grande Tríade” é uma brilhante exposição do esoterismo extremo-oriental. Livro lançado no Brasil aleatoriamente pela Editora Pensamento, era facilmente encontrável em sebos com apenas duas ou três páginas lidas; a tradução é de boa qualidade mas sua leitura só é possível com conhecimento prévio do "Baú dos Tesouros Fulgurantes", “Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada” é uma magnífica compilação de estudos sobre o simbolismo, que Guénon solicitou pessoalmente a Michel Vâlsan. É uma obra arrebatadora onde constatamos a organicidade e interconexão lógica entre os vários aspectos ali tratados; a Luz Intelectual pulsa irradiante no resgate magistral que Guénon foi capaz de realizar sobre o significado profundo (transcendente) inerente a símbolos quase totalmente esquecidos pelo Ocidente.

A prestigiosa editora francesa Gallimard quase ficou maluca com Vâlsan, pois este se recusava a entregar os originais nos prazos estipulados, passando e repassando página por página, revisando, modificando aqui e ali, reagrupando os estudos sob novos tópicos, enfim, levando com seriedade e reverência uma tarefa de envergadura. Em seguida veremos duas obras que fazem limite com o lado propriamente doutrinal da obra de Guénon.

VI - Quinta etapa: "O Rei do Mundo" & "Considerações Sobre a Iniciação"

Há muitos anos, um colega de estudos tradicionais nos confidenciou que achava "O Rei do Mundo" um livro tão inusitado que ele se perguntava se não seria fruto de "uma viagem", no sentido lisérgico desta palavra ...

De fato, trata-se da abordagem de um tema insólito e mais ou menos inacreditável, isto é, a existência de um Reino Subterrâneo, a "Agartha" e de um Sacerdote-Rei, Melkitsedeq.

Esta obra foi suscitada a partir de um livro de Ossendowsky, "Bestas , Homens e Deuses" - interessantíssimo, aliás - que empreende a fuga da Rússia tomada pela "revolução" de 1917, através da Mongólia até o Tibet, onde faz menção ao Rei do Mundo.

“O Rei do Mundo” custou a Guénon o relacionamento que mantinha com um pequeno grupo de iniciados hindus, que o havia advertido sobre o tema, que deveria ser mantido secreto. Guénon recebeu deste grupo uma iniciação e conhecimentos tradicionais ministrados através de métodos e ritos inteiramente desconhecidos no Ocidente.

Em nosso caso, tal leitura nos "custou" três noites em claro e alguns fenômenos extraordiários, sobre o que preferimos manter a mais prudente discrição.
Pudemos "ver" o quanto Guénon estava ligado e próximo a esta Autoridade Espiritual e, de certa maneira, consideramos este livro como um verdadeiro divisor de águas entre os que empreendem o caminho do conhecimento tradicional. Ou você "entra" no Rei do Mundo, ou não "entra" e quem não entrar (ver a este respeito "Simbolismo de Janus") não poderá tirar muito proveito da obra propriamente doutrinal de Guénon.

"Considerações sobre a Iniciação" foi organizado pelo próprio Guénon e reúne uma coletânea de estudos sobre o tema; é uma verdadeira "bíblia", uma obra única que responde a todas as principais questões relacionadas sobre iniciação. Boa parte deste livro já está publicada neste site.

O próximo passo é a "parte interna" da obra de Guénon, isto é Doutrina.

VII - "A Metafísica Oriental", umbral da Doutrina

Este pequeno e notável livro é a transcrição de memorável palestra proferida por Guénon na Sorbonne. É um "divisor de águas", isto é, delimita domínios distintos, entre os "chamados" e os "escolhidos". Esta obra pode ser considerada o umbral das exposições propriamente doutrinais da Tradição realizadas por Guénon.
Dizíamos em outro tópico que "A erudição é o último refúgio dos medíocres" e estes não têm como superar limites que lhes são inerentes por sua própria natureza (casta); nenhum outro tipo de ciúme é mais venenoso e corrosivo que aquele dedicado pelos medíocres aos verdadeiros intelectuais.

Guénon, como Dante e Ibn Arabi, se dissolve como indivíduo no Mar da Sabedoria, identifica-se ao Universal. Os medíocres tendem ao personalismo exacerbado, cientes de sua inferioridade, mas inconformados; por isso, suas armas são a dissimulação, a falsidade e o ilusionismo; é fácil identificar esta marca tão nitidamente diabólica nos medíocres que posam de "líderes" de certas manadas de eruditozinhos. São os cegos "guiando" outros cegos.

Uma pedra pode ser uma ponte ou um obstáculo intransponível; quem não se der conta do que é "intuição intelectual" está no segundo caso e bem sabemos quão profundo é o koan "água e pedra".

Este "pequeno" livro merece, sozinho, um ano de estudos dedicados.

VIII - Pedra de Abóboda

O "fecho" ou - quem sabe, o melhor termo não seria "desfecho"?- da obra de Guénon é o grupo de livros essencialmente doutrinais:
1) O homem e Seu Devir Segundo o Vedanta
2) O Simbolismo da Cruz
3) Estados Múltiplos do Ser
4) Princípios do Cálculo Infinitesimal

No "Baú dos Tesouros Fulgurantes", especialmente em sua terceira parte, já tivemos uma amostra do "mapeamento" e "métodos" do território intelectual da Doutrina Hindu. Em "A Grande Tríade", aspectos doutrinais da Tradição extremo-oriental.

Agora, temos várias facetas do Diamante da Sabedoria, conhecido como ("O Homem e seu devir segundo o) Vedanta, com seus desenvolvimentos, isto é, "Simbolismo da Cruz", "Estados múltiplos" e "Princípios do cálculo infinitesimal".

Faremos a seguir algumas considerações sobre este grupo de obras.

Guénon apresenta

"O Homem e seu devir segundo o Vedanta":

"Em muitas ocasiões, em nossas obras precedentes, anunciamos nossa intenção de proceder a uma série de estudos nos quais poderíamos, segundo o caso, seja expor diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do Oriente, seja adaptar essas mesmas doutrinas do modo que nos parecesse mais inteligível e mais aproveitável, embora permanecendo sempre estritamente fiéis ao seu espírito. O presente trabalho constitui o primeiro desses estudos; tomamos aqui como ponto de vista central aquele das doutrinas hindus, por razões que já tivemos ocasião de indicar, e mais particularmente o do Vêdânta, que é o ramo mais puramente metafísico destas doutrinas; mas deve ficar claro que isto não nos impedirá de fazer, todas as vezes que couber, aproximações e comparações com outras teorias, qualquer que seja sua proveniência, bem como, notadamente, apelaremos para os ensinamentos de outros ramos ortodoxos da doutrina hindu na medida em que venham, sob certos aspectos, precisar ou completar aqueles do Vêdânta. Não há o que reprovar neste modo de proceder, tanto mais que nossas intenções não são as de um historiador; devemos repetir ainda aqui, expressamente, que o que queremos fazer é uma obra de compreensão, não de erudição, e que somente a verdade das idéias nos interessa. Se, portanto, consideramos proveitoso dar aqui referências precisas, é por motivos que nada tem em comum com as preocupações típicas dos orientalistas; apenas queremos mostrar que não inventamos nada e que as idéias que expressamos possuem uma fonte tradicional, além de fornecer ao mesmo tempo o meio, àqueles que foram capazes, de se reportarem aos textos nos quais eles possam encontrar indicações complementares, pois é claro que não temos a pretensão de fazer uma exposição absolutamente completa, mesmo sob um aspecto determinado da doutrina."

Quanto a apresentar uma exposição de conjunto, isso é uma coisa impossível: ou seria um trabalho interminável, ou teria que ser colocado de uma forma tão sintética que seria perfeitamente incompreensível aos espíritos ocidentais. Além do mais, seria bem difícil evitar, num trabalho desse gênero, a aparência de uma sistematização que seria incompatível com os caracteres mais essenciais das doutrinas metafísicas; seria sem dúvida apenas uma aparência, mas nem por isso deixaria de ser uma causa de erros extremamente graves, tanto mais que os Ocidentais, em razão de seus hábitos mentais, estão propensos a ver “sistemas” mesmo onde não há nada parecido. É importante não dar o menor pretexto a essas assimilações injustificadas, costumeiras entre os orientalistas; e seria melhor abster-se de expor uma doutrina do que contribuir a desnaturá-la, nem que fosse por simples engano. Mas felizmente existe um meio de escapar a este inconveniente: consiste em não tratar, numa mesma exposição, senão de um ponto ou um aspecto mais ou menos definido da doutrina, deixando outros pontos para tratar em outros estudos distintos. De resto, estes estudos não correrão o risco de se tornar aquilo que os eruditos e os “especialistas” chamam de “monografias”, pois os princípios fundamentais não serão aí perdidos de vista, e os pontos secundários não aparecerão senão como aplicações diretas ou indiretas destes princípios dos quais tudo deriva: na ordem metafísica, que se refere ao domínio do Universal, não há nenhum lugar para a “especialização”.

Devemos compreender agora porque tomamos como objeto próprio do presente estudo apenas aquilo que concerne à natureza e à constituição do ser humano: para tornar inteligível o que temos a dizer, deveremos forçosamente abordar outros pontos que, à primeira vista, podem parecer estranhos a esta questão, mas será sempre em relação àquele que os tomaremos. Os princípios têm, em si, um alcance que ultrapassa imensamente toda aplicação que se possa fazer; mas não deixa de ser legítimo expor esses princípios, na medida do possível, a propósito de tal ou qual aplicação, e este procedimento é inclusive vantajoso sob certos aspectos. Por outro lado, é somente quando é ligada aos princípios que uma questão pode ser tratada metafisicamente; é o que se deve ter sempre em mente, quando se pretende fazer a verdadeira metafísica, e não a “pseudo-metafísica”, à maneira dos filósofos modernos.

Se adotamos como partido expor em primeiro lugar as questões relativas ao ser humano, não é porque elas tenham, do ponto de vista metafísico, uma importância excepcional, pois, sendo este ponto de vista livre de todas as contingências, o caso do homem não aparecerá nele como um caso privilegiado; mas iniciaremos por aí porque estas questões já surgiram no decorrer de nossos trabalhos precedentes, os quais necessitam a este respeito complementos que encontraremos aqui. A ordem que iremos adotar para os estudos que virão em seguida dependerá igualmente das circunstâncias e será, em larga medida, determinada por considerações de oportunidade; acreditamos útil dize-lo desde já, a fim de que ninguém veja nisso uma espécie de ordem hierárquica, seja quanto à importância das questões, seja quanto à sua dependência; isto eqüivaleria a nos imputar intenções que não são as nossas, mas sabemos como tais erros se produzem facilmente, e é por isso que nos aplicamos sempre a preveni-los toda vez que isso está ao nosso alcance."

Existe ainda um ponto que é para nós muito importante para que o deixemos de lado nestas considerações preliminares, embora já o tenhamos explicado bastante em ocasiões anteriores; mas, como nem todos parecem tê-lo compreendido, convém insistir ainda um pouco sobre ele. Este ponto é o seguinte: o conhecimento verdadeiro, o único que temos em vista, tem pouca relação, se é que tem alguma, com o saber “profano”; os estudos que constituem esse último não são em nenhum grau e sob nenhum título uma preparação, mesmo longínqua, para abordar a “Ciência sagrada”, e às vezes eles constituem ao contrário um obstáculo, em razão da deformação mental muitas vezes irremediável que é a conseqüência mais comum de um certo tipo de educação. Para doutrinas como a que iremos expor, um estudo tomado “do exterior” não teria nenhum proveito; não se trata de história, como já dissemos, nem tampouco de filologia ou literatura; e acrescentaremos, embora arriscando-nos a nos repetir fastidiosamente, que tampouco se trata de filosofia. Todas essas coisas, com efeito, fazem igualmente parte deste saber que qualificamos de “profano” ou de “exterior”, não por preconceito, mas porque é assim que é na realidade; cremos não ter de nos preocupar em agradar a uns ou desagradar a outros, mas sim de dizer o que é e de atribuir a cada coisa o nome e o lugar que lhe convém normalmente. Não é porque a “Ciência sagrada” tenha sido tão odiosamente caricaturada, no Ocidente moderno, por impostores mais ou menos conscientes, que se deva evitar de falar nela, ou negá-la, ou no mínimo ignorá-la; ao contrário, afirmamos alto e bom som não apenas que ela existe, mas ainda que ela é a única de que iremos nos ocupar."

Aqueles que quiserem se reportar ao que já dissemos em outras ocasiões das extravagâncias dos ocultistas e dos teosofistas compreenderão imediatamente que aquilo de que se trata é bem outra coisa, e que estas pessoas não passam, a nossos olhos, de simples “profanos”, e mesmo de “profanos” agravam singularmente se caso procurando fazer-se passar pelo que não são, o que é aliás uma das principais razões por quê julgamos necessário mostrar a inanidade de suas pretensas doutrinas, cada vez que se apresente a ocasião.

O que dissemos deve também fazer compreender que as doutrinas de que nos propomos falar recusam, pela sua própria natureza, qualquer tentativa de “vulgarização”; seria ridículo querer “colocar ao alcance de todos”, como se diz sempre em nossa época, concepções que só podem ser destinadas a uma elite, e tentar fazê-lo seria a melhor maneira de as deformar. Já explicamos em outra parte o que entendemos por elite intelectual, qual será seu papel se ela um dia chegar a se constituir no Ocidente, e como o estudo real e profundo das doutrinas orientais é indispensável para preparar sua formação. É em vista desse trabalho, cujos resultados só se farão sentir com o tempo, que acreditamos dever expor certas idéias para aqueles que são capazes de assimilá-las, sem jamais modificá-las ou simplificá-las ao modo dos “vulgarizadores”, o que iria contra o objetivo que nos propomos. De fato, não é a doutrina que deve abaixar-se e restringir-se à medida do entendimento limitado do vulgo; mas àqueles que o podem, cabe elevarem-se à compreensão da doutrina em sua pureza integral, e é somente assim que se pode formar uma elite intelectual verdadeira. Dentre aqueles que recebem um mesmo ensinamento, cada um o compreende ou assimila de forma mais ou menos completa, segundo a extensão de suas próprias possibilidades intelectuais; e é assim que se opera naturalmente a seleção sem a qual não pode haver verdadeira hierarquia. Nós já havíamos mencionado estas coisas, mas era preciso repeti-las antes de empreender uma exposição propriamente doutrinal; e é tanto mais útil repeti-las com insistência quanto mais estranhas elas são à mentalidade ocidental atual."

Em seguida, veremos como Guénon apresenta

"O Simbolismo da Cruz":

"No início de L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, apresentamos aquela obra como constituindo o começo de uma série de estudos nos quais poderíamos, conforme o caso, seja expor diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do Oriente, seja adaptar estas mesmas doutrinas do modo que nos parecesse mais inteligível e proveitoso, embora sempre permanecendo fiel ao seu espírito. É esta série de estudos que retomamos aqui, após have-la interrompido momentaneamente em razão de outros trabalhos necessários a certas considerações oportunas, nos quais descemos antes de tudo ao domínio das aplicações contingentes; mas, mesmo nestes casos, jamais perdemos de vista os princípios metafísicos, que são o único fundamento de todo verdadeiro ensinamento tradicional.

Em L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, mostramos como um ser tal como o homem é encarado por uma doutrina tradicional e de ordem puramente metafísica, sempre nos mantendo, tão estritamente quanto possível, dentro da rigorosa exposição e da interpretação exata da própria doutrina, ou ao menos só saindo daí para assinalar, quando a ocasião permitia, as suas concordâncias com outras formas tradicionais. De fato, jamais pretendemos permanecer fechados exclusivamente em uma forma determinada, o que, aliás, seria bem difícil quando se tem consciência da unidade essencial que se dissimula sob a diversidade das formas mais ou menos exteriores, que são como que vestimentas diferentes de uma só e mesma verdade. Se, de modo geral, tomamos como ponto de vista central aquele das doutrinas hindus, por razões já explicadas, isto não nos impediria de recorrer, quando cabível, aos modos de expressão de outras tradições, desde que se tratasse de tradições verdadeiras, regulares e ortodoxas, entendendo estes termos no sentido que já definimos em outras ocasiões.

É isto, em particular, que faremos aqui, de forma mais livre do que na obra precedente, porque se trata, não mais da exposição de um certo ramo doutrinal, tal como ele existe numa dada civilização, mas da explicação de um símbolo que é precisamente daqueles que são comuns a quase todas as tradições, o que é para nós a indicação de que ele se liga diretamente à grande Tradição primordial.
É preciso, a este respeito, insistir um pouco sobre um ponto que é particularmente importante para dissipar muitas confusões, infelizmente freqüentes em nossa época: trata-se da diferença capital que existe entre “síntese” e “sincretismo”. O sincretismo consiste em juntar desde fora elementos mais ou menos disparatados e que, vistos deste modo, não poderiam nunca ser unificados; não passa, no fundo, de uma espécie de ecletismo, com tudo o que este comporta sempre de fragmentário e de incoerente. Trata-se de algo puramente exterior e superficial; os elementos, tomados de todos os lados e reunidos assim artificialmente não possuem senão o caráter de empréstimos, incapazes de se integrar efetivamente numa doutrina digna deste nome. A síntese, ao contrário, efetua-se essencialmente desde dentro; queremos com isto dizer que ela consiste propriamente em encarar as coisas na unidade de seu princípio, em ver como elas derivam e dependem deste princípio, e em reuni-las assim, ou, antes, em tomar consciência de sua união real, em virtude de uma ligação interior, inerente àquilo que há de mais profundo em sua natureza. Para aplicar isso ao que nos ocupa no momento, podemos dizer que haverá sincretismo todas as vezes em que se limite a emprestar elementos de diferentes formas tradicionais, para soldá-los de certa forma exteriormente uns aos outros, sem saber que, no fundo, não há mais do que uma doutrina única da qual estas formas não passam de expressões diversas, adaptações a condições mentais particulares, em relação com circunstâncias determinadas de tempo e lugar.

Em semelhante caso, nada válido pode resultar deste conjunto; para usarmos uma comparação facilmente compreensível, termos, ao invés de um conjunto organizado, uma maçaroca informe de partes inutilizáveis, porque falta aí aquilo que poderia dar uma unidade análoga à de um ser vivo ou de um edifício harmonioso; e é próprio do sincretismo, em razão mesmo de sua exterioridade, ser incapaz de realizar tal unidade. Ao contrário, haverá síntese quando se parta da própria unidade, sem perdê-la de vista através da multiplicidade de suas manifestações, o que implica que se tenha alcançado, para além das formas, a consciência da verdade principial que se reveste delas para se exprimir e se comunicar na medida do possível. Assim, poderemos nos servir de uma ou outra destas formas, conforme a ocasião, exatamente do modo como podemos, para traduzir um mesmo pensamento, empregar linguagens diferentes conforme as circunstâncias, a fim de se fazer compreender por diferentes interlocutores; é isso, por sinal, que certas tradições designam simbolicamente como o “dom das línguas”. As concordâncias entre todas as formas tradicionais representam, podemos dizer, “sinonímias” reais; é assim que nós as encaramos e, do mesmo modo como a explicação de certas coisas pode ser mais fácil em tal língua do que em outra, uma destas formas poderá servir melhor que as outras à exposição de certas verdades e torná-las mais facilmente inteligíveis.

É portanto perfeitamente legítimo utilizar, em cada caso, a forma que parecer mais adaptada ao que se pretende; não há nenhum inconveniente de passar de uma a outra, com a condição de se conhecer sua equivalência, o que só pode ocorrer partindo de seu princípio comum. Assim, não haverá sincretismo; este, de resto, não passa de um ponto de vista “profano”, incompatível com a noção mesma de “ciência sagrada” à qual estes estudos se referem exclusivamente.

A cruz, dissemos, é um símbolo que, sob formas diversas, se encontra quase em toda parte, e isto desde épocas muito recuadas; ele está, portanto, longe de pertencer exclusivamente ao Cristianismo, como querem alguns. É preciso mesmo dizer que o Cristianismo, ao menos sob seu aspecto exterior e geralmente conhecido, parece ter perdido um pouco de vista o caráter simbólico da cruz, para ver nela não mais do que o signo de um fato histórico; na realidade, estes dois pontos de vista não se excluem, e mesmo o segundo não é mais do que uma conseqüência do primeiro; mas este modo de ver as coisas é a tal ponto estranho para a maioria dos nossos contemporâneos que devemos nos deter um pouco aqui para evitar qualquer mal-entendido. De fato, existe uma tendência a se pensar que a admissão de um sentido simbólico carrega em si a rejeição do sentido literal ou histórico; esta opinião resulta da ignorância da lei de correspondência que é o fundamento mesmo de todo o simbolismo, e em virtude de que cada coisa, procedendo essencialmente de um princípio metafísico do qual ela tira toda a sua realidade, traduz ou exprime este princípio ao seu modo e segundo sua ordem de existência, de tal maneira que, de uma ordem à outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem para concorrer à harmonia universal e total que é, dentro da multiplicidade da manifestação, como que um reflexo da própria unidade principial. É por isso que as leis de um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar as realidade de uma ordem superior, onde elas tem sua razão profunda, que é a um só tempo seu princípio e seu fim; e podemos lembrar aqui, o erro das modernas interpretações “naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de realidades.

Assim, os símbolos ou os mitos jamais tiveram por função, como quer uma teoria muito popular hoje em dia, a de representar os movimentos dos astros; mas a verdade é que encontramos freqüentemente figuras inspiradas nestes e destinadas a exprimir analogamente coisas bastante diferentes, porque as leis destes movimentos traduzem fisicamente princípios metafísicos dos quais eles dependem. O que dizemos a respeito dos fenômenos astronômicos, podemos dizer igualmente de todos os demais gêneros de fenômenos naturais: estes fenômenos, pelo fato mesmo de derivarem de princípios superiores e transcendentes, são na verdade símbolos deles; e é evidente que isto em nada afeta a realidade própria que estes fenômenos enquanto tais possuem dentro da ordem de existência à qual pertencem; pelo contrário, é nisto mesmo que se fundamenta esta realidade, pois, se separadas de sua dependência em relação aos princípios, todas as coisas não são mais que um puro nada. Com os fatos históricos dá-se o mesmo: também eles conformam-se necessariamente à lei de correspondência de que falamos e, por isso mesmo, traduzem ao seu modo as realidades superiores, da qual eles são de certa forma a expressão humana; e acrescentaremos aqui que é isso que os torna interessantes do nosso ponto de vista, inteiramente diferente, como se vê, daquele em que se colocam os historiadores “profanos”. Este caráter simbólico, embora comum a todos os fatos históricos, deve ser particularmente mais claro quando se referem àquilo que chamamos a “história sagrada”; e é o que encontramos, de modo evidente, em todas as circunstâncias da vida do Cristo. Se ficou entendido o exposto, ver-se-á de imediato que não só não há aí razão para negar estes eventos, tratando-os como “mitos” puros e simples, mas ao contrário, estes eventos só poderiam ter sido como foram, e não poderiam ser diferentes; como seria possível atribuir um caráter sagrado àquilo que seria completamente desprovido de todo significado transcendente?
Em particular, se o Cristo morreu sobre a cruz, foi em função do valor simbólico que a cruz possui em si e que sempre foi reconhecido por todas as tradições; é assim que, sem diminuir em nada seu significado histórico, podemos vê-la como derivada deste próprio valor simbólico.

Uma outra conseqüência da lei de correspondência é a pluralidade de sentidos incluídos em cada símbolo: uma coisa qualquer, de fato, pode ser considerada como representando não apenas os princípios metafísicos, mas também as realidades de todas as ordens que lhe são superiores, mesmo que ainda contingentes, porque estas realidades das quais ela depende também mais ou menos diretamente desempenham em relação a ela o papel de “causas segundas”; e o efeito sempre pode ser tomado como símbolo da causa, em qualquer grau que seja, porque tudo o que ele é não passa da expressão de alguma coisa que é inerente à natureza desta causa. Estes sentidos simbólicos múltiplos e hierarquicamente superpostos não se excluem mutuamente, assim como não excluem o sentido literal; ao contrário, eles são perfeitamente concordantes entre si, porque eles exprimem na verdade as aplicações de um mesmo princípio a ordens diversas; e assim eles se corroboram e se completam integrando-se na harmonia da síntese total. É isto aliás que faz do simbolismo uma linguagem bem menos limitada do que a linguagem comum, e o que o torna apto à expressão e à comunicação de certas verdades; é por isso que ele abre possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas; é por isso que ele constitui a linguagem iniciática por excelência, o veículo indispensável a todo ensinamento tradicional.

A cruz possui assim, como todo símbolo, múltiplos sentidos; mas nossa intenção não é de desenvolver todos igualmente aqui, e alguns apenas indicaremos brevemente. O que temos essencialmente em vista, de fato, é o sentido metafísico, que é aliás o primeiro e o mais importante, por ser propriamente o sentido principial; todos os demais não passam de aplicações contingentes e mais ou menos secundárias; e, se contemplarmos alguma destas aplicações, será sempre, no fundo, para ligá-las à ordem metafísica, pois é isto o que, do nosso ponto de vista, as torna válidas e legítimas, conforme à concepção, hoje completamente esquecida do mundo moderno, das “ciências tradicionais”.

Guénon, assim dedica esta obra magistral:

"A la mémoire vénérée de
ESH-SHEIKH ABDER-RAHMAN ELISH EL-KEBIR

EL-ALIM EL-MALKI EL-MAGHRIBI

A qui est due la premiére idée de ce livre

Meçr El-Qâhirirah, 1329-1349 H.”

“Estados Múltiplos do Ser”

ejamos agora como Guénon apresenta o terceiro livro do núcleo doutrinal de sua obra:

"PREFÁCIO

Em nosso precedente estudo sobre O Simbolismo da Cruz, expusemos, segundo os dados providos pelas diferentes doutrinas tradicionais, uma representação geométrica do ser que está baseada inteiramente na teoria metafísica dos estados múltiplos. O presente volume será a este respeito como um complemento, já que as indicações que demos não bastam, talvez, para fazer-se sobressair todo o alcance desta teoria, que deve considerar-se como inteiramente fundamental; em efeito, devemos nos limitar então ao que se referia mais diretamente à meta claramente definida a que nos propúnhamos. Por isso é que, deixando de lado agora a representação simbólica que temos descrito, ou ao menos não a recordando em certo modo mais que incidentalmente quando houver lugar a nos referir a ela, consagraremos inteiramente este novo trabalho a um desenvolvimento mais amplo da teoria de que se trata, seja, primeiramente, em seu princípio mesmo, seja em algumas de suas aplicações, no que concerne mais particularmente ao ser considerado sob seu aspecto humano.

No que concerne a este último ponto, talvez não é inútil recordar a partir de agora que o fato de determo-nos nas considerações desta ordem não implica de modo algum que o estado humano ocupe uma fileira privilegiada no conjunto da Existência universal, ou que se distinga metafisicamente, em relação a outros estados, pela posse de uma prerrogativa qualquer.

Em realidade, este estado humano não é mais que um estado de manifestação como todos outros, e entre uma indefinidade de outros; na hierarquia dos graus da Existência, situa-se no lugar que lhe está atribuído por sua natureza mesma, quer dizer, pelo caráter limitante das condições que lhe definem, e este lugar não lhe confere nem superioridade nem inferioridade absoluta. Se às vezes devemos considerar particularmente este estado, é, pois, unicamente porque, sendo o estado no qual nos encontramos de fato, por isso mesmo adquire para nós, mas para nós somente, uma importância especial; assim, nisto não se trata mais que um ponto de vista completamente relativo e contingente, o dos indivíduos que somos em nosso presente modo de manifestação. Por isso é que, concretamente, quando falamos de estados superiores e de estados inferiores, é sempre com relação ao estado humano, tomado como termo de comparação, como devemos operar esta repartição hierárquica, posto que não há nenhum outro que nos seja diretamente compreensível enquanto que indivíduos; e é necessário não esquecer que toda expressão, sendo a envoltura em uma forma, se efetua necessariamente de modo individual, de sorte que, quando queremos falar de algo, concernente às verdades de ordem puramente metafísica, não podemos fazê-lo mais que descendo a uma ordem completamente diferente, essencialmente relativa e limitada, para as traduzir à linguagem que é a das individualidades humanas.

Compreender-se-á sem esforço todas as precauções e as reservas que impõe a inevitável imperfeição desta linguagem, tão manifestamente inadequada ao que deve expressar em tal caso; há aí uma desproporção evidente, e, ademais, pode-se dizer o mesmo para toda representação formal, qualquer que seja, compreendidas aí as representações propriamente simbólicas, não obstante incomparavelmente menos estreitamente limitadas que a linguagem ordinária, e por conseqüência mais aptas para a comunicação das verdades transcendentes, daí o emprego que se faz delas constantemente em todo ensino que possua um caráter verdadeiramente «iniciático» e tradicional. Por isso é que, como o temos feito observar já em várias ocasiões, convém, para não alterar a verdade por uma exposição parcial, restritiva ou sistematizada, reservar sempre a parte do inexpressável, quer dizer, aquilo que não poderia encerrar-se em nenhuma forma, e que, metafisicamente, é em realidade o que mais importa, podemos dizer, inclusive, o mais essencial.

Agora bem, se se quer ligar, sempre no que concerne à consideração do estado humano, o ponto de vista individual ao ponto de vista metafísico, como deve fazer-se sempre que se tratar de «ciência sagrada», e não só de saber «profano», diremos isto: a realização do ser total pode levar-se a cabo a partir de não importa qual estado tomado como base e como ponto de partida, em razão mesma da equivalência de todos os modos de existência contingentes a respeito do Absoluto; assim, pode levar-se a cabo a partir do estado humano da mesma maneira que desde todo outro, e inclusive, como já o temos dito em outra parte, a partir de toda modalidade deste estado, o que equivale a dizer que é concretamente possível para o homem corporal e terrestre, pensem o que pensem disso os ocidentais, induzidos a engano, quanto à importância que convém atribuir a «corporeidade», pela extraordinária insuficiência de suas concepções concernentes à constituição do ser humano.

Posto que este é o estado no qual nos encontramos atualmente, é daí de onde devemos partir efetivamente se nos propomos alcançar a realização metafísica, a qualquer grau que seja, e essa é a razão essencial pela qual este caso deve ser considerado mais especialmente por nós; Ademais, posto que desenvolvemos estas considerações precedentemente, não insistiremos mais nisso, ainda mais por que nossa exposição mesma permitirá compreendê-las melhor ainda.

Por outra parte, para descartar toda confusão possível, devemos recordar a partir de agora que, quando falamos dos estados múltiplos do ser, trata-se, não de uma simples multiplicidade numérica, ou inclusive mais geralmente quantitativa, mas sim de uma multiplicidade de ordem «transcendental» ou verdadeiramente universal, aplicável a todos os domínios que constituem os diferentes «mundos» ou graus da Existência, considerados separadamente ou em seu conjunto, e, por conseguinte, fora e mais à frente do domínio especial do número e inclusive da quantidade sob todos seus modos. Em efeito, a quantidade, e com maior razão o número que não é mais que um de seus modos, ou seja, a quantidade descontínua, é somente uma das condições determinantes de alguns estados, entre os quais está o nosso; por conseguinte, não poderia ser transportada a outros estados, e ainda menos aplicada ao conjunto dos estados, que escapa evidentemente a uma tal determinação. Por isso é que, quando falamos deste em relação a uma multidão indefinida, sempre devemos tomar cuidado de observar que a indefinidade de que se trata transborda todo número, e também tudo aquilo ao que a quantidade é mais ou menos diretamente aplicável, como a indefinidade espacial ou temporal, que não dependem igualmente mais que das condições próprias ao nosso mundo.

Impõe-se ainda outra observação, sobre o emprego que fazemos da palavra «ser», que, em todo rigor, já não pode aplicar-se em seu sentido próprio quando se trata de alguns estados de não manifestação dos quais teremos que falar, e que estão além do grau do Ser puro. Não obstante, em razão da constituição mesma da linguagem humana, e à falta de outro termo mais adequado, estamos obrigados a conservar este mesmo termo em parecido caso, mas não lhe atribuindo então mais que um valor puramente analógico e simbólico, sem o qual nos seria completamente impossível falar de uma maneira qualquer daquilo do que se trata; e este é um exemplo muito claro dessas insuficiências de expressão às quais fazíamos alusão faz um momento. É assim como poderemos, como já o temos feito em outras partes, continuar falando do ser total como estando ao mesmo tempo manifestado em alguns de seus estados e não manifestados em outros, sem que isso implique de modo algum que, para estes últimos, devamos nos deter na consideração do que corresponde ao grau que é propriamente o do Ser.

A propósito disto recordaremos que o fato de deter-se no Ser e de não considerar nada além, como se o Ser fosse de certo modo o Princípio supremo, o mais universal de todos, é um dos traços característicos de algumas concepções ocidentais do início da Idade Média, que, embora continham incontestavelmente uma parte de metafísica que não se encontra já nas concepções modernas, permanecem enormemente incompletas sob este aspecto, e também pelo fato de que se apresentam como teorias estabelecidas para si mesmas, e não com vistas a uma realização efetiva correspondente. Isto não quer dizer, certamente, que não tenha havido então outra coisa no ocidente; nisso, falamos somente do que se conhece geralmente, e do que alguns, fazendo louváveis esforços para reagir contra a negação moderna, "têm tendência a exagerar o valor e o alcance, posto que não se dão conta de que nisso se trata ainda sim de pontos de vista finalmente bastante exteriores, e de que, nas civilizações onde, como no caso daqui, estabeleceu-se uma sorte de ruptura entre duas ordens de ensino que se sobrepõem sem opor-se jamais, o «exoterismo» faz chamada ao «esoterismo» como seu complemento necessário. Quando este «esoterismo» é desconhecido, a civilização, que já não está vinculada diretamente aos princípios superiores por nenhum laço efetivo, não demora a perder todo caráter tradicional, já que os elementos desta ordem que subsistem ainda nela são comparáveis a um corpo que o espírito tivesse abandonado, e, por conseguinte, impotentes em adiante para constituir algo mais que uma sorte de formalismo vazio; é isso, muito exatamente, o que ocorreu no mundo moderno.

Uma vez dadas estas poucas explicações, pensamos poder entrar em nosso tema mesmo sem nos deter mais em preliminares dos quais todas as considerações que já temos exposto em outras partes nos permitem nos dispensar em grande parte. Em efeito, não nos é possível voltar indefinidamente sobre o que já foi dito em nossas obras precedentes, o que não seria mais que tempo perdido; e, se de fato algumas repetições forem inevitáveis, devemos nos esforçar em reduzi-las ao que é estritamente indispensável para a compreensão do que nos propomos expor presentemente, sem prejuízo de remeter ao leitor, cada vez que haja necessidade disso, a tal ou qual parte de nossos outros trabalhos, onde poderá encontrar indicações complementares ou desenvolvimentos mais amplos sobre as questões que sejamos levados a considerar de novo.

O que constitui a dificuldade principal da exposição, é que todas estas questões estão ligadas em efeito mais ou menos estreitamente umas às outras, e que importa mostrar este laço tão freqüentemente como é possível, embora, por outra parte, não importa menos evitar toda aparência de «sistematização», quer dizer, de limitação incompatível com a natureza mesma da doutrina metafísica, que deve abrir pelo contrário, a quem é capaz de compreendê-la e de «assenti-la», possibilidades de concepção não só indefinidas, mas sim, podemos dizê-lo sem nenhum abuso de linguagem, realmente infinitas como a Verdade total mesma.”

Nota sobre tradução:

"Os estados múltiplos do ser" foi traduzido para o português por nosso amigo Giuliano Morais. Inicialmente, a tradução foi realizada a partir da versão em espanhol disponível na Internet. No entanto, constatamos que havia algumas imprecisões e mesmo alguns trechos mais ou menos obscuros; enviamos a Giuliano uma cópia do original em francês e trabalhamos juntos em alguns trechos intrincados. O resultado final demonstrou-se muito satisfatório e, podemos dizer, superior às duas traduções existentes em espanhol. As traduções da obra de Guénon para o inglês são muito boas sob a direção editorial da Sophia Perennis.

De qualquer modo, temos que agradecer aos grupos espanhóis que traduziram, digitalizaram e publicaram na Internet a obra completa de Guénon e dezenas de outros autores de primeiríssima linha, prestando uma ajuda inestimável aos buscadores tradicionais de fala espanhola (e portuguesa) em todo o mundo.

Princípios do Cálculo Infinitesimal

Luiz Gambogi, professor de matemática, realizou muito boa tradução deste que constitui o quarto livro que está incluído no núcleo doutrinal como um agente auxiliar que expande o entendimento e compreensão da magistral apresentação de "O Simbolismo da Cruz" e "Os Estados Múltiplos do Ser", em especial no que respeita ao simbolismo matemático e geométrico.

"PREFÁCIO (René Guénon)

Ainda que o presente estudo possa parecer, à primeira vista ao menos, não termais que um caráter um pouco «especial», pareceu-nos útil empreender-lhe para precisar e explicar mais completamente algumas noções que nos sucedeu mencionar nas diversas ocasiões que nos servimos do simbolismo matemático, e esta razão bastaria em suma para justificar-lhe sem que tenha lugar a insistir mais nisso. Não obstante, devemos dizer que a isso se agregam também outras razões secundárias, que concernem sobretudo ao que se poderia chamar o lado «histórico» da questão; efetivamente, este não está inteiramente desprovido de interesse desde nosso ponto de vista, no sentido de que todas as discussões que se suscitaram sobre o tema da natureza e do valor do cálculo infinitesimal oferecem um exemplo contundente dessa ausência de princípios que caracteriza às ciências profanas, isto é, as únicas ciências que os modernos conhecem e que inclusive concebem como possíveis.

Já observamos freqüentemente que a maioria dessas ciências, na medida inclusive em que correspondem ainda a alguma realidade, não representam nada mais que simples resíduos desnaturalizados de algumas das antigas ciências tradicionais: é a parte mais inferior destas, a que, tendocessado de ser posta em relação com os princípios, e tendo perdido por isso sua verdadeira significação original, acabou por tomar um desenvolvimento independente e por ser considerada como um conhecimento que se basta a si mesmo, ainda que,certamente, seu valor próprio como conhecimento, precisamente por isso mesmo, encontra-se reduzido a quase nada. Isso é evidente sobretudo quando se trata das ciências físicas, mas, como explicamos em outra parte,1 as matemáticas modernas mesmas não constituem nenhuma exceção sob este aspecto, se se as compara ao que eram para os antigos a ciência dos números e a geometria; e, quando falamos aqui dos antigos, nisso é mister compreender inclusive a antigüidade «clássica», como um mínimo estudo das teorias pitagóricas e platônicas basta para mostrá-lo, ou o deveria ao menos se não fosse mister contar com a extraordinária incompreensão daqueles que pretendem interpretá-las hoje em dia. Se essa incompreensão não fora tão completa, ¿como se poderia sustentar, por exemplo, a opinião de uma origem «empírica» das ciências em questão, enquanto, em realidade, aparecem ao contrário tanto mais afastadas de todo «empirismo» quanto mais atrás nos remontamos no tempo, assim como ocorre igualmente com todo outro ramo do conhecimento científico?

Os matemáticos, na época moderna, e mais particularmente ainda na época contemporânea, parecem ter chegado a ignorar o que é verdadeiramente o número; e,
nisso, não estamos falando só do número tomado no sentido analógico e simbólico em que o entendiam os Pitagóricos e os Cabalistas, o que é muito evidente, senão inclusive, o que pode parecer mais estranho e quase paradoxal, do número em sua acepção simples e propriamente quantitativa.

Efetivamente, os matemáticos reduzem toda sua ciência ao cálculo, segundo a concepção mais estreita do que se possa fazer dele, isto é, considerado como um simples conjunto de procedimentos mais ou menos artificiais, e que não valem em suma mais do que pelas aplicações práticas às que dá motivo; no fundo, isso equivale a dizer que substituem o número pela cifra e, ademais, esta confusão do número com a cifra está tão extendida em nossos dias que se poderia encontrá-la facilmente a cada instante até nas expressões da linguagem corrente (2). Agora bem, em todo rigor, a cifra não é nada mais que a vestimenta do número; nem sequer dizemos seu corpo, já que, em certos aspectos, é mais corretamente a forma geométrica a que pode considerar-se legitimamente como constituindo o verdadeiro corpo do número, assim como o mostram as teorias dos antigos sobre os polígonos e os poliedros, postos em relação direta com o simbolismo dos números; e, ademais, isto concorda com o fato de que toda «incorporação» implica necessariamente uma «espacialização».

Não obstante, não queremos dizer que as cifras mesmas sejam signos inteiramente arbitrários, cuja forma não teria sido determinada mais do que pela fantasia de um ou de vários indivíduos; com os caracteres numéricos deve ocorrer o mesmo que com os caracteres alfabéticos, dos que, em algumas línguas, não se distinguem (3), e se pode aplicar a uns tanto como aos outros a noção de uma origem hieroglífica, isto é,ideográfica ou simbólica, que vale para todas as escrituras sem exceção, pordissimulado que possa estar esta origem em alguns casos devido a deformações ou alterações mais ou menos recentes.

O que há de certo, é que os matemáticos empregam em sua notação símbolos cujo sentido já não conhecem, e que são como vestígios de tradições esquecidas; e o que é mais grave, é que não só não se perguntam qual pode ser esse sentido, senão que nem sequer parecem querer que tenham algum. Efetivamente, tendem cada vez mais a considerar toda notação como uma simples «convenção», pela qual entendem algo que está proposto de uma maneira inteiramente arbitrária, o que, no fundo, é uma verdadeira impossibilidade, já que jamais se faz uma convenção qualquer sem ter alguma razão para fazê-la, e para fazer precisamente essa mais bem do que qualquer outra; é só àqueles que ignoram essa razão a quem a convenção pode parecer-lhes arbitrária, de igual modo que não é senão àqueles que ignoram as causas de um acontecimento a quem este pode parecer-lhes «fortuito»; efetivamente, isso é o que se produz aqui, e se pode ver nisso uma das conseqüências mais extremas da ausência de todo princípio, ausência que chega até fazer perder à ciência, ou supostamente tal, pois então já não merece verdadeiramente esse nome sob nenhum aspecto, toda significação plausível.

Ademais, devido ao fato mesmo da concepção atual de uma ciência exclusivamente quantitativa, esse «convencionalismo» se estende pouco a pouco desde as matemáticas às ciências físicas, em suas teorias mais recentes, que assim se afastam cada vez mais da realidade que pretendem explicar; insistimos suficientemente sobre isto em outra obra como para dispensar-nos de dizer nada mais a este respeito, tanto mais quanto que é só das matemáticas do que vamos ocupar-nos agora mais particularmente. Desde este ponto de vista, só acrescentaremos que, quando se perde tão completamente de vista o sentido de uma notação, é muito fácil passar do uso legítimo e válido desta a um uso ilegítimo, que já não corresponde efetivamente a nada, e que às vezes pode ser inclusive completamente ilógico; isto pode parecer bastante extraordinário quando se trata de uma ciência como as matemáticas, que deveria ter com a lógica laços particularmente estreitos, e, no entanto, é muito certo que se podem assinalar múltiplos ilogismos nas noções matemáticas tais como se consideram comumente em nossa época.

Um dos exemplos mais destacáveis dessas noções ilógicas, e que teremos que considerar aqui antes de mais nada, ainda que não será o único que encontraremos no
curso de nossa exposição, é o do pretendido infinito matemático ou quantitativo, que é a fonte de quase todas as dificuldades que se suscitaram contra o cálculo infinitesimal, ou, talvez mais exatamente, contra o método infinitesimal, já que nisso há algo que, pensem o que pensem os «convencionalistas», ultrapassa o alcance de um simples «cálculo» no sentido ordinário desta palavra; só há que fazer uma exceção com aquelas, das dificuldades que provém de uma concepção errônea ou insuficiente da noção de «limite», indispensável para justificar o rigor deste método infinitesimal e para fazer dele outra coisa que um simples método de aproximação. Ademais, como o veremos, há que fazer uma distinção entre os casos em que o suposto infinito não expressa mais do que uma absurdidade pura e simples, isto é, uma idéia contraditória em si mesma, como a do «número infinito», e aqueles em que só se emprega de uma maneira abusiva no sentido de indefinido; mas seria mister não crer por isso que a confusão mesma do infinito e do indefinido se reduz a uma simples questão de palavras, já que recai verdadeiramente sobre as idéias mesmas.

O que é singular, é que esta confusão, que tivesse bastado dissipar para atalhar tantas discussões, tenha sido cometida por Leibnitz mesmo, a quem se considera geralmente como o inventor do cálculo infinitesimal, e a quem chamaríamos mais corretamente seu «formulador», já que este método corresponde a algumas realidades, que, como tais, têm uma existência independente daquele que as concebe e que as expressa mais ou menos perfeitamente; as realidades de ordem matemática, como todas as demais, só podem ser descobertas e não inventadas, enquanto, pelo contrário, é de «invenção» do que se trata quando, assim como ocorre muito freqüentemente neste domínio, alguém se deixa arrastar, devido a um «jogo» de notação, à fantasia pura; mas, certamente, seria muito difícil fazer compreender esta diferença a matemáticos que se imaginam gostosamente que toda sua ciência não é nem deve ser nada mais que uma «construção do espírito humano», o que, se fosse mister crer-lhes, a reduziria certamente a ser muito pouca coisa em realidade. Seja como seja, Leibnitz não soube nunca se explicar claramente sobre os princípios de seu cálculo, e isso é o que mostra que tinha algo nesse cálculo que lhe ultrapassava e que se impunha em certo modo a ele sem que tivesse consciência disso; se se tivesse dado conta, certamente não teria se enredado numa disputa de «prioridade» sobre este tema com Newton, e, ademais, esse tipo de disputas são sempre perfeitamente vãs, já que as idéias, enquanto são verdadeiras, não poderiam ser a propriedade de ninguém, apesar do «individualismo» moderno, já que é só o erro o que pode atribuir-se propriamente aos indivíduos humanos.

Não nos estenderemos mais sobre esta questão, que poderia levarnos bastante longe do objeto de nosso estudo, ainda que quiçá não seja inútil, em alguns
aspectos, fazer compreender que o papel do que se chama os «grandes homens» é freqüentemente, numa boa medida, um papel de «receptores», de sorte que, geralmente, eles mesmos são os primeiros em iludir-se sobre sua «originalidade». O que nos concerne mais diretamente pelo momento, é isto: se temos que
constatar tais insuficiências em Leibnitz, e insuficiências tanto mais graves quanto que recaem especialmente sobre as questões de princípios, ¿que será então com os demais filósofos e matemáticos modernos, aos que, certamente, Leibnitz é muito superior apesar de tudo? Esta superioridade, deve-se, por uma parte, ao estudo que tinha feito das doutrinas escolásticas da idade média, ainda que nem sempre as tenha compreendido inteiramente, e, por outra, a alguns dados esotéricos, de origem ou de inspiração principalmente rosacruciana (4), dados evidentemente muito incompletos e inclusive fragmentários, e que, ademais, às vezes lhe ocorreu aplicar bastante mal, como veremos alguns exemplos disso aqui mesmo; para falar como os historiadores, é a estas duas «fontes» às que convém referir, em definitivo, quase tudo o que há de realmente válido em suas teorias, e isso é também o que lhe permite responder, ainda que imperfeitamente, contra o cartesianismo, que representava então, no duplo domínio filosófico e científico, todo o conjunto das tendências e das concepções mais
especificamente modernas.

Esta precisão basta em suma para explicar, em poucas palavras, tudo o que foi Leibnitz, e, se se lhe quer compreender, seria necessário não perder de vista nunca estas indicações gerais, que, por esta razão, cremos bom formular desde o começo; mas é tempo de deixar estas considerações preliminares para entrar no exame das questões mesmas que nos permitirão determinar a verdadeira significação do cálculo infinitesimal.

Notas:

(1) Ver "Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos".
(2)Ocorre o mesmo com os «pseudo-esoteristas» que sabem tão pouco do que querem falar que nunca deixam de cometer esta mesma confusão nas elucubrações fantásticas com as que têm a pretensão de substituir à ciência tradicional dos números!
(3) O hebreu e o grego estão nesse caso, e o árabe o estava igualmente antes da introdução do uso das cifras de origem índia, que depois, modificando-se mais ou menos, passaram daí à Europa da idade média; pode-se destacar a este propósito que a palavra «cifra» mesma não é outra coisa que o árabe Cifr, ainda que este não seja em realidade mas que a designação do zero. Por outra parte, é verdade que em hebreu, saphar significa «contar» ou «numerar» ao mesmo tempo que «escrever», de onde sepher «escritura» ou «livro» (em árabe sifr, que designa particularmente um livro sagrado), e sephar, «numeração» ou «cálculo»; desta última palavra vem também a designação dos Sephiroth da Cabala, que são as «numerações» principais assimiladas aos atributos divinos.
(4) A marca inegável dessa origem se encontra na figura hermética colocada por Leibnitz na portada de seu tratado Da Arte combinatória: é uma representação da Rota Mundi, na que, no centro da dupla cruz dos elementos (fogo e água, ar e terra) e das qualidades (quente e frio, seco e úmido), a quinta essência está simbolizada por uma rosa de cinco pétalas (que corresponde ao éter considerado em si mesmo como
princípio dos outros quatro elementos); claro, esta insígnia passou despercebida para todos os comentadores acadêmicos!

IX - Livros conexos e compilações

Como poderão ter notado, alguns livros não foram mencionados nos grupos de estudo que estabelecemos a título de orientação geral ao estudo da obra magistral de René Guénon.

De início, os dois tomos de "Franco-Maçonaria e Companheirismo", resultado da compilação de vários estudos sobre o tema e resenhas de livros e revistas relacionados ao tema, que podemos integrar ao primeiro grupo de livros a estudar; é natural que o ocidental contemporâneo que inicia suas buscas através dos estudos tradicionais procure alguma alternativa que esteja em seu próprio território histórico-intelectual, digamos. Irá fazer verificações no que restou da Igreja Católica Apostólica Romana, depois nas Igrejas Ortodoxas e, frequentemente, nos místicos medievais e, quase sempre, junto à Maçonaria. Estas obras disssipam as dúvidas mais frequentes, pautam rigorosamente os critérios de regularidade e ortodoxia, e ao final das contas, acabam por descartar as inúmeras enganações que pululam por aqui e lá fora.

"Estudos Sobre o Hinduísmo" é a compilação de estudos sobre esta doutrina e se presta a esclarecimentos adicionais para "O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta".

"Considerações Sobre o Esoterismo Islâmico e Sobre o Taoísmo" é uma importante compilação de estudos sobre estas duas formas tradicionais, acrescidos de resenhas de livros e revistas ligados ao tema. "Mélanges", publicado em 1972 pela Gallimard é uma compilação de estudos variados, extremamente interessantes; ali encontramos "O Demiurgo", "Silêncio e Solidão" (sobre nativos norte-americanos), um interessantíssimo estudo sobre "O simbolismo dos números" e vários outros.

O estudioso poderá reunir uma bliblioteca a partir das centenas de indicações que Guénon nos oferece em todos seus livros; o IRGET (Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais) possui uma biblioteca que é um verdadeiro tesouro tradicional (ver "Raízes e Folhas de nossa Biblioteca", neste site.)

Notas bibliográficas

"O Erro Espírita" em português.

Andrea Patrícia : este é o nome da tradutora de "O Erro Espírita", que nos informa "ter sido fácil, pois não sou tradutora !" e que realizou o trabalho a partir da versão em espanhol.
Reiteramos a importância fundamental desta obra de Guénon, não apenas aos desencaminhados pelo espiritismo, mas para toda comunidade de estudiosos da Tradição. Ver em postagens anteriores neste mesmo tópico outras considerações relativas a este livro.
Andrea Patrícia, todos agradecemos por esta tradução tão importante.

Grande notícia! "O Teosofismo" em breve traduzido!

“Luiz, fui motivada a traduzir este livro porque fui espírita/neo-espiritualista e percebi a enganação na qual estava metida, em grande parte, graças a René Guenón. Meu pai é espírita desde antes de eu nascer, minha família infelizmente é envolvida com espiritismo/neo-espiritualismo/nova era. Muitos de meus amigos também.
O primeiro livro de Guenon que li foi El Teosofismo e depois li El Error Espiritista seguido de A Crise do Mundo Moderno. Li outras mais, mas ainda não li tudo. Admiro muito Guenon, pela seu conhecimento e sabedoria. Creio que ele foi um homem muito caridoso, pois dedicou muito de seu tempo para alertar as pessoas sobre os erros da modernidade. Ele fez um belo trabalho, pelo qual sou muito grata.
Estou traduzindo El Teosofismo, logo que estiver pronta, avisarei a você.

Fique com Deus!
Andra Patrícia”

Traduttore...traditore

Estivemos passando os olhos na tradução para o português de "O Erro Espírita" e constatamos várias imperfeições perfeitamente compreensíveis para quem declaradamente não é do ramo e Andrea mesma não escondeu este fato.
É que o espanhol, por ser muito próximo do português, proporciona as mais variadas ciladas e armadilhas. "Largo", por exemplo, significa em português "profundidade" e há várias palavras com grafia idêntica e significado não tanto...
Mesmo assim, no conjunto, o mais importante está preservado e a leitura ou estudo pode ser empreendido sem maiores prejuízos à compreensão.
Sempre se perde algo em qualquer tradução e a máxima italiana que titula esta postagem é mais que justificada; o ideal sempre é traduzir desde o original - mas o francês hoje, lamentavelmente, está em terceiro plano em nosso país e fora dele; o próprio governo francês, com sua característica arrogância, parece não conceder maior importância ao fato.

Giuliano Morais havia traduzido "Os Estados Múltiplos do Ser" a partir do espanhol mas quando lhe passamos uma cópia do original francês novas luzes trouxeram maior nitidez e clareza como resultado final. É a melhor (e provavelmente a única) tradução desta obra para nossa língua.

A língua espanhola é muito antipatizada pelos brazucas e há um sentimento de rivalidade que jamais poderia ser justificado quando tratamos de assuntos tradicionais. Portugal e Brasil juntos não produziram nem 10% do que os espanhóis em matéria de livros tradicionais e só isto seria motivo suficiente para a aquisição de um bom dicionário espanhol-português e uma gramática.

Quando (há décadas... estudamos árabe (uma experiência única e insubstituível) na USP com o então catedrático Helmi Nasr, soubemos que é reconhecido oficialmente o fato de "pelo menos 30% das palavras em português terem raiz árabe. A verdade é que a porcentagem que foi deixada de fora por "haver dúvidas" levaria certamente o total para quase 40%, o que é notável.

No caso do espanhol, tal porcentagem é ainda maior e não é difícil compreender se tivermos em mente quase oito séculos de presença árabe-islâmica na Península Ibérica.

Todos os buscadores tradicionais deveriam ler e estudar o magnífico e arrebatador livro de Titus Burckhardt “A Civilização Hispano-Árabe” onde a importância da civilização islâmica é descrita magistralemente, seja sob o aspecto intelectual/espiritual, seja na arquitetura, literatura, etc.

Voltemos à língua árabe; a antipatia que no geral nós brasileiros a ela atribuímos preconceituosamente, nos impede de ver (ouvir) a incomparável riqueza de sons ali presente, e grande parte destes recursos vocais têm origem no árabe e, de todas as línguas de raiz greco-latina, sem dúvida o espanhol teve o privilégio único de ser enriquecido pela língua árabe que, lembremos, é língua sagrada, pois através dela foi revelado o Sagrado Alcorão.

"Palavra é Ritmo"

Se falamos do espanhol com surpreendente entusiasmo para nossos estimados/as leitores/as, em parte tal fato se deve a nossos correspondentes de língua espanhola de várias partes do mundo; o site do Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais possui versão nesta língua e, acreditem, no cômputo geral, várias páginas apresentam maior visitação de espanhóis do que brasileiros, fato que não deixa de ser notável; nossos amigos de confiança na Alemanha, Itália e França realizaram a tradução para suas respectivas línguas .

Para quem gosta de literatura e línguas, o estudo atento da terceira parte do "Baú dos Relâmpagos Fulgurantes" (Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus) irá revelar profunda compreensão da natureza e origem da linguagem, cujo fundamento essencial é o ritmo. No site IRGET todos poderão apreciar a trasncrição de memorável palestra de Charles Vachot no Museu Guimet, "A Guirlanda das Letras".
Os que tiveram oportunidade de estudar uma língua sagrada, como nós em relação ao árabe, poderão testemunhar o poder de evocação que a pronúncia correta de uma palavra instantaneamente nos traz. É como se fôssemos arrebatados à raiz e à essência mesmo do conceito que a palavra pronunciada "quer dizer".

Luiz Pontual

"Entender" e "Compreender": grande distância!

"Exemplos" e conclusão

Neste tópico chegamos ao "coração" do tema a que nos propusemos, a partir de uma situação real recorrente, que é o caso dos buscadores iniciantes cometendo os erros mais ou menos previsíveis e inevitáveis.
O tecido lógico contínuo, trama e urdidura, que permeia toda a manifestação, é nossa "tela de fundo", onde pintamos e bordamos as "sombras" ou desvios modernos, em especial o método analítico e sistemático, que está na raiz do "pensamento morto", característico e "combustível" da desestruturação contemporânea.

Os que souberem alinhavar a partir dos pontos ali destacados poderão tirar excelente proveito e não é outro nosso objetivo ao discorrer (diástoles e sístoles) sobre o "Pulsar" tradicional que dá vida e ordem ao Pensamento Real.
Há poucos dias recebemos uma questão exemplar das "bicadas" urubusais que a obra de Guénon é alvo tão frequente: no livro "Oriente e Ocidente", no primeiro capítulo da parte II, vemos a expressão "tradicionalistas" como uma qualidade inerente aos Orientais e o contexto contido no parágrafo não deixa qualquer dúvida sobre sobre este significado; mais adiante, no segundo capítulo, a mesma expressão -"tradicionalistas"-é utilizada, porém no contexto dos estudiosos ocidentais modernos , isto é, de quem se aproxima, estuda ou pesquisa temas relacionados ao Oriente, porém sem as condições essenciais para compreendê-lo verdadeiramente.

O objetivo da questão é "denunciar uma contradição" de Guénon, que usou a mesma palavra com dois sentidos "muito diferentes, quase opostos"; os limites das línguas ocidentais modernas frequentemente impõem imprecisões que não são daquele que transmite o conhecimento tradicional, mas da língua que é a "ferramentaria" disponível nas atuais circunstâncias. Em outra ocasião, ouvimos uma crítica análoga, desta vez trazendo a confrontação de um trecho de "O Demiurgo" com uma nota de pé de página de "O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta" referente à Brahma "Supremo" e "Não-Supremo"; trata-se, evidentemente, de uma precisão doutrinal publicada muitos anos após "O Demiurgo" (de 1909), que explica que os termos "supremo" e "não-supremo" não são correlativos, tal como poderiam ser interpretados nos limites intelectuais próprios do Ocidente moderno. Mas não! Os corvos e urubus de plantão se apressam a crocitar, asas agitadas, trêmulos de indignação: "Olha a contradição! Olha a contradição!!!"
É também mais ou menos por estes caminhos que certas cobras travestidas de "águias" fazem coro aos que, seja por incapacidade intelectual seja por ignorância e má-fé (por que não um "sindicato" destas três "características"?) proclamam aos urros que o conceito do "Não-Ser" não é tradicional...

É também destes âmbitos inferiores a afirmação de que "um dos maiores erros de Guénon é ter afirmado que a China não sucumbiria à modernidade, o que aconteceu em 1949 e o livro "Ocidente e Oriente" não foi corrigido pelo autor". Quem nos passou um artiguete (melhor seria chamar de um "vôo de galinha de angola") daquela sinistra personagem brazuca muito provavelmente é um dos filhotes (nos dois sentidos) largados pelo mundo pela tal personagem... mas, deixemos este lado escabroso de lado, ao menos neste tópico. Acreditamos que as "sementes" foram lançadas e, em terreno propício, darão seus invulgares frutos e aromas, alimento etéreo tão bem descrito por Dante com "Vulgar Eloqüência", se nos compreendem bem.

Luiz Pontual

"Kabloona!" e "Komock, o Esquimó"

Retomando a tal estória dos homens "frutívaros" , fica meio engraçado ler relatos e considerações sobre certas vertentes tradicionais remanescentes no Ártico, tal como podemos ver em nosso ressurecto site IRGET nas páginas "Kabloona!" e "Komock, o Esquimó", que, francamente, não eram propriamente "vegetarianos"... O ridículo da hipótese evolucionista, associada aos espíritas e teosofistas, não tem limites; o "pouco" das tradições sagradas que "respira" nestes dois relatos é mais que suficiente para confirmar o que Guénon comenta sobre o assunto em "O Teosofismo".

Este que vos escreve passou horas escaneando estes antigos artigos da "Seleções" das décadas de 40 e 50 do século passado e, estimados buscadores, acreditem que tivemos suficientes motivos para tal sacrifício e "generosidade". Tudo, tudo mesmo, está interligado logicamente numa "rede" de Arquitetura coerente e integral e, aos que quiserem (e puderem) aproveitar, estes excertos em nosso querido site www.reneguenon.net , aparentemente tão inocentes e "jornalísticos", poderão se revelar muito mais interessantes que a vã "filosofia" dos "entendidos" poderia supor.

Falávamos há pouco sobre o Koan "Pedra e Água", sobre a pedra sem água como pó e, inesperadamente, nos veio à memória alguns acordes de "Stardust". Não deixa de ser curioso que esta expressão em inglês (literalmente "pó de estrelas") queira dizer "Via Lactea"... pois logo em seguida comentavamos sobre "tirar leite de pedra". Não dizia Dante algo sobre "O Amor que move as estrelas"? E assim, quase brincando, cintilações pulsam aqui e ali...

Koan "Pedra e Água"

Poderá surpreender a todos como nossas considerações sobre "entendimento e compreensão" teriam podido nos aparecer subita e inesperadamente sob a forma do famoso "Koan" búdico e taoísta "Pedra e Água".
Se persarmos sobre o "orgânico" e "inorgânico", alguns horizontes se descortinam. O "petrificado" identifica-se muito apropriadamente ao termo "civilização" (com o suposto sentido de "superior"), que está associado à "cidade de pedra"; o "selvagem" (com o sentido de "inferior", "bruto"), por outro lado, é situado na mata virgem, a "selva", a natureza íntegra. Já tecemos considerações sobre este tema em nosso estudo "A Tradição dos Índios Norte-Americanos".

Nosso vôo pelicanoso-albatrótico desde Curaçao para São Paulo, durante o dia, teve escala em Manaus. Quando o pássaro-de-ferro, perdendo paulatinamente altura, se aproximava do aeroporto, um espetáculo grandioso, em crescendo de dar vertigem, nos foi apresentado sem maiores preâmbulos: uma serpente descomunal, chamada "Amazonas", pouco a pouco virou um mar sem limites, maior que a própria floresta e que todo o continente.
Elemento ÁGUA... que força, que poder irresistível!

O cimento não é outra coisa senão a pedra reduzida a pó; sem a água , a pedra não é nada, se reduz a pó (porque a melodia da fabulosa "Stardust" nos vem agora?)... mas, recoloque a água no pó e verás a dureza e resistência da pedra (ou da água)reaparecer. A pedra pode ser um obstáculo intransponível ou esmagador; no entanto, pode ser também "o caminho das pedras", pouco abaixo do nível das águas, que assegura a travessia de uma margem à outra e mesmo para "a terceira margem do rio".

A "pedra", sob vários aspectos, pode ser associada à "Morte" (-a lápide sobre um túmulo não será um definitivo "ponto final"?) e a "água" à "Vida", ao nascimento e ao renascimento. Certas dificuldades - quando muito desencorajadoras - equivalem ao "tirar leite de pedra"... Um dos ritos de purificação dos Sioux era uma sauna subterrânea, "água e pedra"...

Semeadura e colheita.

Falávamos mais acima sobre as inúmeras possibilidades simbólicas que florescem na agricultura. Isto nos remete de imediato às formas tradicionais dos nativos norte-americanos, em especial os Hopi e os Sioux. Em nosso ressurecto site os interessados poderão apreciar longos excertos referentes a estas tradições e poderão apreciar o inacreditável frescor simbólico ali presente, arrebatador e irresistível.

Aos que apreciam a arte de escrever, não podem deixar de conhecer "Almas Mortas", de Gogol, um dos grandes escritores-pintores russos; o título da obra pode induzir os incautos a equívoco, pois longe de catacumbas ou cemitérios, os vastos panoramas finamente desenhados por Gogol são tecidos com a mais fina urdidura humorística; na segunda parte desta obra profunda e reveladora (não apenas da alma russa mas de todo um tempo que inexoravelmente então estertorava) há um longo e muito interessante discurso sobre as estepes e campos russos, sua agricultura e seus homens.

Da semeadura à colheita, muito naturalmente decorre um tempo, variável segundo a espécie que tenhamos em vista; entre o "entendimento" e a "compreensão", as coisas se dão de modo análogo, desde que a terra esteja convenientemente preparada e que as condições climáticas sejam favoráveis, sem falar nos cuidados constantes, como combate às pragas e predadores e a irrigação conveniente, entre outros.
A primeira leitura dos livros de Guénon frequentemente dá a ilusão ao neófito de que "finalmente apareceu alguém que responde totalmente ao 'vazio' intelectual que existia em mim" . Se refletirmos um pouco sobre o impacto tremendo que representa tais primeiras leituras, temos que convir que o novo leitor (independente de idade) é um perdido (nos dois sentidos do termo) na modernidade e que todo o seu "repertório" cultural está encharcado de erros que remontam a séculos, situação (um tipo de "desestruturação") que não se modifica de repente como em um golpe de mágica.

Tem início então um forte movimento de resgate de valores e princípios (que é o significado original do termo"revolução"), movimento inexorável segundo as qualificações mais ou menos favoráveis do neófito leitor; os reajustes e reposicionamento de infra-estrutura e estrutura da arquitetura mental e "cultural" do leitor lentamente vão se realizando e isto independentemente de estar ou não estudando: é um processo lento e contínuo, que vai "qualificando" os instrumentos (métodos) mesmos do saber.

Não é outro o motivo pelo qual após alguns anos, ao retomarmos "A Crise do Mundo Moderno" ou "Oriente e Ocidente" nos damos conta de nos deparar com "novos livros, nunca antes lidos"; é que o leitor da primeira leitura já não é o mesmo e agora pode compreender e "carregar" certas riquezas do conhecimento tradicional que de início sequer poderia discernir e muito menos "assimilar".

Ficamos às vezes a imaginar o que certos neófitos podem efetivamente apreciar dos esplendores fulgurantes do saber tradicional a nós presenteados por um Titus Burckhardt ou um Martin Lings... o "timing" mental para a compreensão precisa estar devidamente maturado, caso contrário a "floração" e, menos ainda, o "perfume espiritual" não acontecem. A paciência e persistência, virtudes tão esquecidas (e desprezadas) são duas das pedras que fazem o caminho da travessia desde o "entendimento" para a "compreensão".

"Já entendi tudo".

Mencionávamos no início destas linhas o entusiasmo de nosso verde amigo, que, após um ano de estudos cerrados da obra de Guénon julgou-se "pronto" para ser um Sufi ao estilo "Fast-Food" . Quanto às obras "mais exteriores" de Guénon, "já entendi tudo".

A pergunta que fazemos é: QUEM entendeu? Pois a resposta é fácil: o mesmo anterior aos estudos que, no entanto, se ilude como se houvesse realizado uma completa revolução "pessoal" (incluindo aí a "limpeza" do organismo com o regime vegetariano), estando assim perfeitamente "apto" a uma iniciação ao esoterismo islâmico que, se bobear BANNNNNNNNG!!! vai direto para a Libertação Total, sem os fastidiosos "trâmites burocráticos e alfandegários" a que os menos "qualificados" necessariamente são submetidos.

O "entendimento" não qualifica o "eu", apesar de "mudá-lo" no que respeita à "quantidade" de informação (isto é, dá uma "enchidinha" no "HD mental"); a qualificação efetiva se dá pela "compreensão", que não é outra coisa senão a identificação da essência mesma do ser com Sua Essência, se nos permitem tal complexidade metafísica. Platão/Aristóteles já diziam "conhecer é recordar", nes't pas?

Alors, mons enfants, le jour de gloire, est-il arrivé?

E aí temos um outro ponto de chegada muito interessante, que é a grande diferença entre o "entendimento", que reforça o "eu", o individualista, o orgulhoso de suas tão elevadas "qualidades" - e a "compreensão" que, muito ao contrário, tende ao Universal e paulatinamente apaga o "eu" ilusório.

Quem conhece os convertidos ao Islã do tipo individualista orgulhoso "boto fé é em mim mesmo", não deixarão de notar que eles não hesitam, ao escolher o novo nome, em proclamar aos quatro ventos, se homem, "Muhammad" (SAW) ou, se mulher, "Khadija" (esposa do Profeta). Não deixam por menos, não. É batata (orgânica e natural) !

Orgânico e inorgânico.

Já registramos em outras ocasiões que a natureza do pensamento tradicional é essencialmente orgânico, vivo e, mais que isto, para além da vida e da morte. A continuidade lógica que permeia toda a Manifestação, tal como Titus Burckhardt tão bem resgistrou em seu antológico estudo contra o evolucionismo, reporta-se de grau em grau ao Princípio Único, havendo ordem e hiearquia em toda sua arquitetura.

Dissemos também que a palavra "coerência" significa o perfeito ajuste lógico da parte no Todo e que "contradição" é apenas um aspecto de uma "incoerência".

Daí podemos notar que a "fisionomia mental" de um vocacionado tradicional é sempre sintética e nunca analítica.

Explicamos que o termo "análise" designa "decomposição", isto é, fragmentação e descontinuidade lógica e a proximidade do termo com "morte" não é fortuita, longe disto; a "arrumação" arbitrária de tais fragmentos mortos em defesa de uma hipótese é o que podemos chamar de "sistema" e é precisamente o método sistemático (inorgânico) que impera na mentalidade moderna de modo geral e nos meios acadêmicos de modo particular, que funciona como "combustível" da desagregação do pensar que tão bem caracteriza os tempos modernos.

O acento e a insistência com que os vegetarianos, naturebosos e aparentados devotam à importância do "corpo" e da "vida" em si mesmos (como se todas as demais instâncias dependessem disto, bem ao feitio evolucionista) nos dá a medida da distância que tal deformação tem em relação aos estudos tradicionais; todos os estudantes e estudiosos que nos acompanham não terão dificuldades em trazer à memória dois capítulos de "Oriente e Ocidente", isto é, "A Superstição da Ciência" e "A Superstição da Vida", cuja releitura recomendamos com muita ênfase.

No parágrafo acima, mais uma vez, temos uma amostra exemplar da dissociação da parte com o todo, que não é outra coisa senão fruto morto do modo analítico e sistemático, que resulta nas mais estapafúrdias e incoerentes confusões modernas.

A "verdura" do saber.

Nosso verde amigo perseverou na defesa do vegetarianismo arremessando longe o argumento bíblico "não matarás" (que não resiste ao fato de que os vegetais também "são mortos" para chegarem ao prato e, menos ainda, à constatação de toda cadeia alimentar está plena de "assassinatos", desde os seres grandões aos mais ínfimos...) e lançando mão de trechos de textos do hinduísmo onde os vegetais são exaltados como alimentos de certas honoráveis e antiquíssimas vertentes tradicionais; omitiu, no entanto, por ignorância ou conveniência, que a mesma vertente considera a manteiga "a gordura mais nobre", altamente recomendada e "imprescindível na alimentação".

Havíamos esquecido de mencionar que nosso verde amigo é "vegetariano puro", isto é, nada de derivados de animais, como leite, manteiga ou queijo. Não parou por aí: numa alusão muito hipotética porém de perfume nitidamente evolucionista, ponderou que "em épocas muito remotas o homem alimentava-se exclusivamente de frutos"; queria talvez reportar-se a outros Yugas, que na Antiguidade, segundo Hesíodo, foram chamadas "Idade de Ouro", "Prata", "Bronze" e "Ferro". Vamos supor que tal hipótese (de dificílima verificação) estivesse correta: assim mesmo, teríamos que levar em conta que hoje não vivemos na Idade de Prata mas no Kali Yuga e que a humanidade encontra-se subtida à condições muitíssimo diferentes.

Este tipo de erro - transposição mecânica de uma verdade tradicional remota para a atualidade - não é coisa nova; outro rapaz, igualmente inteligente (não sabemos se vegetariano ou não) não defendeu entusiasticamente Julius Evola (um Kchatriya confesso e admirador do Brahmane Guénon) alegando que na Idade de ouro não haviam castas? Eis aí um exemplo notável de coisa "entendida" e não comprendida, ou conhecimento inorgânico ou "sistemático" e, assim podemos resgatar em parte o motivo do título desta postagem.

As anotações que trasncrevo aqui se encaixam oportunamente na página, pois tocam o assunto do aprendizado tradicional, superficial ou profundo.

Longos anos de estudos e aulas nos proporcionam experiência e qualificação sobre ensinar e aprender ou semear e colher; a agricultura, por sinal, nos proporcionaria muitos recursos simbólicos para desenvolver este tema tão interessante e pertinente, que nos vem à mente como reflexões sobre certas dificuldades e obstáculos por que passa um rapaz amigo nosso em seu início de caminhada na senda tradicional.

Muito inteligente e talentoso, estudando (há apenas um ano) firme quase toda a obra de Guénon, entusiasmou-se e, como ocorre frequentemente, decidiu concentrar esforços para uma iniciação no esoterismo islâmico; acreditou que o "que interessa mesmo" na obra de Guénon são os três livros do núcleo "nobre" ou metafísico, a saber : "O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta", "O Simbolismo da Cruz" e "Os Estados Múltiplos do Ser", descartando o resto como "já resolvido".

Convenceu-se de que o regime vegetariano era não apenas mais saudável mas também tradicional, enumerando dezenas de citações tiradas dos mais variados livros sagrados, desde o "não matarás" bíblico até luminares do hinduísmo e budismo. Quando comentamos que o vegetarianismo era uma invenção moderna "parida" por Helena Blawatsky após a consumação do casamento entre o espiritismo e o teosofismo, o rapaz em questão buscou minimizar o assunto, alegando que "os vegetais têm todas as proteínas necessárias ao organismo humano".

Recomendamos então a releitura (pois já havia "entendido" "todo" o Guénon) de "O Teosofismo" em seus vários trechos dedicados a este monstrenguinho chamado vegetarianismo, onde Guénon destila fino humor e ironia, desmontando peça por peça esta armaçãozinha que tanto seduz os naturebosos e verdinhos (no duplo sentido que o termo comporta). Sugestão aceita, nosso amigo entregou os anéis mas preservou cuidadosamente os dedos, isto é, "até concordo que o vegetarianismo não tenha base tradicional, mas não há qualquer prova científica em contrário: estou me sentindo muito bem e a carne hoje me causa repugnância".

Livros de René Guénon em Português

O IRGET dispõe de várias traduções, resultado de mais de vinte anos de estudos e aulas. Algumas nos foram gentilmente colocadas à disposição por seus tradutores. Guénon, em todo o mundo, tem leitores que se renovam e as vendas são regulares e contínuas, ao longo de décadas. No Brasil, infelizmente, a mentalidade declarada das editoras é ganho fácil com "best-sellers". Os dois títulos ( Sìmbolos da Ciência Sagrada e A Grande Tríade) da Editora Pensamento estão esgotados há tempos. As edições de Portugal, além de caras, são difícilmente encontráveis; " A Crise do Mundo Moderno" mudou de capa mas coninua com dezenas de erros tipográficos e de revisão.

Crise do Mundo ModernoCrise do Mundo ModernoAutor: René Guénon
Oriente e OcidenteOriente e OcidenteAutor René Guénon
O Rei do MundoO Rei do MundoAutor René Guénon
Esoterismo de Dante e São BernardoEsoterismo de Dante e São BernardoAutor René Guénon
O Homem e seu Devir Segundo o VedantaO Homem e seu Devir Segundo o VedantaAutor René Guénon
O Simbolismo da CruzO Simbolismo da CruzAutor René Guénon
Considerações sobre a IniciaçãoConsiderações sobre a IniciaçãoAutor René Guénon
Os Estados Múltiplos do SerOs Estados Múltiplos do SerAutor René Guénon
Princípios do Cálculo InfinitesimalPrincípios do Cálculo InfinitesimalAutor René Guénon
O Erro EspíritaO Erro EspíritaAutor René Guénon
O TeosofismoO TeosofismoAutor René Guénon
Símbolos Fundamentais da Ciência SagradaSímbolos Fundamentais da Ciência SagradaAutor René Guénon
Autoridade Espiritual e Poder TemporalAutoridade Espiritual e Poder TemporalAutor René Guénon
Iniciação e Realização EspiritualIniciação e Realização EspiritualAutor René Guénon
Hierarquia e DemocraciaHierarquia e DemocraciaAutor René Guénon
Formas Tradicionais e Ciclos CósmicosFormas Tradicionais e Ciclos CósmicosAutor René Guénon
Você ainda acredita em democracia?Você ainda acredita em democracia?Autor Luiz Pontual
Revolta contra o Mundo ModernoRevolta contra o Mundo ModernoAutor Julius Evola
A Unidade transcedente das religiõesA Unidade transcedente das religiõesAutor Frithjof Schuon
Destruição da Tradição CristãDestruição da Tradição CristãAutor Rama Coomaraswamy
O Homem e a NaturezaO Homem e a NaturezaAutor Hossein Nasr
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